O EMBARQUE
Eram três horas da tarde. Henrique,
sentado na esplanada, espera o seu grande amigo Cândido. Sabe que a história
ainda está no princípio e a parte mais importante, passada em África, ainda
está por contar. Quer saber tudo em pormenor.
Os
ex-combatentes não publicaram, até essa altura, absolutamente nada sobre a
guerra colonial, uns por não saberem escrever, outros, quem sabe, por não
quererem falar de coisas tristes, de acontecimentos que os marcaram negativamente
para toda a vida. Era um privilégio ouvir da boca de um ex-soldado uma narração
completa sobre essa satânica guerra que tantos mortos e feridos provocara.
Por fim chega o nosso Cândido. O amigo,
depois de o cumprimentar efusivamente, dispara à queima-roupa:
- Ainda se lembra do dia da partida?
- Recordo-me tão bem! Como se todos os
cronómetros do planeta tivessem parado! Ali, naquele infausto dia, naquele
local. Vinte de Janeiro de 1966. Cais do Conde de Óbidos. Manhã cedo. O barco
estava à nossa espera… Chamava-se Uíge e era gigantesco, semelhante à goela de
um monstro que nos queria devorar. Esperava os “mártires da pátria”.
Eu, que odiava toda e qualquer
violência, encontrava-me naquele sítio no papel de belígero para tomar parte
activa na contenda! Para ir lutar contra indivíduos que defendiam a autonomia e
a independência da sua nação, tal como os portugueses o fizeram no tempo de Dom
Afonso Henriques, Dom João I e Dom João IV.
Henrique, que bebia sofregamente
todas as palavras do amigo, interrompe-o a fim de lhe colocar a seguinte
questão:
- E no princípio do século XIX, aquando
das Invasões Francesas, os portugueses não lutaram, também, pela sua independência?
Cândido meditou um pouco sobre o
assunto, não desejava dar uma resposta precipitada, a História era uma coisa
muito séria, merecia todo o respeito. Por fim disse:
- Sim, é verdade. Governava então a
França o célebre Napoleão Bonaparte, que andava às turras com a Inglaterra,
país nosso aliado desde o tempo de Fernando I. O imperador francês deu ordens a
Portugal para não permitir que os barcos ingleses entrassem em portos lusos,
mas o regente (futuro D. João VI),
que se encontrava no Brasil (a Corte deslocara-se
para lá pouco tempo antes das invasões francesas) não acatou tal ordem.
Bonaparte manda invadir por três vezes Portugal, mas com a ajuda dos ingleses
lá nos livramos de tal gente.
Henrique ouviu tudo com atenção,
mas não concordava com uma coisa:
- Há quem afirme que a ida da Corte
para o Brasil se justifica plenamente!
Cândido, democrata por excelência,
não contesta essa ideia:
- É polémica essa asserção; é certo que
a rainha D. Maria I estava muito débil, já não decidia nada, e o seu filho,
futuro rei, não era, segundo dizem, homem de grandes rasgos. Se têm ficado
prisioneiros dos franceses não seria bom para eles, nobreza, mas para o país
certamente seria melhor, pois os franceses teriam desenvolvido Portugal, ao
contrário dos reis que nada fizeram. Na primeira metade do século XIX não havia
indústria, nem transportes, o comércio era insignificante, o analfabetismo
rondava os 90%.
Henrique tudo escutava. Gostava de História, sobretudo a de Portugal.
Para alimentar a conversa, atirou com mais uma acha para a fogueira:
- E as colónias? Tão ricas, e não
produziam nada?
Cândido, depois de ponderar a
resposta, afirma categoricamente:
- Há um lapso na História de Portugal
que carece de emenda: os portugueses do século XV não foram, em princípio,
conquistar ou descobrir terras, pois a que tinham chegava bem para a população
dessa altura, bastante reduzida, mas sim procurar, através dos oceanos, as
fontes, as origens, dos artigos necessários ao consumo da nobreza e da alta
burguesia, as famosas especiarias, a fim de deixarem, desse modo, de estar
dependentes dos mercados venezianos e de outros, que os compravam ao oriente e
os vendiam na Europa a preços exorbitantes. Além disso, iam alargando o mercado
para os nossos próprios produtos.
- E dilatar a fé… acrescenta Henrique.
- A fé? Por detrás dela há sempre
razões económicas, não te esqueças. O infante Dom Henrique, Dom João II, Dom Manuel
I, tentaram conciliar ambas. Por outro lado, os mandões da igreja católica eram
quase todos nobres, filhos do rei ou do duque, enfim, poderosos. Não te lembras
que depois da morte de D. Sebastião foram buscar o cardeal para ser rei?!
- É verdade. Havia uma grande ligação
entre a Igreja e o Estado. A 1.ª República acabou com essa promiscuidade, mas
Salazar voltou a pôr tudo como dantes.
- Amigo Rique: quando os portugueses
chegaram a África, à Ásia, à América, a todo o lado, essas regiões já estavam habitadas,
salvo as ilhas de Cabo Verde que, devido às suas condições climatéricas e à sua
pequena dimensão, não atraíam quem quer que fosse para aí viver: ninguém as
cobiçava.
E empolgado prossegue:
Em
quase todas as regiões contactadas pelos portugueses havia um mínimo de
organização: tinham um Estado, embora rudimentar e tribal (como esquecer Gungunhana, imperador dos vátuas? Os portugueses
obrigaram o desgraçado a colocar-se de joelhos e depois trouxeram-no para
Portugal, tendo morrido, já no século XX, nos Açores), formavam, ou
constituíam, uma nação. É certo que muitos se guerreavam entre si, alimentavam
ódios milenários, mas o que se vê hoje no mundo dito civilizado?
Henrique estava arrebatado com a conversa.
Como repto, lançou a pergunta:
- Não acha que esses povos se
identificaram com os portugueses?
Cândido parece ter ficado
desarmado perante aquela pergunta. No entanto, e senhor de um pensamento
consistente, respondeu:
- O que me perguntas é pertinente, mas
quanto a mim esses povos aceitaram bem os lusos como comerciantes e não como
dominadores. Resistiram quando os nossos quiseram ir além do que permitia a
hospitalidade. Meu caro amigo: lê, se ainda não o fizeste, o maravilhoso livro
de Fernão Mendes Pinto, com o título «Peregrinação».
Nele se descreve, com certa minúcia, o deambular dos nossos antepassados por terras
da Ásia, e como eles foram vistos por essas gentes de costumes e mentalidades
tão diferentes dos nossos.
Henrique respirou fundo. O tema da
conversa interessava-o imenso. Na escola não aprendera assim a História. Mas
quem teria razão?! Faz um reparo:
- Quanto a Fernão Mendes Pinto já li
alguns excertos do livro e na escola disseram-me que metade do que escreveu é
mentira. No entanto, vou tentar ler a obra completa e depois já falaremos dela.
- Nem tudo que ele escreveu
corresponderá à verdade; contudo, ele participou em muitas aventuras, percorreu
muitas terras, conviveu com gente de outras latitudes e com culturas e
religiões diferentes da sua. Mas com toda esta conversa ia-me esquecendo de te
contar o que de facto aconteceu aquando do meu embarque para a Guiné-Bissau.
Foi assim: antes do embarque, que
ocorreu mais ou menos ao meio-dia, houve um grande desfile e depois disso
ouviu-se um longo e fastidioso discurso, proferido por um oficial de alta
patente. Duvido que os familiares dos soldados, ou os próprios, prestassem
atenção àquilo (eu nem sequer sei de que
falava); o que ouviam (e eu ouvi)
era o bater forte de corações despedaçados; as lágrimas caindo estrepitosamente
no chão; os gritos de mães, esposas, irmãos. O distinto militar não discursava
para ninguém – representava o apagado papel de pobre declamador sem público!
As senhoritas do Movimento Nacional Feminino por lá andavam, como
abutres agoirando, pressagiando a desgraça, distribuindo sorrisos cínicos e de
circunstância e alguns maços de tabaco aos meus parceiros de armas, cujo vício
já carregavam, infelizmente, desde crianças!
Uma banda militar tocou o hino nacional: «heróis do mar…», e o barco a afastar-se, a afastar-se… Nossos
olhos, embaciados pelas lágrimas, procuravam sofregamente os rostos queridos
dos familiares e amigos, das namoradas… Nunca mais voltaríamos a vê-los,
pensávamos!
Henrique estava profundamente emocionado.
O que ouvia não era uma pequena história romanceada. Aquilo acontecera! Ao seu
amigo e aos outros, a milhares de jovens portugueses. Após um prolongado
silêncio, por fim reagiu:
- O que importa é que o Cândido voltou,
e com saúde.
- Com saúde… nem por isso! Fiquei sem
alguns dentes, com problemas de estômago, com… Enfim! Não vale a pena falar
disso. Vou-te ler um soneto que escrevi recentemente sobre a partida, a que dei
o título A Caminho da Guerra.
Naquele triste vinte de Janeiro,
Com correntes fortes, amordaçado,
Cabisbaixo, o peito destroçado,
Parte sofrendo o fraco guerrilheiro.
Manhã fria, manhã de nevoeiro,
Desenha a silhueta do soldado:
Estatura média, adelgaçado,
Um andar pacato, olhar ordeiro.
Sobe, a chorar, os degraus do paquete,
Do bolso das calças um branco lenço
Agita num gesto de despedida;
Com a mão esquerda brande o barrete.
Depois, já no navio, perde o senso…
E cai sobre a intermitente vida!
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