ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
OS NOSSOS CONTERRÂNEOS
IGREJAS,
Francisco Augusto. Filho de Francisco Augusto Igrejas (1880-1966) e de Deolinda
Augusta Fernandes (1886-1963).
Nasceu na Vila de Melgaço a 30 de Abril de 1916. Frequentou a escola como qualquer
rapaz do seu tempo e no verão de 1929 fez exame do segundo grau, 4.ª classe,
ficando distinto. Descendia, pelo lado do pai, de uma família de alfaiates e
assim teve de aprender essa arte, que exerceu até aos vinte e três anos de idade.
É precisamente com esta idade, a 10/4/1939, que casa com Dinora, filha de João
Rodrigues Nabeiro e de Maria Joaquina Sacramento Lopes. O casal viria a ter
seis filhos: Adolfo, Ventura, Augusto, António, José, e Rita. Após o casamento,
mais concretamente a 1 de Julho de 1940, torna-se cartulário da Santa Casa da
Misericórdia de Melgaço, lugar que ocupou durante 42 anos. Diplomara-se em 1959
como auxiliar de enfermagem, mas não exerceu oficialmente essa profissão, no
entanto, eu lembro-me que na década de cinquenta era ele que dava injeções,
tratava os feridos ligeiros, arrancava dentes, etc., e não se pode dizer que
fosse um mau enfermeiro, apesar de não ter nessa altura as ferramentas
sofisticadas que agora existem. Depois da revolução dos cravos passou a fazer
parte do quadro dos funcionários do Centro de Saúde de Melgaço, com a categoria
de 3.º oficial, tendo sido aposentado a 30/4/1986, com a categoria de 2.º
oficial. Teve uma vida cheia e, embora nós não o saibamos, o mais certo é o
“Gu”, como era conhecido, depois de ter sido pai e escrito um livro, também ter
plantado uma árvore. O livro, «POESIA POPULAR», foi editado em 1989 pela Câmara
Municipal, caderno n.º 6. O seu primeiro poema (gazetilha) apareceu, salvo erro, no Notícias de Melgaço n.º 905, de
17/7/1949. A sua mordacidade, o jocoso da situação, o pormenor burlesco, tudo
ele capta com o seu sentido de humor sarcástico, mas simultaneamente ingénuo e
bem-intencionado. O “Gu” agradece ao professor Ribeiro da Silva – um não
melgacense que aqui viera carpir as suas mágoas – tê-lo iniciado nestas
andanças da poesia. Claro que só poderá fazê-lo quem possua esse raro dom de
transformar palavras rudes em macio tapete do dizer. Não se pode afirmar que
estamos em presença de um grande poeta; mas alguns dos seus poemas são
miniaturas de uma obra maior, que é toda a POESIA. No início receoso, depois
afoito, lá foi avançando com as suas palavras brincadas, promovendo a sátira
aos píncaros de uma magia inimaginável. Não foi maldizente, no sentido
pejorativo do termo; ridicularizou, é certo, para melhorar, para tentar
corrigir. E não lhe faltavam motivos, pois os autarcas lutavam com uma falta
crónica de dinheiro para realizarem as obras públicas de sua responsabilidade,
e por essa razão os remendos surgiam aqui e ali, como é apanágio do pobre que
não tendo capital para comprar roupa nova vai remendando, remendando, até nada
sobrar do antigo tecido, e os remendos aparecem então como obra nova! Os particulares
também tinham as suas limitações, cometiam os seus erros, exibiam por vezes uma
parolice indescritível, tudo matéria de saudável riso para um homem com olhos
de águia e memória privilegiada. Uma das gazetilhas mais divertidas é sem
dúvida alguma a das rolhas (páginas 88 e 89 do
citado livro). Todos os comerciantes da Vila, salvo
raras exceções, caíram no conto do vigário: compraram rolhas aos milhares, a
fim de as venderem a uma suposta cliente, que horas antes as procurara
afanosamente. Escreveu o poeta: «Quem
precisar de uma rolha/prà garrafa ou garrafão/não precisa andar à solha/pois na
Vila há um milhão!» Isto passou-se em 1965. A vaidade do jovem que levou a
Melgaço um carro grande, mas velho e cansado, cuja subida a Castro Laboreiro
não logrou, também deu a Francisco Augusto matéria para construir uma gazetilha
mordaz, contundente, mas pedagógica. A novela radiofónica «Nunca é tarde para
amar» proporcionou-lhe a oportunidade de escrever uma das gazetilhas mais
irónicas e subtis: «Vem o vizinho Rogério/da vinha, de sulfatar;/mas se diz um
impropério/responde a mulher a sério:/nunca é tarde para amar/e volta o pobre
Rogério/cheio de fome, a cambar.» Esta estrofe resume um drama: o Rogério
Lopes, de alcunha o “Cambado”, farto de trabalhar nos campos e na vinha, desde
o nascer do sol, vinha almoçar, refeição do meio-dia, mas a sua esposa, não lhe
fizera o comer porque estivera a ouvir a novela na rádio! E o pobre homem pouco
podia fazer, porque a sua Maria, obcecada pela trama do enredo, responde-lhe
como um autómato: «nunca é tarde para
amar!» E assim aconteceu em todo o bairro! Eu que, apesar de ser um moço,
sofri na pele os efeitos nefastos dessa “doença” radiofónica, sei que tudo isso
foi verdade, e que o Gu apenas exagera a excentricidade, realça a parte
absurda, o nó que se desata de uma vida pacata e dirigida, comandada, de perto
e à distância, pelo elemento masculino. Era como o despertar da mulher para o
lazer, para o seu momento de relaxe, de «deixa
andar»…, ele que se amanhe, se quer comer que o faça, ou então que espere!
Foi o princípio da rutura, e ao nosso atento observador não escapou, como ao
fotógrafo não escapa o esgar do aflito, ou o sorriso malicioso do namorado. Mas
o Gu não escreveu somente gazetilhas: escreveu também letras para canções –
para os bombeiros e cortejos de oferendas – e ainda alguns poemas de grave
sentimento. Não dominou na perfeição a técnica poética, a arte de Horácio, não
foi um Camões ou Antero, nem bebeu na fonte de Bocage, não pode figurar ao lado
dos nossos maiores, mas ascendeu – por mérito próprio – à galeria dos poetas
regionais, onde o seu humilde estro o guindou, e na qual permanecerá pelos
tempos afora, enquanto houver humanos sensíveis e sonhadores do amanhã. Francisco
Augusto Igrejas Junior deixou-nos a 15/3/1996. Ficou a sua recordação, a sua
obra literária, a sua lição.
Este texto foi publicado em «A Voz de Melgaço» n.º 1111, de 1/3/1999. Fiz-lhe algumas pequenas alterações, mas no essencial é o mesmo.
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