LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
... (continuação)
- Boa tarde mestre, e boas tardes também tio Anacleto. Então os
meus sapatos estão prontos?
- Prontinhos e a brilhar. Quer que lhos embrulhe?
- Não é preciso, já os levo calçados e deixo cá estes; bota-lhe
meias-solas, que me deixam entrar a humidade. Quando mos dás prontos?
- Para a semana; lá para quarta ou quinta-feira já os pode vir
buscar.
- Põe na conta estes, que para a semana pago tudo, o patrão diz que
me vai aumentar o salário, agora precisam de nós, vai toda a gente para o
estrangeiro; que remédio, senão ninguém trabalhará para esses senhores. Bem nos
exploraram durante estes anos todos, agora somos nós que mandamos, ainda não,
mas já não falta muito, iam-nos comendo a carne e depois botavam-nos os ossos
fora, aos cães, mas agora começamos a estar na mó de cima.
- Ó tio Guilherme, estava a dizer aqui ao tio Anacleto que talvez
vá para França, não me está a agradar a ideia de ir para o quartel, aquilo
segundo dizem é tramado, passa-se fome de cão e um tipo anda de canga no
pescoço, como os bois, todos mandam no desgraçado que lhes cai nas mãos. O pior
é o raio do dinheiro, está difícil de arranjar.
- Pede ao meu patrão, esse deve ter algum, mas é um forreta, um
somítico, um avaro judeu, não dá uma esmola a um pobre. Ainda outro dia foi lá
o Orlando, também quer dar o salto, e saiu de lá com as mãos a abanar. Depois
lamenta-se: - «gostaria tanto de ajudar
esta gente, vão ter de ir para a guerra, mas não tenho dinheiro, o pouco que
vou ajuntando é para a minha velhice, um homem depois não pode trabalhar, não
tem nenhuma pensão, tem de se valer do que ajuntou; que vão pedir ali ao
Atílio, esse sim farta-se de ganhar dinheiro com o contrabando, agora anda no
negócio do café e dos relógios, esse é que o ganha, mas não se descose, vive
como um pedinte, o miserável, podia ajudar os rapazes que querem emigrar, eles
depois pagavam-lhe, até com juros, mas está-se nas tintas, o que ele quer é que
não o chateiem.»
- Se não emprestou dinheiro ao Orlando muito menos o emprestará a mim,
que eu a ele não lhe sou nada, o outro ainda é primo afastado, o maroto do senhor
Atílio é que o tem, mas esse é como o seu patrão diz – só vê o próprio umbigo. // (continua)...
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