MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS
Por Augusto César Esteves
desenho de Manuel Igrejas
As praças queria-as ele disciplinadas,
mas para isso se conseguir deviam os oficiais ser hábeis e capazes. As
dificuldades não o descoroçoavam porque nunca poupou esforços, nem fugiu a
propor mudanças nos comandos das companhias. Elas eram quatro e em duas
encontrei eu vincado o dedo do gigante. Serviu-lhe de pretexto a carga dos
anos, os achaques da idade, e até as vagas, deixadas pelas promoções dos mais
competentes. Para perpetuar o nome e o de nobres antepassados, por esta época
andou este militar preocupado pela criação dum vínculo de morgado. Mas da
França sopravam ventos contrários; a época era outra e no seu brilhante
espírito cedo se estabeleceu e se acentuou a ideia da inutilidade. Desistiu.
Teve ainda longos anos de vida, porquanto aturou até 1831, é certo; mas, na sua
casa, nunca mais houve momentos de emoção e de intensiva alegria semelhantes
aos sentidos e vividos nos dias de revolta, de que foi um dos principais
cabouqueiros.
Uma ou outra vez, quando o
grande portão do seu solar se escancarava, abrindo ambas as folhas da porta
para o amplo quinteiro e por ele via entrar, em cavalgaduras possantes, os seus
velhos amigos e, entre eles, o compadre da Gaia, António Luís de Araújo Cunha
Pereira Rosa, filho do reverendo D. João Luís da Cunha e Araújo, da Casa da
Gaia e de Maria dos Passos Mosqueira, da vila, nas suas frequentes vindas ao Convento
das Carvalhiças, porque dele foi síndico, ou à Câmara, quando foi vereador e
para taxar e vigiar a venda dos géneros, porque foi almotacé e que tinha gerado
já o seu afilhado, Tomás Joaquim da Cunha Araújo, mais tarde presbítero de S.
Pedro, cuja herança, há poucos anos ainda, foi partilhada no nosso tribunal,
num processo célebre pelo número de interessados atendidos; quando transpunham
os mesmos portões grupos de pobres, pelo meio-dia, a tomar substancial alimento
distribuído pelas senhoras da casa; quando o seu primogénito e a noiva, D.
Maria Francisca Moreira da Cunha Rego, filha querida de uns fidalgos de Nossa
Senhora de Monserrate, de Viana do Castelo, que ele ainda havia de ver morrer,
ela, linda, gentil, botão de rosa a abrir para as canseiras da lide familiar e
ele bonita figura de homem, cheio de vida, sorridente, se apearam da cadeirinha
naquele dia 22/1/1828, entre os mil convidados para a boda, no regresso da
velha igreja de Paderne, onde se haviam matrimoniado, ainda o coração do velho
fidalgo do Rio do Porto se comoveu e nos seus olhos sorriu a satisfação. Mas as
cambiantes da alegria eram sombras daquelas outras.
As alegrias contudo forjam-se
ao lado das tristezas e a veemência do desejo tempera-as o destino com
decepções ou com o retardamento da sua realização. Umas coisas conseguem-se
depressa, e por inteiro, e outras nunca se alcançam. De tudo isto houve na vida
deste capitão-mor. // Uma vez, antes da revolta contra os franceses estalar, «pela especial
devoção que sempre professou aos religiosos do Convento de Nossa Senhora da
Conceição daquela mesma vila deseja que se lhe conceda uma sepultura na
Capela-Mor da Igreja do referido Convento.» A graça foi-lhe
concedida em mesa de 14/6/1806, mas só em 30/3/1813 lhe foi marcada a «referida sepultura,
sita na capela-mor desta Igreja deste Convento ao pé do primeiro degrau que
sobe para o altar-mor e supedâneo ([1])
com o retiro deste degrau seis palmos e meio, e direitamente no meio deste
sítio, com a largura de cinco para seis palmos, e de comprido dez ditos.»
Outra ocasião, já no fim da
vida (ele tinha boa noção das conveniências
sociais), como as fitinhas da sua Comenda da Ordem de Cristo se
deterioraram, quis substituí-las e levou um trabalhão a procurar outras, pois
em 29/1/1831 o seu amigo Ventura Peiteado Boceta escrevia-lhe de Braga uma
carta de pêsames a que arranco apenas esta passagem por ser alusiva:
«…Pois,
Ilustríssimo Senhor: ainda que tarde dou cumprimento à recomendação de Vossa
Senhoria a respeito das fitas de Hábito de Cristo. Não encontrei senão em
Chaves o pequeno bocado que remeto a Vossa Senhoria; por enquanto não posso
arranjar da outra qualidade que diz; eu penso lá ir cedo ainda que saudoso...»
O nobre conjurado atravessou
com aprumo, ninguém o duvide, o período das lutas fratricidas e como em Melgaço
passou todo o ciclo da vida de Tomás das Quingostas, quem pode dizer toda a sua
acção nesse longo período? Respeitado, bem visto e bem conceituado pelas autoridades
superiores, levou ele uma grande parte da existência a receber correspondência
de toda a espécie e até incumbências dignas de apreço, uma das quais hei-de
ainda focar.
O juiz de fora de Caminha
pediu-lhe um dia informações confidenciais «sobre as qualidades religiosas, civis e
sentimentos políticos de Luís António de Brito Cabral e de João Manuel
Fernandes Costa, ambos da vila de Valadares, pelo bom conceito que faço de
Vossa Senhoria.» Em 26/9/1830 oficiou-lhe o juiz de
fora de Melgaço para o capitão-mor mandar reunir na vila na manhã do dia 28,
pelas seis horas, as Ordenanças do distrito debaixo do comando dos seus
oficiais a fim de, com o maior segredo, colocar um «cordão em toda a raia deste Distrito
estendendo-se até Montalegre sendo permanente nos dias e noites de 28, 29 e 30
do corrente.»
Não recordo outros actos da
vida deste conjurado, mas dou ainda a conhecer a minuta dum ofício pelo
capitão-mor enviada ao juiz de fora de Melgaço para mostrar a correcção de
proceder perante o crime ou como se desmorona mais uma das atoardas sobre Tomás
das Quingostas:
«Ilustríssimo Senhor
Esta noite passada, das 10 para as 11, se apresentaram na
freguesia de Prado uma malta de guerrilhas e, assaltando as casas de indivíduos
que eu tinha feito armar por ordem do Ex.mo Senhor Marquês de
Angeja, lhe levaram o cartuchame que lhe tinha sido entregue e porque o mesmo
cartuchame era da Fazenda Real e o facto envolve em si decidida rebelião, por
isso o participo a Vossa Senhoria para tomar aquelas medidas e conhecimentos de
própria inerência ao que as leis determinam.
Deus guarde a Vossa Senhoria. Melgaço, 19/8/1827.
Ilustríssimo Senhor Doutor Juiz de Fora de Melgaço.»
[1] Sobespadanio, no original. Trata-se de um estrado de madeira, próximo do
altar, e onde o sacerdote põe os pés. // Pequeno pedestal, peanha.
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