LINA - Filha de Pã
romance
Por Joaquim A. Rocha
AVISO
Hoje era o dia de editar um texto sobre um crime que ocorrera numa das freguesias de Melgaço. Lembrei-me do crime (ou crimes) da "Palina" (Laurinda Alves - 1917-2004), mas devido à sua extensão e à sua complexidade resolvi em seu lugar publicar o romance, inspirado nesse estranho crime. Não é a realidade, mas dá uma ideia do que de facto aconteceu.
Prefácio
O acto de escrever é a aplicação de uma
fórmula cultural (onde entra uma combinação de
elementos linguísticos e simbólicos), a um determinado complexo humano e
natural, tendo em vista a obtenção de um resultado social, que se há-de
corporizar num objecto, neste caso, o livro, que é o suporte de uma obra
literária. Este produto do labor intelectual do autor, para além da sua
dimensão e natureza física, isto é, para lá da sua estrutura gráfica e textual,
apreensível pelos sentidos, também é constituído por um corpo imaterial e
incorpóreo, onde reside o sentido da mensagem, a qual apenas pode ser fruída
pela mente e pelo espírito do leitor. O acto de ler é, assim, um gesto e uma
atitude que permitem ao leitor experienciar sensações diversas, e é uma
operação mental que lhe permite aceder ao universo moral do escritor, e com ele
partilhar valores, ideias e emoções.
O leitor de «Lina – a filha de Pã», posto
perante a história romanesca, irá confrontar-se com personagens, locais e
acontecimentos que, embora fictícios e não verdadeiros, replicam uma realidade
parecida ou semelhante com a sua experiência de vida. Esta imitação da
realidade proporcionará ao leitor momentos de identificação ou de distanciamento
com os actos ou as ideias dos diversos intervenientes no romance. Assim, todo
um passado imaginado torna-se presente, para ser analisado, segundo as
perspectivas do escritor, que acaba sempre, mesmo que não o queira, por
enriquecê-lo com o contributo da sua sensibilidade e cultura. A realidade,
nascida da imaginação e da fantasia, conforme o próprio autor avisa na apresentação
da obra, sofre, então, o tratamento da arte literária, a qual fornece ao
escritor numerosas técnicas de escrita, de molde a que o leitor implique também
a sua mundividência, enquanto ser social, na história que lhe é narrada. De um
modo silencioso e calmo o livro transmigra então do escritor para o leitor.
Na busca desse desígnio, Joaquim A. Rocha
serve-se da história de vida de uma mulher de Melcarte para construir um fresco
da sociedade melcartense, desde 1920 até finais da década de setenta do século
passado. As condições de vida do povo são assim sujeitas a um levantamento de
carácter histórico, para efeitos de enquadramento da acção e para que o leitor
possa viajar no espaço e no tempo. Daí a razão por que nos primeiros capítulos
podemos surpreender ainda personagens com candeeiros a petróleo, médicos a
cavalo, povo analfabeto, pobreza generalizada, emigração, contrabando, «caminhos cheios de lama e pedregulhos»,
e tantos outros fenómenos sociais próprios da comunidade que constitui o cenário
principal da obra em apreço.
Mas o romance de Joaquim A. Rocha não
deixa também de fazer um paralelo com o todo geográfico de que faz parte, com
Portugal, com a Europa e com o mundo, pois semelhante conspecto sociológico
ajuda a compreender a natureza dos problemas vividos por cada uma das
personagens, pois o meio molda o carácter de cada pessoa, incluindo o do autor.
Melcarte é em «Lina – filha de Pã» uma terra abandonada, sem ligações rápidas,
sem desenvolvimento, sem esperança, sem futuro. Ao caracterizar o Portugal das
primeiras décadas do século XX, e já com Salazar no poder, o narrador coloca o
então jovem ditador a vociferar às portas da vila: «Isto é o fim do mundo! Está tudo velho, tudo a cair… Não me convidem
para vir cá mais!»
É nesta terra, esquecida pelo poder, em
que num só edifício funcionava «o
Tribunal, a Câmara, as Conservatórias, as Finanças, toda a burocracia do
concelho», cercada por montes, rios e fronteiras, parada no tempo, que uma
criatura nasce para lançar a desordem num quadro sociomoral muito estratificado
e rígido, o mesmo é dizer, num lugar demasiadamente estreito para a existência
do subversivo ou do anárquico. Esta criatura, que é a única personagem principal
do romance, tinha vindo ao mundo «sob o
signo da violência celestial», só porque no momento do parto «trovões, relâmpagos, faíscas, iluminavam o
céu e assustavam todas as criaturas daquela aldeia entre a serra e o vale.»
O mote estava dado para a caracterização
de uma personagem que nascia com a herança de uma misteriosa predestinação,
sina que ela própria admitia, quando dizia às colegas de escola: «Sabem, eu tenho poderes ocultos;…» Esta
jovem rapariga, pobre e semi-analfabeta, posta a servir em casa alheia, como
quase todas as da sua idade, rapidamente caminha para a sua perdição, ao
envolver-se num amor clandestino e proibido. Ainda que dominada pelo cinismo
adulto, de gente de outra condição e feitio, rapidamente troca a inocência e a
ingenuidade juvenis pelo frio calculismo da mulher enganada, que se entrega ao
mais grosseiro materialismo. Vai assestando golpes de modo certeiro e
impiedoso, até ao momento em que tem de travar meças com a justiça. Devido à
sua força e espírito indomáveis, só ao fim de muitos trabalhos é que é presa,
julgada e condenada a pena de prisão, em Lisboa.
Inicia-se, então, o ciclo da regeneração,
acabando a personagem por reelaborar uma nova ordem moral, com a ajuda de um
padre católico, voluntário da área da reinserção social. Nos seus diálogos com
o sacerdote, eivados de escatologia cristã, ela própria revelava que queria
reencontrar-se, queria saber quem era: «quero
descobrir quem ousou servir-se de mim para exercer o mal sobre os meus
semelhantes.» Tais reflexões permitem-lhe a descoberta de novas fontes de
amor, e fazem-lhe nascer no peito o influxo do voluntariado, a ponto de se
tornar auxiliar de tarefas na cadeia, preparando dessa forma o terreno para a
reconciliação com a vida e o mundo. A filha, nascida de um amor ilegítimo,
facilita essa transfiguração, que inclui também a reparação espiritual do homem
responsável pela sua perdição. Lina, o Juiz (o
seu primeiro e único amor), e Lisete, filha destes, depois de
reconhecidos os erros e expiadas as culpas, redimem o passado e tornam a
fundir-se no amor humano, a causa profunda da nossa existência.
Cabe ao leitor fazer os seus próprios
julgamentos sobre a conduta das diversas personagens, desde a principal, que
talvez não seja inteiramente responsável pelos desmandos, pois foi «nascida das
trevas», supostamente dotada de poderes sobrenaturais, dados por Pã (deus dos bosques), e também abusada por um
adulto; e cabe também ao leitor saber se os ludibriados por ela não mereceram o
engano, pois não só se deixam lograr, como morderam o isco do desejo como
peixes esfomeados. O castigo chegou para todos, a remissão de alguns foi
rápida, a de outros foi lenta e dolorosa, e só terminou na velhice, no caso do
sedutor, e na adultidade, no caso da seduzida. Só então veio a pacificação, e
todos os problemas acabaram resolvidos.
A personagem principal regressou ao ventre
da terra, indo a repousar no cemitério de Dernepa, sua terra, aldeia natal,
onde mandou colocar uma estranha lápide. Voltou às trevas, mas, em vez de trovoada,
da sepultura «se exalava um odor suave, apaziguador, e se ouvia uma música
celestial…», para citar as palavras finais do romance.
A obra de Joaquim A. Rocha, para além de
uma intriga bem urdida, que acaba de ser resumida em abstracto, e para lá do
fundo histórico, geográfico e sociológico, também já referido, coloca questões
de natureza ética, à luz dos padrões que tiveram força de lei até finais do
século passado, à medida que os desvios à moral vigente vão ocorrendo. O autor
perfila-se contra a subversão dos valores que sustentam o edifício cultural e
moral da sociedade, como a beleza, a justiça, a religião, o arrependimento, o
perdão, o amor… e não hesita em verbalizar judicaturas do tipo «Leitor: a beleza consegue milagres.»
Sendo assim, parece que mais uma vez se
cumpre a máxima popular, que diz que depois da tempestade vem a bonança. Em «Lina
– filha de Pã» o mundo sobressaltou-se, mas depois de exauridas as energias que
o ameaçaram, regressou de novo ao curso do seu sereno trânsito.
Fernando
Pinheiro, escritor.
LINA – Filha de Pã
Há muitos anos (mais
de trinta) que eu venho escrevendo sobre Melgaço: “Dicionário Enciclopédico”, “Gentes de Melgaço”, além de vários artigos, uns de índole jornalístico, outros de
caráter científico, poemas, pequenas peças de teatro… O que ainda não tinha
experimentado dar a ler ao público melgacense (e não só) fora o romance. Já tinha
escrito dois: “A Minha Guerra na Guiné-Bissau”, cujo título mudei para “Entre
Mortos e Feridos”, e “Lembranças Amargas”, recordações da infância e
adolescência. Tendo ainda na minha memória resquícios de acontecimentos antigos
eis-me a reuni-los, a reinventá-los, e então surge um pequeno romance, ao qual
resolvi atribuir-lhe o título de LINA- Filha de Pã. Ponderei imenso sobre o
título a dar ao livro e por fim fixei-me neste, pois adequa-se ao texto.
Vejamos: Lina é o nome da personagem principal – no início rebelde, velhaca, má,
provocadora, fazendo mal aos outros sem medo das represálias, sem qualquer
remorso; mais tarde arrepende-se do mal que provocara e altera completamente a
sua visão do mundo e das coisas, renasce para a vida, procura desesperadamente
fazer o bem. Quanto à segunda parte do título – filha de Pã – está ligada à
mitologia grega. Pã era um deus feio e selvagem: «mal feito e peludo, tinha
chifres, barba, cauda e pés de cabra.» Era pastor, guardava gado, cuidava das
ovelhas, das cabras e até de abelhas! Andava sempre atrás das ninfas, mas estas fugiam-lhe
por causa da sua fealdade. Apesar desses defeitos, Pã era um músico de grande
talento, e os sons da sua flauta a todos encantava. Outras vezes dava gritos
tremendos, os quais assustavam aqueles que se aproximavam dele. Segundo o
autor, e adentro do conceito romanesco, uma criatura humana (embora nasça numa
família normal), que se torna semi-selvagem, arisca, indomável, bravia, só pode
ser filha de um deus como Pã. Daí ter surgido um título tão estranho.
Quero prevenir
os futuros leitores da obra, que não está no espírito do autor ofender a
memória de quem quer que seja, pedir-lhes humildemente que não façam levianas
comparações, não extravasem para além das fronteiras ficcionais, pois
poder-se-á correr o risco de misturar o que não é, por princípio, misturável. A
realidade por vezes é bem mais cruel do que a ficção. O escritor aproveita-se,
inspira-se, molda até, acontecimentos que ocorreram ao longo dos séculos, uns
mais significativos, outros nem tanto, mas a grande fábrica da trama romanesca
reside, oculta-se, no cérebro, naquela zona em que tudo é imaginação e aventura.
Homero (Odisseia, Ilíada), Camões (Os Lusíadas), e tantos outros, criaram
verdadeiros monumentos literários, obras de arte, que vão sobrevivendo a
guerras mundiais, catástrofes, etc. // Eu só desejo àqueles que lerem este
despretensioso romance, que passem duas ou três horas de leitura agradável, que
esqueçam, se possível, os tempos difíceis que os países atravessam, que apelem à
sua fantasia e imaginação para os acompanhar nesta odisseia que é o percurso ziguezagueante
das personagens.
Espero
sinceramente que um dia alguém escreva umas palavras críticas (favoráveis ou
desfavoráveis) sobre o romance, pois a crítica construtiva, e fundamentada,
ajuda a melhorar o futuro trabalho dos escritores.
Joaquim Rocha
Sem comentários:
Enviar um comentário