sexta-feira, 4 de março de 2016

LEMBRANÇAS AMARGAS
romance

Por Joaquim A. Rocha 


VIII

         Recuar no tempo é como viver duas vezes


     Repararam como a Bera soube levar a água ao seu moinho? Pois é: anda a tramá-la, mas ainda é cedo para dar o golpe final, o chamado golpe de misericórdia. Com palavras amorosas, com beicinhos e ósculos repenicados, o beijo de Judas, a sublime traição, com engenho e manha, lá vai tecendo a subtil e pérfida teia. Eu continuo a interrogar a minha mãe, a perscrutar o passado, como se ele me pudesse trazer a felicidade ou pelo menos a utópica quimera; ainda não me apercebera que quanto mais recuasse no tempo, mais funestos e sórdidos acontecimentos descobria e desenterrava, mais chafurdava no lodo ancestral. Atentem nesta conversa:

- Mamã, uma coisa que eu ainda não compreendi muito bem foi o avô Gaspar escolher a avó Isaura sendo ela mãe solteira, mãe de três filhos, embora a Maria da Conceição e o Francisco lhe tivessem morrido ainda bebés.
- Não compreendeste, nem é fácil compreender, pois além de ser mãe solteira também era mais velha do que o teu avô sete anos. Acontece que o meu pai quando nasceu, teria dois ou três dias de vida, foi exposto na roda do concelho. A Casa da Roda era administrada pela Câmara Municipal; os pais que não desejassem criar os filhos, por esta ou aquela razão, sobretudo para evitar escândalos, colocavam-nos ali, onde existia uma rodeira que os recolhia, levava à igreja para serem batizados, e após a cerimónia eram entregues a uma ama-de-leite. O teu avô foi criado até aos sete anos pela Justina Melra, falecida antes de eu ter vindo a este mundo, até diziam que ela era a verdadeira mãe dele, não sei, pois na cédula de nascimento não tem o nome dos progenitores, é filho de pais desconhecidos. Ele nunca quis falar dessas coisas. Consta que seu pai era fidalgo. Naquela altura – eles casaram nos princípios deste século – era uma infâmia ter sido exposto, a sociedade não os aceitava, eles viviam aos trambolhões, aqui e ali, nunca passavam de criados de servir, de jornaleiros. As raparigas não os queriam para marido, porque depois era uma vergonha, um labéu, para os seus filhos, para toda a família; além disso, os pais delas também não deixam casá-las com os expostos.             
- Começo a compreender; o meu avô era um enjeitado.
- Infelizmente era; a tua avó já entrara na casa dos trinta e assim arriscou, começou a namorar com ele às escondidas e engravidou da Marília, nasceu em 1903, ficou sendo filha de pai incógnito, depois o padre andou à volta deles e dos pais dela, que mesmo assim não autorizavam o casamento, era uma família honrada, ele iria envergonhá-los. O sacerdote tanto porfiou que lá conseguiu o consentimento e a boda realizou-se em 1905, às cinco da manhã. Nesse dia a minha irmã ficou legitimada.
- A vida é de facto complexa e misteriosa; o meu avô, para além de ser um abandonado, era vadio, tinha grandes defeitos?
- Pelo contrário, era uma joia de pessoa, ele não tinha culpa de não saber quem eram seus pais, até se dizia que o pai tinha sido engenheiro; viera para cá na altura em que fizeram a estrada; esteve por aqui dois ou três anos, arranjando uma criada, a quem fez o favor de emprenhar. Se é verdade ou não, não sei. O certo é que o teu avô tinha bom aspeto, não parecia ser filho de camponês; era uma figura alta, cabelos loiros, olhos azuis, parecia até um fidalgote! Alugava os seus braços à jorna, um mourinho de trabalho; depois do matrimónio começou a fabricar rebuçados, que vendia nas festas do concelho, os quais lhe trouxeram alguma fama, toda a gente o conhecia, e ao seu açafate, era muito popular. A minha mãe ia a Espanha comprar pão, que depois vendia na Vila e aldeias próximas, era preciso ganhar a vida, que eles estudos não tinham, não podiam aspirar a grandes empregos. Ela também negociava em doces e roscas, lá iam arranjando um dinheirinho para sobreviverem, além de terem uma horta e uns campitos, que a minha mãe herdara.
- Depois da Marília nasceu o Vítor…
- Veio ao mundo em 1906. Meu querido irmão, acabaria por morrer doente em 1927, com apenas 21 anos de idade; a terrível tuberculose levou-o. Estava noivo, uma estampa de homem. Era empregado de balcão numa das melhores lojas da Vila, sempre de fato e gravata, não o consigo esquecer. A minha mãe sofreu imenso, era o segundo filho a morrer na flor da idade, o Roberto com dezoito anos e este com vinte e um!
- De facto, o azar tinha-lhes batido à porta.
- Dois anos depois morria-lhes a filha, a minha irmã Marília, com vinte e seis anos de idade incompletos. E com a mesma doença do irmão! Deixava duas criancinhas pequenas, um marido destroçado, uma família inconsolável.
- Em 1929 estava você aqui na terra com a Susana de meses…
- A tua irmã nascera em 1928, tinha poucos meses quando morreu a madrinha dela, a tua tia Marília. Foi um grande desgosto para todos, eles mortos, eu, mãe solteira, crianças como passarinhos, de boca aberta, o país de rastos, a miséria a rondar por perto. Agora vive-se melhor, apesar de tudo, naquele tempo…

- Começo a entender muita coisa; sabe, eu gostava de criticar, considerava-os a todos quase como criminosos por nos terem trazido a este vale de lágrimas, por nos terem deixado passar fome e frio, muitas necessidades, por termos sido filhos sem pai, mas afinal a vida é mesmo complexa, nada, nem ninguém, tem a culpa do que se passa, ninguém escolhe nascer aqui ou ali, nesta ou naquela família, nascemos onde nascemos e crescemos como crescemos, os ricos comportam-se como tal e os pobres, que são a maioria, vegetam e agacham-se porque nasceram sem nada, sem poder. Alguns, poucos, conseguem sair do lamaçal, engrossam o mundo dos que vivem bem, mas sabe-se lá à custa de quê, de que cedências, da sua honra e da própria honestidade.   // continua...        

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