À esquerda: o Cine Pelicano em ruínas. |
ERNESTO VIRIATO FERREIRA DA SILVA
Era um homem de ação. Não sendo natural de Melgaço, pois
nascera em Braga, pugnava mais pela sua conservação do que alguns que aqui
nasceram. E não fingia, era mesmo sincero. O seu casamento com uma melgacense,
o nascimento dos filhos, o ter adquirido por compra um solar antigo,
conferiram-lhe essa legitimidade. Já outros antes dele fixaram a sua residência
nesta linda terra, mas pouco, ou nada, fizeram por ela. É certo que o senhor
Hilário Alves Gonçalves, nascido em Monção, criou a Casa do Cinema e do Teatro,
que proporcionou a muitos melgacenses verem filmes de alguma qualidade, e
também ao senhor Vasco de Almeida exibir as suas peças de teatro, que fizeram
rir imensa gente até às lágrimas. // Ferreira da Silva, em finais de 1965,
sendo então diretor do jornal “Notícias de Melgaço”, escreveu: «Quem por
necessidade tenha de percorrer a rua Direita da nossa vila, dentro das suas
vetustas muralhas, no fim da qual se situa o salão do Cine Melgacense (Cine Pelicano),
dificilmente se adapta e sofre a irregularidade do seu pavimento, que data dos
primórdios da fundação da praça-forte de Melgaço. Foi esta rua aberta na parte
central da cintura de muralhas interiores que fechavam e defendiam o acesso ao
nosso burgo, onde residiam os seus moradores e ainda moram os habitantes da vila,
sob as vistas da altaneira torre de menagem, mais conhecida entre nós por
castelo. O seu pavimento é constituído em calçada de granito à portuguesa, como
era habitual nas antigas construções, quando os senhorios dos domínios urbanos
não optavam, por motivos de ordem económica, pelo lajeado ou lajedo que vemos
cobrir as ruas das velhas vilas e cidades de certa importância. A ação
destruidora do tempo, sobretudo das chuvas e o movimento dos habitantes e dos
seus instrumentos de transporte e respetivos animais de tiro e sela, não só
provocaram o desgaste das pedras da calcetaria, mas também compeliram o terreno
à cedência ou abaixamento da calçada nos sítios em que a sua estrutura revela
fundações mais fracas ou menos cuidadas por deficiência de enchimento ou
defeito de constituição da terra que preenche os vazios da rocha onde foi
implantada. Desta sorte, a calcetaria apresenta-se irregularíssima, aos altos e
baixos, traduzindo-se por formas agudas e arestas vivas e em certos pontos por
cotas de desníveis mais próprios do empoçamento de águas do que da utilização
pessoal dos transitários. O pavimento assim desnivelado dificulta penosamente a
marcha dos peões, ameaça a suspensão dos veículos que por ele transitam,
atormenta e magoa os pés dos caminhantes e conspurca de lama, ou de poeira,
pessoas, carros e animais, segundo as estações do ano, determinadas pelos
equinócios e solstícios de verão e de inverno. Não exageramos afirmando que a
rua principal da vila, cognominada de direita, para melhor significar que é
torta, onde vive, aglomerada em colmeia, a maioria da população e onde existem
edifícios caraterísticos de valor histórico, está pura e simplesmente
intransitável. E se deste modo se apresenta a rua principal da vila intra
muralhas, as ruas transversais e as que delimitam a parte baixa, à ilharga da
nova avenida de circunvalação, talvez secundárias mas onde foram construídos
monumentos valiosos, pertença da Misericórdia, nem é bom falar, com os seus
pavimentos praticamente destruídos e matizados de autênticas crateras que no
inverno exigem embarcações para serem atravessadas. Sabemos bem que a nossa
Câmara não está em condições financeiras de remediar, de repente e de uma só
vez, os inconvenientes que deixamos apontados. Porém, por etapas de seguidas
empreitadas, e com o auxílio das comparticipações do Estado, o problema oferece
solução viável fácil e breve. Apreciemos em primeiro plano o caso da espinha
dorsal do velho burgo, a chamada Rua Direita ou, com mais propriedade, Rua
Torta, que da igreja matriz se prolonga até à porta sul da vila, ostentando uma
inscrição vandalicamente deteriorada da reconstrução da muralha, centrada pelo
antigo edifício da Domus Municipalis e pela bela Torre de Menagem. Como reparar
imediatamente o pavimento desta caraterística artéria, face às possibilidades
financeiras do nosso município? Em nossa modesta e desvaliosa opinião,
parece-nos que poderia começar-se pelo levantamento da calçada e nivelamento do
terreno e, seguidamente, recolocar a mesma calcetaria depois de normalizada a
estrutura do pavimento. Realizada esta primeira operação, passados um ou dois
anos da regularização, ou seja, o tempo necessário para a consolidação das
fundações, e reparados os desnivelamentos verificados, proceder-se-ia à
betumenização do pavimento, asfaltando-o, ou alcatroando-o, a fim de
estabelecer a necessária coesão da calçada pela aderência dos seus elementos de
constituição. A rua ficaria nivelada e o piso suave e duradouro. Os gastos da
reconstrução limitar-se-iam, inicialmente ao levantamento da atual calcetaria,
ao enchimento do respetivo leito com uma razoável camada de areia e à recolocação
das pedras, obedecendo às regras usuais de nivelamento. Decorrido o tempo
indispensável à consolidação, o pavimento tornar-se-ia numa placa maciça e
indivisível por meio da aplicação do aglomerado aconselhável ou de simples
betuminização. Quem ousará afirmar que a nossa Câmara não está em condições de
realizar este melhoramento? Nós, não! Outros que o digam, se são capazes…»
F.S. //…
Foi
pena não ter vivido o 25 de Abril de 1974. Morreu na Vila de Melgaço a
4/7/1972, com setenta e oito anos de idade.
Rua Direita - Vila de Melgaço. À esquerda vê-se o Cine Pelicano em ruínas. |
Nota: sobre Ferreira da Silva, ver mais em 23/3/2020.
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