ENTRE MORTOS E FERIDOS
(Dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
Por Joaquim A. Rocha
... (continuação)
- Mais
um observador. Foi lá, onde vira a luz do sol pela vez primeira o infante D.
Henrique, que eu entendi verdadeiramente o que queria dizer prostituição. Certo
dia, já quase noite, caminhava tranquilamente por uma rua esconsa quando uma
esguia mão me puxa e voz roufenha, voz de bagaço e de tabaco, me pergunta: «Não queres vir comigo?!» Senti um
calafrio a percorrer-me o corpo, tive receio, e afastei-me rapidamente, como
esquilo na mata quando se apercebe do perigo iminente. A alguns metros de
distância, ainda ouvi a criatura resmungar: «Chulo, paneleiro, cabrão!»
Instintivamente, rebuscando na memória frases que ouvira na infância e na
adolescência, quando alguém corria algum risco, e queria esconjurar o mal,
pronunciei: «Vade retro, Satanás!»
Henrique,
até ali muito sério, soltou uma estridente gargalhada! Depois disse:
- Eu
não acredito! Você a fugir duma rameira! Não acredito!
- Tu és
um homem da capital, habituado, desde criança, a ver prostitutas, a observar o
seu comportamento, a lidar com elas, provavelmente. Eu não; na minha terra não
havia nada disso. É certo que havia mães solteiras, mas normalmente ficavam
grávidas dos namorados, ou dos patrões, e até há quem diga que dos padres! Na
cidade do Porto, e aqui em Lisboa, as mulheres de vida fácil vendem o corpo
mediante um pagamento pré-estabelecido! Têm um preço! Não há amor, atracção
física, nada! Nem sequer se conhecem! A minha mente não está preparada para
perceber esta actividade humana.
- Você
é um moralista!
- É
verdade. Reconheço-me como tal. De meia tigela, mas um moralista. Um antiquado,
um conservador. Para mim, se possível, só existiriam coisas boas no planeta.
Amor, amizade, segurança, paz, verdade… O ódio e a guerra não teriam lugar no
meu universo.
- Um
sonhador, é o que você é, Cândido. A religião marcou-o imenso.
- É
verdade, mas felizmente libertei-me.
-
Restam resquícios…
- Não,
acho que não. Parece que foi Marx que afirmou qualquer coisa como «a
religião é o ópio do povo». A minha vida agora pauta-se por princípios
filosóficos e racionais. Estou esperançado em que um dia, não muito longe, as
pessoas se tornem melhores, compreendam que a felicidade cabe num grão de
areia.
Gerou-se
um breve silêncio. Então Henrique interveio, a fim de salvar a situação:
-
Desculpe Cândido. Por minha causa interrompeu a narrativa.
- Não
faz mal. Não te lamentes. A reflexão também faz parte da vida. Estava a dizer…
Sabes que meditei profundamente no caso e contei-o depois a um colega de
camarata. Por pura coincidência, ele nascera e residia no Porto. Explicou-me
tudo sobre a mais antiga “profissão”
do mundo e também sobre a homossexualidade. Ele próprio, confessou-me,
arranjava uns cobres “indo” com
invertidos! Diz-me ele, com uma desfaçatez tremenda: «Eh pá! é preciso um gajo desenrascar-se!» «E não tens nojo»?! – indaguei. «Nojo?! Há maricas que usam
perfume como as mulheres.» Não quis prolongar essa conversa escabrosa,
nojenta... Já estou um bocado baralhado… Onde é que eu ia?
-
Disse-me que os dois meses no CICA-1 estavam prestes a terminar.
- Pois
é. A recruta. Findou. Sessenta dias terríveis, mesquinhos, para esquecer. A
chamada especialidade viria a seguir, em Infantaria 6. Para trás ficava muito
sofrimento, mil vexames, um cerimonioso juramento de bandeira, cuja fórmula
resumiam assim, por reinação, alguns recrutas: «juro e jurarei que ao pré e ao
rancho jamais faltarei».
Contudo, não foi tudo mau: o nosso instrutor
de condução era uma boa pessoa. Soldado, como nós, estava no quartel há pouco
mais de um ano. Como tinha a carta de condução de pesados e ligeiros, e o
exército precisava de instrutores, por ali ficou. Embora tivesse algum poder
sobre nós, os instruendos, não o exercia ditatorialmente; era de opinião de que
nem todos têm jeito para conduzir um carro, sobretudo esses monstros
pré-históricos que o exército teimava em utilizar. Quantas vezes ficavam pelo
caminho. O mecânico militar tentava dar-lhes conserto, mas, coitados, a sua
vida útil tinha terminado. Sentíamos imenso respeito por ele, e muita estima.
Tirámos algumas fotografias juntos, que eu guardo com carinho.
- Ao
longo da vida vão-se encontrando pessoas com bom coração.
- É
verdade. Embora raras, mas aparecem. Conheces-me bem e sabes que eu não sou
muito expansivo, mesmo assim tenho conseguido algumas amizades sólidas. Bem, a
tarde vai caindo, vem a noite, a hora do jantar, já estou com o estômago a dar
horas, amanhã é outro dia de trabalho e de estudo.
- No
próximo domingo cá estaremos de novo - promete Henrique, com entusiasmo.
- Não
faltarei por nada deste mundo. Só uma grande desgraça, um imprevisto, me
impediria de comparecer.
- Então
adeus!
3 .º Capítulo
INFANTARIA 6
Uma
semana passa depressa. É a juventude. Na velhice o tempo já custa a passar,
apesar de se saber que a morte está próxima. Tudo isso está relacionado com a
solidão e o sofrimento.
Depois de um aperto de mão, de um sorriso conivente, ei-los sentados na
mesa do Café. Cândido reinicia o relato:
- O
quartel, enorme, situava-se na freguesia de Custóias, ou Senhora da Hora, já
não me lembro, a geografia nunca foi o meu forte; sei que ficava no concelho de
Matosinhos, a alguns quilómetros do Porto. Havia aí mais asseio do que no
CICA-1: as camas bem-feitas (andava
amiúde um cabo a fazer a inspecção – bastava um pormenor insignificante para
ele mandar logo desfazer tudo e fazer de novo), com as fronhas bem
esticadas; armas sempre limpas e oleadas; todo o equipamento sempre em ordem.
Mas nas relações com os superiores, mesmo da classe mais baixa: cabos,
furriéis, sargentos, notava-se uma maior distância. A bandalheira tinha
acabado!
- E
vocês, o que faziam durante o dia? – perguntou
Henrique, somente para lembrar que estava ali.
- Metade
do dia, entre as sete e as doze horas, destinava-se a exercícios físicos, a
manejar armas, montar e desmontar, e fazer fogo; a outra metade, das treze às
dezoito, empregava-se na condução.
- E as
viaturas, estavam em bom estado?
- Eram
velhas, pesadas, desprovidas de conforto, com assentos mostrando as grossas
molas, a cheirarem a óleo queimado; deixavam, por vezes, ficar mal o nosso
monitor. Eram autênticas carroças! Quedavam avariadas nos sítios mais díspares,
à espera que o mecânico aparecesse para reparar a avaria, quando tinha conserto!
- Como
é que o exército podia preparar bons condutores com viaturas tão velhas e
ruins?! – empertiga-se Henrique, num
gesto de revolta.
- Eles
finalmente compreenderam isso. No estio de 1965 o governo adquiriu à França, ou
à Alemanha, não sei bem, para as Forças Armadas, alguns carros novos. Faço
ideia o que deve ter custado ao Salazar! Forreta como era, esse dinheiro deve-o
ter chorado o resto da vida.
- A
partir daí, carrinho novo em folha…
-
Estás enganado! Eram poucos, não dava para abastecer todos os quartéis do país.
A nós só calhou um pesado e um jipe. Tivemos que continuar com os trambolhos.
Mas
continuando… Sargentos e oficiais extremavam-se em antipatias. Consideravam,
assim penso, o pobre soldado, uma massa disforme, não pensante, com cérebros do
tamanho de uma pulga. Tratavam-no bem pior do que se trata o camelo no deserto:
montando-o a seu bel-prazer, sem sequer para ele olhar – no entanto, não podiam
dispensá-lo! Embora fôssemos a razão de ser da sua profissão, jamais perdiam
uma oportunidade para humilhá-lo, ao zé-ninguém, calcá-lo aos pés,
espezinhá-lo, para lhe mostrar que ali, no quartel, ele, soldado, igual ao sujo
chão, não riscava nada, era uma formiga à beira de um elefante! Mina, de onde
extraíam toda a sua riqueza, faziam tudo para ignorá-lo; não o conseguindo,
exigiam-lhe que vergasse a cerviz!
- Você
ficou traumatizado – sentenciou Henrique.
- Não
era para menos, meu amigo. O pobre do magala vivia o seu dia a dia amedrontado,
inseguro. E não se podia queixar a ninguém! Se se queixasse, fosse do que
fosse, ai dele: seria imediatamente trucidado, atirado à lúgubre masmorra, às
leoas famintas, onde permaneceria dias infindos, até ser devorado, ou transformado
em mera serapilheira.
- Não
havia pelo menos um oficial que estimasse os subordinados?
- Bem,
um ou outro superior, tratava o pobre coitado com mais humanismo, com mais lisura
– as excepções à regra. Porém, os seus iguais, não gostavam dessas “cortesias” e quase os odiavam por isso.
Não perdoavam a sua “fraqueza”.
O sofrido tempo, como tudo na vida, passava.
Depois de termos percorrido quase todas as estradas do norte e feito imenso
fogo com a vetusta mauser na carreira de tiro de Espinho, provocando-me dores
insuportáveis nos frágeis ombros, por pouco quebrando a omoplata…
- E
não punha nada para se proteger? – pergunta
com espanto o jovem Henrique.
- Eu
usava, como me tinham sugerido outros jovens, uma toalha por baixo da camisa, mas
o diabólico instrutor deu por isso. Ministrou-me uma tareia monumental:
pontapés e bofetadas mil! Nunca esquecerei esse dia. Ele berrava que nem um
possesso: «quero ver se levas para a
guerra a toalha, menino da mamã!»
- Não
se trata assim um ser humano – lamenta
Henrique, indignado com tamanha agressividade.
- Nós
não éramos considerados seres humanos, mas sim máquinas de guerra, coisas
execráveis, tratados pior, quem sabe, do que os presos na cadeia! Nos discursos
dos governantes nós éramos os «Soldados de Portugal», com letra maiúscula; nos
aquartelamentos éramos os cães raivosos, a escumalha, sacos de lixo!
- E os
outros, como reagiram?
-
Ficaram indiferentes! Não era nada com eles. Continuaram a disparar para
aqueles alvos, bonecos de madeira, parecidos connosco, os quais estavam a uma
distância enorme, perto da praia. Eu fui dos piores em tiro ao alvo, salvo erro.
Para disparar bem é necessário que o espírito esteja sossegado. Eu, na tropa,
nunca estive bem.
- Você
é anti-militarista.
-
Podes crê-lo. Fui sempre, desde que nasci, praticamente. Nunca gostei de gente
que dá ordens por tudo e por nada, de domadores de cérebros, de parasitas que
vivem, a bem dizer, do orçamento. Nada produzem e muito gastam.
- E das
polícias? O que pensa delas? – perguntou
Henrique com alguma expectativa.
- É
diferente. A Polícia de Segurança Pública, a GNR, a Judiciária, e outras, são
necessárias para combater o banditismo, a ladroeira, os assassinos, etc. Não
tem comparação, embora eu, se tivesse poder, talvez fundisse a GNR (conotada com os militares) com a PSP. E
outra coisa: criava (ou desenvolvia, caso
já exista) uma polícia marítima, com equipamentos sofisticados: óptimos
helicópteros, lanchas rápidas, etc., a fim de defender a nossa costa, tanto dos
pescadores estrangeiros que roubam o nosso pescado, como dos traficantes de
droga, armas, e prostituição, além de impedir a entrada de imigrantes
clandestinos; criava também uma polícia aérea, para vigiar, do ar, todo o nosso
território e prevenir incêndios. Ambas as polícias teriam um comando comum.
- E as
Forças Armadas?! – interroga Henrique, incrédulo com aquilo que ouvia.
-
Acabava com elas, obviamente.
-
Contudo, elas derrubaram o regime que você tanto detestava – lembrou Henrique, quase num desafio.
- É
verdade, e ainda bem que me falas nisso. Porém, não te esqueças que também
foram elas que, em Maio de 1926, derrubaram a 1.ª República, dando assim azo a
que surgisse o chamado Estado Novo. O “edifício”
salazarista desmoronar-se-ia, mais tarde ou mais cedo, por si próprio. «Nada
é eterno». Depois da morte do chefe, os seus herdeiros de regime já não
se entendiam. Era uma questão de tempo. Exemplos desses existem em todo o lado.
Repara: Marcelo Caetano não era bem visto pelos ultras e pelo director da PIDE
– algo iria acontecer brevemente; a situação política teria que se definir.
Fosse quem fosse que ganhasse o poder, algo teria de mudar. Por outro lado, os
militares que fizeram o 25 de Abril de 1974 não estavam todos, como sabes,
imbuídos do espírito revolucionário – muitos deles queriam era acabar com a
guerra colonial.
- Por quê?
Sendo militares, deviam gostar da guerra! – espicaça
o jovem Henrique.
- De
certo modo gostavam. Simplesmente já lá iam treze anos! Alguns desses militares
de carreira tinham combatido em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Estavam
cansados, fartos desses conflitos. E outra coisa: aquela guerra não era
clássica, não prestigiava quem nela combatia. Os soldados da FRELIMO, por
exemplo, andavam mal vestidos e alguns deles descalços! Se não fossem ajudados por
vários governos, morriam à fome. Um oficial desse exército, em termos de
eficácia, não valia um soldado americano. Os combatentes de Angola não se
entendiam entre si! O MPLA tanto odiava o exército português como o da UNITA!
O
pequenino Napoleão Bonaparte granjeou prestígio porque venceu algumas batalhas
a generais famosos; não é o mesmo que ganhar a maltrapilhos! Além disso, a
África não é para brincadeiras, é perigosíssima: o clima, as febres... E há
outra coisa: o governo, como estavam a faltar oficiais de carreira: alferes,
tenentes e capitães, toca a promover milicianos a esses postos, sem terem
passado pela Academia Militar! Eu conheci um alferes que tinha apenas o 3.º ou
4.º ano do liceu! Fora o melhor aluno no curso de furriéis, um militarista
ferrenho, cara de pau, e por isso passou para a escola de oficiais; se continuasse
na tropa, não sei, logo seria promovido a tenente, e a seguir a capitão!
- Com
tão poucas habilitações literárias?!
- Estás
a ver agora por que os militares de carreira derrubaram o regime? Não foi
certamente pelos nossos lindos olhos, para implementar em Portugal o socialismo
científico, ou uma democracia a sério. Os militares são conservadores, por natureza.
Agem como os médicos, os juízes, etc. – tentam preservar a sua classe, aumentar
os privilégios, o prestígio...
- O
Cândido é demolidor!
- Nem
por isso! Sou justo, pelo menos tento sê-lo. Mas deixemos isso, esses assuntos
são para os especialistas na matéria, eu sou apenas um empregado de escritório
e um estudante do Curso Comercial. Mas sabes que em Infantaria Seis me
aconteceram duas coisas que nunca mais esqueci. Uma desagradável e outra
assim-assim. A primeira foi quando barrei o meu casqueiro com o doce de cereja
que a minha mãe me mandara. Logo que dou uma dentada, parto um molar. A velhota
não se apercebera e deixara lá dentro um caroço. O dente, pouco a pouco, foi
apodrecendo, causou-me dores intensas, noites sem dormir.
- E
por que não foi tratá-lo?
-
Também eu queria. Mas aonde? Expus o caso ao enfermeiro e ele disse-me para ir
aguentando, o exército não tinha médicos dentistas, e se os tinha não tratavam
os dentes dos soldados.
- E os
particulares?
- Para
esses tinha que se marcar consulta, perder horas, e os preços eram proibitivos,
não estavam ao alcance das nossas bolsas.
-
Valia mais arrancá-lo.
- Foi
o que eu fiz, mas em África, no Hospital Militar de Bissau. E aí já foram dois!
Um contagiara o outro.
- Mais
uma razão para odiar a tropa.
- Sim,
mais uma razão a acrescer às outras. Mas deixa-me contar-te aquele episódio
engraçado, mas ao mesmo tempo esclarecedor. Como estava perto do Porto, que eu
já conhecia mais ou menos, na noite de São João, em Junho, não quis perder essa
oportunidade, única talvez, de conhecer uma das maiores manifestações de
alegria no país inteiro.
Queria
ver «in loco» essa famosíssima festa.
Depois do jantar, uma feijoada de porco (só
a cabeça e orelhas, porque a parte nobre ia toda para as messes), sigo, com
mais alguns camaradas, em direcção ao centro da cidade nortenha. Percorríamos
esse longo trajecto a pé! Não é que o dinheiro do ordenado não desse para
chamarmos um táxi; ganhávamos três ou quatro escudos por mês, uma autêntica “fortuna”, simplesmente nós gostávamos de
caminhar!
-
Estou a ver! Para fazerem a digestão da feijoada! – ironiza Henrique.
- O
táxi custaria trinta ou quarenta escudos. Isso não lucrava eu em dez meses! Mas
continuando… Pelo caminho íamos na galhofa, atirando piropos às sopeiras que
apareciam às varandas dos prédios ou na rua, umas bonitas outras feias, enfim,
divertíamo-nos à nossa maneira. A cidade invicta lembrava (de acordo com o que vira no cinema) Pequim, Nova Iorque, Londres,
Tóquio… um mar de gente, o bulício, a barafunda. Em certas ruas quase já não se
podia andar. Nem queria crer. Habituado a um meio calmo, aquilo mexia comigo, deixava-me
intranquilo. Tantas luzes, e tamanha cacetada de alho-porro na cabeça, estavam
a pôr-me tonto, completamente perturbado. Empurra daqui, empurra dali, graçola
daqui, piadinha dacolá, vamos seguindo de rua em rua, de beco em beco, ouvindo
música popular, gritos eufóricos, guinchos de crianças. Uma loucura. Às tantas
já nem os meus colegas de quartel podia enxergar – encontrava-me sozinho no
meio daquela multidão imensa!
Os gracejos choviam de todo o lado, mas eu
de cada vez que os ouvia achava menos piada. Se o São João era aquilo… não
gostava! Fui andando, andando, perdido, e cheguei, sem eu saber como, às
Fontainhas. Aí as coisas estavam, se possível, ainda mais movimentadas. O
espaço físico era insuficiente, exíguo, para tanto folião. O cheiro a sardinhas
assadas era insuportável. Eu sufocava. Disse para os meus botões: «depois
do tão apregoado fogo-de-artifício pões-te imediatamente a caminho do colchão.»
O
espectáculo foi maravilhoso. Nunca tinha visto coisa tão bonita. Nas festas da
minha terrinha também havia fogo de vista, mas à beira disto… Não me recordo
quanto tempo durou – estaria ali o resto da noite a ver o céu em festa. Logo
que a harmoniosa “trovoada” acabou,
recomeçaram as cacetadas, as mil brincadeiras, a folia, a pândega. Eu, porém,
não tinha feitio para colaborar nessas manifestações de alegria e espontaneidade.
Era demasiado tímido e bicho-do-mato para isso. Tentei furar como um rato pelo
meio da multidão em delírio, todos bem bebidos, vi-me gladiador no circo de
Roma, Hércules lutando contra a hidra de Lerna, e depois de enorme esforço dou
comigo na estrada a caminhar em direcção a Custóias.
Aproveitei
para fazer um chichi, já não esvaziava a bexiga há séculos! Como o tempo passou
rapidamente! Quase cinco horas da manhã! Chego finalmente ao aquartelamento,
cansado, extenuadíssimo, e peço à sentinela que me abra a porta de entrada.
Recusou, alegando que não podia, só às seis da manhã. Até a essa hora teria de
aguardar na rua. Não insisti. Não valeria a pena. O regulamento militar assim o
determinava e eu tinha de me resignar. Quem era eu para impor a sua abertura? Se
ainda fosse graduado, mas não, era apenas um simples soldado raso! Não insisti,
também para não prejudicar o colega, caso ele acedesse ao pedido e fosse
apanhado nessa falta. Uma hora passava depressa. Comecei a movimentar-me, sem
destino, sereno e tranquilo, sem pressas, e eis que vejo um barracão.
Tratava-se de um silo, uma espécie de armazém, cheio de palha. Fui até lá e
estendi-me deleitosamente. Estava quase a adormecer quando ouço algo a mexer-se
ali perto. Levanto-me ligeiramente e qual não é o meu espanto ao verificar que
se tratava de ratazanas! «Que se lixe»,
resmunguei. Com o sono a dominar-me, não podia ser esquisito.
Deitei-me novamente e adormeci profundamente.
Corria o risco de dormir todo o dia. No entanto, por volta das seis da manhã,
uma poderosa voz faz-se ouvir: «Quem
está aí dentro?» Na mão trazia longa e temível forquilha. Ainda estremunhado,
respondo: «sou eu, um soldado de
Infantaria 6; assisti à festa de São João e como cheguei antes da alvorada ao
quartel não me deixaram entrar.»
O
agricultor pareceu satisfeito e convencido com a minha resposta. Olhou
fixamente para mim, com aqueles olhos de águia, que tudo vêem, e com uma certa
complacência diz: «Está bem, está bem;
agora vá-se embora.»
Fiquei aliviado, como me tirassem do lombo um
fardo de chumbo. Cheguei ao quartel ainda a tempo do pequeno-almoço e contei
aos camaradas aquele estranho e hilariante episódio. Todos se riram a bom rir –
até eu!
- Como
é bom ter vinte anos! – diz Henrique,
encantado com a história.
-
Estes pequenos episódios são somente banalidades; servirão um dia mais tarde,
quando estivermos aposentados, para contar aos netos. Eles provavelmente não
acreditarão, tal como hoje já não acreditam nos contos de fadas e no pai natal.
A televisão, sobretudo, mas também a entrada para a escola em tenra idade,
afastando assim as crianças dos avós, mata os sonhos da infância. // (continua)...
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