DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
As cartas de um castrejo
8.ª - «Senhor
Redactor: esqueçamos todas as contrariedades
a afrontar, temos vistas largas para todas as misérias que nos rodeiam e a alma
disposta aos maiores sacrifícios; plagiando o imortal Camões: “braços às armas
feito”, alma dedicada a tudo, tudo o que redunde em benefício da nossa pátria
querida. Os jornais que juncam a nossa mesinha de trabalho (…), onde à luz dum
candelabro de latão lemos com frenesi, noticiam o rompimento de relações de
Portugal com os impérios centrais – Alemanha e Áustria. Nós, que fomos à
inspecção e que a sorte nos livrou (…) e os nossos conterrâneos que por uma
aversão inata ao serviço militar, estejam julgados refractários, todos os castrejos,
enfim, aonde pulse um coração, nem por sombras lhes passa pela mente, agora,
que a pátria tem de defender a sua autonomia,
eximirem-se aos sacratíssimos deveres de, por ela, arriscarem o sangue e a vida
– dando-os, se preciso for. A nossa caçadeira dorme, com gáudio dos javalis,
que por aí enxameiam e nos fazem estragos consideráveis; (…) e as balas
espreitam a ocasião de entrarem em cena; pois, para o resto, cá está a nossa
energia, provada pela tenaz resistência que opomos a todas as inclemências dos
homens e dos elementos. Temos a maior fé no Ministério constituído há dias, sob
a presidência do Dr. António José de Almeida. (…). // Senhores: é verdadeiramente impossível e insustentável este estado de
coisas. Nós, que passamos a vida neste meio inverneiro, só tarde, muito tarde,
nos chegam as notícias; mas que de desmandos, e o que nos ferem a alma! No dia
15 passado, quando de Porto-Malhão, propriedade fronteiriça e pertencente aos senhores
Domingos Gregório, Manuel Alves Canelas e António Afonso, de Portelinha, Castro
Laboreiro, conduziam os seus gados para o povoado - gados que, registados cá
tinham a certidão na aduana de São Gregório – a fim de certificados de lá e de
cá, poderem transitar nos dois países; como a Guarda Fiscal daqui o não
entendesse assim, apreendeu os gados daqueles senhores, que pagaram uma multa
considerável. Desconhecemos, por completo, as leis aduaneiras – decerto por
sermos uns lorpas, pouco curiosos; mas queríamos – e exigiremos quando a lei
não seja um mito e as razões não sejam fictícias, e quando a Guarda Fiscal, em
vez de lei busque pretextos frívolos e insofríveis, os seus superiores lhe apontem
e imponham o caminho do dever – que
só é áspero e duro para quem não está habituado a cumpri-lo. Temos um avisinho
a fazer ao comandante do posto fiscal desta freguesia: é que, doravante, não
busque, pelo terror, subtrair-nos direitos; mas, sim, que consulte os seus
superiores hierárquicos, sabedores e conscientes. Calamos, até ver. // No dia 17, as neves que em montanhas álgidas
e alvas se aglomeravam por estas redondezas, começaram a derreter-se. Os
riachos tornaram-se caudalosos; mas as nossas patrícias recomeçaram o seu
tráfico diário. // No posto do
registo civil desta freguesia há deslizes… É de justiça, demais a mais, para um
castrejo “pur sang”, nado e criado aqui, que atenda com a máxima urbanidade e
correcção – qualidades que, aliás, estão ligadas ao seu belo carácter, as
reclamações de quem, a não lhe bastarem os incómodos morais, vai esbarrar com
ápices inesperados e pouco justos. (…) // Outro caso grave e para que chamamos
a esclarecidíssima atenção da digna autoridade administrativa: gado e cereais
estão sujeitos a uma guia de trânsito, passada pela autoridade administrativa
da freguesia – Regedor… Pois, se cada lugar tem um cabo de polícia, porque este
não fará as funções de regedor, muito especialmente entre nós, onde os lugares
estão muito distanciados? Esperamos de S. Ex.ª mais este melhoramento, tão
justo como imprescindível para esta freguesia. // (…) O acaso fez-nos lembrar a
afirmativa que fizemos aqui, de que Castro Laboreiro não exportava milho; e,
assim, se não com precisão matemática – porque só sabemos as quatro operações
aritméticas, e estas deficientemente, pois no-las ensinaram os picos, os
cinzéis e as brocas – ora por terras
de Castilha (…), ora nas linhas da Beira Alta (…), ao menos com boa vontade e
com a certeza de convencermos ainda os mais incrédulos de que importamos milho
só exclusivamente para o consumo da freguesia. Temos 875 fogos que, a cinco
alqueires, média mensal, gastam 4.365 alqueires. Em dez meses (pois supomos que o centeio colhido dará para dois) precisamos
de 43.650 alqueires de milho! Imaginem, os que nos pensam exportadores, que,
durante um ano, precisam entrar por Portelinha 7.275 mulas, com um carregamento
de seis alqueires cada uma; e, por dia, vinte, sem guardarem dias santos, nem
recearem afrontar as neves e os medonhos temporais! Convenceram-se? Pois não
são tantas as récuas de mulas que nos visitam carregadas do bom cereal. Castro Laboreiro, 23/3/1916.»
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