ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Manuel Igrejas
TEMPOS DE CRIANÇA
Ao olhar
atentamente para uma fotografia inserta no número 966 de A Voz de Melgaço, de 1
de Julho de 1992, apercebi-me como o tempo passa! Nela está o Zé Miguéis, o
cabelo emigrando, cara de vovô! Veio-me então à memória a nossa meninice
passada a brincar naquele casarão perto do Cine Pelicano. Como seu pai já tinha
falecido, o José vivia com a mãe, D. Sara, com a irmã, Lalá (Laura), com o
irmão, Toninho, e com seu avô paterno, um velho marinheiro já reformado. A sua
mãe, uma senhora muito bondosa, deixava-nos utilizar uma sala enorme do
rés-do-chão, uma espécie de armazém, com traves à vista, pelas quais passávamos
uma grossa corda que atávamos a uma tábua, preparada previamente para esse
efeito, servindo-nos assim de baloiço. O José distinguia-se das outras crianças
pela educação esmerada, pelo asseio das suas roupas. Nós vestíamos de qualquer
maneira! Díziamos asneiras com o à-vontade de uma varina; pelejávamos como
autênticos arruaceiros; roubávamos fruta por prazer e por necessidade. O José
Miguéis, não! As nossas brincadeiras com ele eram só entreportas. Mesmo assim
ele não pôde evitar alguns insultos e ameaças das crianças semi-selvagens que
nós éramos! Ainda na adolescência, suponho, foi para o Brasil. A sua irmã, que
tinha casado com um dos filhos do fotógrafo e taxista, senhor Pires, e já aí se
encontrava, mandou-o ir para a sua beira, convencida talvez de que nesse grande
país ele encontraria condições de vida melhores do que em Portugal. Segundo me
informaram, há uns anos atrás visitou Melgaço. Não reconheceu ninguém, e poucos
o reconheceram a ele! Apesar de tudo, prometeu voltar; a nossa terra deixa
sempre saudades. Mas voltando à meninice. Naquele tempo éramos quase todos
pobres: uns mais do que outros; mas para os mais pobres os filhos dos
comerciantes eram muito ricos! Os filhos dos taberneiros eram considerados
ricos! Claro que havia em Melgaço ricos a valer. Contavam-se, no entanto, pelos
dedos das mãos. Mesmo em pobreza a vida em Melgaço não decorria sob o signo da
tristeza ou do pessimismo. Existia uma grande alegria de viver, um convívio
saudável, apesar das constantes escaramuças travadas entre mulheres, mas logo
esquecidas para mais tarde poderem ser recomeçadas! Os homens, de uma maneira
geral, não se metiam nas brigas das esposas, pois consideravam isso indigno de
um verdadeiro latino. Essas rixas começavam muitas vezes no tanque público,
algures no Rio do Porto, aonde as mulheres iam lavar a roupa. Nesse tempo não
havia a máquina de lavar e as mulheres juntavam-se no lavadouro; com as suas
frágeis mãos lavavam toda a roupa da casa, e aproveitavam também para lavar a
«roupa suja» das vizinhas. Ali nada ficava por dizer: eram “curtas” e
“compridas”, “badalhocas”, “alcoviteiras” e “borrachas”! As crianças, que
acompanhavam as suas mães, tudo ouviam e decoravam – eram as primeiras lições
de um curso ao ar livre. Esses palavrões seriam depois atirados como setas aos
rapazes mais velhos e até mesmo aos adultos!
D. Sara não se
servia do lavadouro público. Ia lavar a sua roupa à Quinta da Fonte da Vila,
graças à amizade que mantinha com as proprietárias. Desse tempo ainda me lembro
também dos rapazes das Carvalhiças – tinham fama de valentes e maus. Faziam
equipas de futebol que jogavam com os da vila e raramente perdiam. Durante e
após os jogos travavam-se alguns combates a murro e a pontapé; nisso também não
se lhes pode negar a vitória. Um deles, o Zé da senhora Emília, bom a jogar e a
bater, foi mais tarde pugilista em França – pobres dos adversários! Eu era um
lingrinhas, mas apesar disso lá me ia metendo nos barulhos. Levava grandes
coças, mas nunca desistia. Pior do que eu só o desgraçado do Zé do Mi. A avó,
Tia Amália, quando o chamava era quase sempre para lhe bater! «Ó Zé! Anda cá, rapaz!» O Zé esquecia-se
de fazer os recados, pois a paródia para ele estava sempre em primeiro lugar, e
depois a velhota não perdoava. Ele, sabendo aquilo que o esperava, vestia um
casaco enorme e aproximava-se da avó como o condenado se aproxima do carrasco!
Gritava a altos berros, não sei se de dores se de puro fingimento – o Zé era
capaz de tudo! Sentíamos um pelo outro uma amizade profunda, mas isso não
impedia que brigássemos como dois inimigos declarados – a idade assim o exigia.
Um dia fomos uns quantos chamados ao posto da Guarda Nacional Republicana.
Tínhamos “roubado” lenha ao senhor António “Lareiro”, lá para os lados do rio. Éramos quatro ou cinco: eu, os filhos da
senhora Emília, e o Mário “Cuco”. O caso estava feio. Um dos guardas
ameaçou-nos até com a casa da correção! Não era por causa da lenha, dizia; mas
sim porque tinha aparecido uma pequena árvore derrubada. Nós, crianças de oito
ou nove anos a derrubar árvores! Para susto, bastou. A fruta também nos trazia
alguns dissabores; porém, nada, nem ninguém, conseguia dissuadir-nos de
saborearmos, sem sermos convidados para tal, aqueles apetitosos manjares que a
mãe-natureza nos oferecia. As uvas, as ameixas, os pêssegos, as maçãs de São
João (tão vermelhinhas), as tangerinas, tinham em nós os seus mais ferverosos
admiradores, mas comidas lá, pertinho da árvore! Até os filhos, ou netos, dos
donos nos acompanhavam! «Fruta roubada é
a mais saborosa», diziam. Agora já ninguém faz isso. Os “ladrões” de palmo
e meio desapareceram – a fruta cai das árvores, talvez zangada com as crianças
que não lhe ligam. Preferem os chocolates, os doces de pastelaria, as pastilhas
elásticas! Os costumes são outros. A emigração em massa veio alterar muitas
coisas. Nós, terminada a instrução primária, tínhamos de aprender um ofício,
deixar a brincadeira, contribuir para o sustento da casa. Seguir estudos não
estava nos horizontes de quase ninguém. Quando o ano passado assisti a uma cena
na esplanada do Terreiro fiquei horrorizado: três jovens, não teriam mais do que
quinze, dezasseis anos de idade, consumiam champanhe, ou espumante; às tantas,
já fartos de beber, deitavam a bebida uns aos outros, como costumam fazer os
vencedores de provas automobilísticas! Que pagaram com dinheiro deles, pagaram,
mas três jovens, talvez estudantes, a gastarem assim o dinheiro em bebidas
caras, a estragar, enquanto seus pais fazem economias para lhes proporcionar um
curso médio ou superior para que não tenham de trabalhar no “duro” como
aconteceu com eles. Nós jogávamos com bolas de trapo; hoje jogam com bolas que
custam algumas notas; nós bebíamos água ou vinho da região; eles bebem, sem
vontade, bebidas de luxo. Os governantes voltam a falar em tempo de «vacas
magras!» Esperemos que essa magreza seja relativa.
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 969, de 1/9/1992.
Nota: infelizmente o Zé Migueis já nos deixou.
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