LINA - FILHA DE PÃ
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
XIII Capítulo
Era a primeira vez que os dois amantes dormiam
juntos; já tinham estado entre lençóis, mas em residenciais galegas, apenas
durante algum tempo; agora nada, nem ninguém, os perturbaria. Ao contrário do
que seria de esperar, nem um nem outro sofreu qualquer pesadelo durante a
noite. Dormiram tranquilos, sem quaisquer problemas de consciência, sem remorsos,
sem coisa alguma que os atormentasse!
- Vamos levantar-nos,
aconchegar o estômago, e tratar do enterro. Espero que a cerimónia não passe de
hoje: estou farta desta treta – disse Lina
ao amante.
- Eu vou tratar
de tudo na funerária; temos de libertar a sala para colocar o caixão. Pede a
alguém que te ajude. Vamos despachar isto.
Nem sequer se deu ao trabalho de ir
verificar se a esposa expirara, ou ainda continuava moribunda. Vestiu-se e
dirigiu-se à Vila a fim de encomendar o funeral. Ali tratavam de tudo – tivesse
ele dinheiro para pagar. Talvez encomendasse uma urna de primeira classe, para
mostrar àquela gente da Vila que os da montanha tinham dinheiro, não eram
nenhuns pelintras, como os da Ribeira.
A Lina, antes de ir ter com o coveiro, foi
verificar em que estado se encontrava a patroa. Tinha a boca e os olhos
abertos, a cor da pele amarelada. «Deve
ser por causa do veneno» - vaticinou. Desejou-lhe: «Vai para as profundezas do inferno» - num tom metálico, marmóreo, sem
qualquer compaixão. Sucumbira durante a noite, sem ninguém a assistir, sozinha
e abandonada. Ela, que fora estimada pela família, que tivera amigos, que fora
amada pelo marido. Que morte horrível aquela!
Os da Vila apareceram com uma urna preta,
brilhante no exterior, forrada com tecido de seda no seu interior, e mais utensílios
para a cerimónia fúnebre. O viúvo caprichara: «Quero um funeral de primeiríssima, ouviu?» - dissera ao comerciante
com altivez. Este, aproveitando a deixa, trouxera tudo aquilo que havia para
esse efeito. No fim apresentaria a conta. «Deixe
os pormenores connosco – somos profissionais» - foi a seca resposta.
Tudo correu dentro da normalidade. Alguém
aconselhou o seu enterramento nesse dia, à tardinha, porquanto o corpo da
defunta já começava a ter um cheiro esquisito, insuportável. O mês de Agosto
trazia temperaturas muito elevadas àquelas zonas mais altas do concelho. A moradia
não tinha aparelhos de ventilação, pois não havendo energia elétrica não
existia maneira de pô-los a funcionar. É possível que houvesse à venda
aparelhos com pilhas, mas por ali ninguém pensava em tal coisa. Ainda era cedo
para o progresso chegar àquelas zonas altas do Minho.
Dali a tempos Lina tem uma conversa calma
com o amásio:
- Que alívio!
Desta já nos livramos. Emília está a ser devorada pelos bicharocos e nós
estamos aqui juntos, felizes. Mas ainda falta uma coisa para um final completamente
vibrante, espetacular, como nos filmes: o nosso casamento.
- Pensava que não
querias casar. Não estamos melhor assim? Olha que os vizinhos podem desconfiar.
Para quê tanta pressa?
- Não quero que
me apontem o dedo: «vai ali a concubina
do Filipe!» Desejo ser a tua esposa e não a tua amásia. Tu agora és viúvo,
tal como eu – nada impede o nosso matrimónio.
- Isso é verdade;
eu também quero casar contigo, ver no teu dedo a aliança, és a mulher da minha
vida, apenas tenho receio das más-línguas. Que irão dizer: «Ainda há meia dúzia de meses lhe morreu a mulher
e já está a tratar da papelada para se matrimoniar com a empregada!»
- Que falem, gente
reles, quero lá saber! Não se pode contentar Deus e o Diabo ao mesmo tempo.
Vais à Conservatória, tratas da documentação, e pronto: casamos. O casamento
religioso será na igreja do antigo convento: é mais chique.
- Como queiras,
por mim tudo bem. Só te quero ver satisfeita, alegre e feliz.
Em um dia qualquer da semana seguinte eis
o senhor Filipe na Conservatória do Registo Civil:
- Por aqui senhor
Filipe? – perguntou, curioso, o funcionário.
- Venho tratar de
uns papéis.
- Não me diga que
vai dar o nó pela segunda vez?!
- Um homem não
foi feito para viver sozinho, precisa da companhia de uma fêmea.
- Nisso tem
razão. Eu também me casei em segundas núpcias. A minha primeira esposa finou-se
muito nova, devido a uma doença sem cura, deixando-me uma menina de três
aninhos nos braços. Por vezes a vida, ou o destino, é cruel. // Bem, mas vamos
ao que interessa: traz os seus documentos e os da noiva? E já agora: quem é a
felizarda?
- Vou casar com a
minha empregada, a Lina; já está lá em casa quase há um ano e acabamos por
gostar um do outro.
- Desejo-vos
felicidades.
Depois de todos os impressos preenchidos,
o homem retirou-se. O funcionário foi logo a correr comentar o caso com o Conservador,
que estava no seu gabinete, agarrado a um grande calhamaço. Adorava ler aquelas
leis antigas, para as comparar com as mais recentes.
- Posso entrar, Senhor
Doutor?
- Faz favor,
Gabriel. O que deseja?
- O Senhor Doutor
lembra-se daquele caso que deu muito que falar, do suposto parto, da venda de
uma criança de Cartagães, do degredo da compradora para Monção, que depois (segundo
a vítima, pois não há provas testemunhais) apareceu aqui na Vila fardada de
legionário, para dar uma valente coça na prima do ex-amante, que a denunciara à
Guarda?
- Lembro-me de
tudo isso. A senhora Pulquéria ia morrendo! Se não a descobrem a tempo… E
depois?
- O senhor Filipe,
natural de Lamas Santas, veio aqui tratar dos papéis para casar com ela!
- Mas esse cavalheiro
não enviuvou há pouco tempo?
- Exatamente. E
ela é a sua criada há um ano a esta parte.
- Curioso o que
me conta. A mulher desse senhor falece e ele casa com a criada. Interessante!
Ouça: vá ali ao posto e traga-me aqui o cabo da GNR.
Depois de falar longamente com o cabo
Benjamim, o Conservador saiu e foi ter com o Delegado do Procurador da
República. Conversaram durante meia hora:
- No mínimo é
estranho, este caso – comentou o Delegado.
- Quase que não deixaram arrefecer o corpo da coitada! Das duas, uma: ou nada
temem, ou então querem demonstrar que nada têm a temer. Isto não vai ficar
assim: o corpo da defunta tem de ser analisado por peritos; se morreu de
doença, tudo bem, caso contrário terão de se sentar no banco dos réus. Essa
Lina já há muito tempo que tem um cadastro razoável. Andou algum tempo sossegada,
mas essa víbora é um autêntico vulcão – de vez, em quando, lança cá para fora a
mortífera lava e peçonha. Não lhe daremos tréguas.
- Nós só
permitiremos o casamento depois da análise ao corpo da morta – disse o Conservador. – Se houver crime,
que sofram as consequências.
As autoridades pediram ao coveiro para ir
à campa da defunta, Dona Emília, por volta das vinte e duas horas, a fim de
retirar de lá o seu cadáver, para os médicos fazerem uma certa experiência, mas
tudo em sigilo. Dois soldados da Guarda Nacional Republicana acompanharam a operação.
Os funcionários da Morgue embrulharam o corpo em roupas especiais e meteram-no
na carrinha. Tudo rápido, sem dar muito nas vistas, sem chamar a atenção de
quem quer que fosse.
Algumas horas depois estavam num hospital
do Porto. Um médico, especialista em autópsias, rasga - de alto, a baixo - a
barriga da falecida e retira do seu interior alguns órgãos, para posterior
análise. Mete tudo aquilo em uns frascos, entrega-os a um colaborador e
afasta-se. O resto do trabalho seria feito por outros especialistas.
**
Uns dias depois estava disponível o
resultado da análise. Não havia quaisquer dúvidas: Emília fora assassinada!
Quem a matou utilizara raticida. O hospital enviou essa informação para as
autoridades de Melcarte.
O Delegado do Procurador da República logo
que recebeu essas notícias pôs-se em campo. Chamou o comandante do posto da Guarda
Nacional Republicana e deu-lhe instruções:
- Temos de deter
ambos, mas cuidado: o presumível assassino já foi emigrante no Brasil, é
negociante, e pode estar armado com arma de fogo; a tal Lina não é mulher para
brincadeiras, nem flor que se cheire – ao longo dos anos tem vindo a refinar a
sua maldade. Estamos perante um casal perigoso, todo o cuidado será pouco.
- Esteja
descansado, Senhor Doutor Delegado; vamos apanhá-los a ambos. Tenho uma ideia,
que deve resultar: vou mandar as praças à civil, assim podem aproximar-se sem
chamar a atenção.
- Acho boa ideia.
Bom trabalho.
A Lina movimentava-se alegremente, feliz.
Bem alimentada, bem vestida, já tendo acesso à conta bancária do futuro marido,
bem recheada, algumas ações de empresas sólidas, embora não percebesse aqueles
algarismos, pois era analfabeta, mas ele explicava-lhe tudo tim-tim por
tim-tim: - «Já temos mais de cinco mil
contos» – dizia-lhe ele, a rir.
Nada a preocupava: a loja continuava a
vender bem, estava agora ao balcão um rapaz bem-parecido, um parente do Filipe,
os negócios prosperavam – iam de vento, em popa. Que mais desejava? Um certo dia
diz ele, meio a sério meio a rir:
- Agora só nos
falta um bebé para nos sentirmos cem por cento realizados. Será que ainda podes
engravidar?
- Quem sabe? Até
pode acontecer! Queres um menino ou uma menina?
Ela sabia perfeitamente que não poderia
novamente dar à luz, mas para lhe agradar mentiria, como o fizera sempre. Quando
esteve em São Cristóvão, teria à volta de dezoito anos, amancebou-se com o
patrão, um galego fidalgo, Dom José Linhares, que casara nesse lugar com uma
filha de um comerciante local. Às tantas, a Lina ficou grávida. O galego entrou
em pânico; a perspetiva da criada vir a ter uma criança sua não lhe agradava absolutamente
nada. Fora ótimo ter relações sexuais com uma rapariga da idade dos filhos, mas
não passava de uma plebeia, analfabeta, inculta; deixar vir ao mundo o fruto
dessa relação não estava nos seus horizontes. Antes que as coisas se
adiantassem, ordenou-lhe:
- Tens de
abortar; já arranjei uma parteira galega, competente, para tratar de tudo.
- Não quero.
Tenho medo. E os riscos? Será que não corro riscos?!
- Claro que não,
Lina. Pensas que eu te deixaria morrer?! Essa senhora está habituada a fazer abortos,
tem uma experiência de longos anos. É cem por cento eficaz. Podes confiar em
mim e nela.
O fidalgo galego meteu mãos à obra,
delineou tudo cuidadosamente, e dentro de dias já a jovem tinha perdido o feto.
Ficou um pouco abalada, mas recuperou depressa, devido sobretudo à sua
juventude e a uma boa alimentação.
Depois desse episódio, a Lina nunca mais
teve condições para engravidar. O seu útero ficara deveras afetado.
Logo a seguir Dom José desinteressou-se
dela e convenceu a esposa a dispensar os seus serviços. É como diz o ditado: «um azar nunca vem só.»
**
Vamos
retomar o fio à meada. Onde tinha ficado? Ah! Já me lembro: em Lamas Santas. A
Lina, com a conivência do amante, envenenara a patroa, a senhora Dona Emilinha.
A Guarda Nacional Republicana começou a
rondar-lhes a porta. Anotou os seus passos, quando saíam e entravam, para onde
iam. Verificaram que ele todos os dias, de manhã, saía no carro, que carregava
com produtos do estabelecimento. Tratava-se, sem qualquer dúvida, de artigos de
contrabando, que seriam vendidos aos galegos. Ela saía pouco de casa: ia à
loja, conversava cerca de meia hora com clientes e empregado e depois subia a
fim de tratar da casa e da comida.
Com estes dados, os guardas prepararam o
seu plano de captura: quando ele saísse de casa, dar-lhe-iam voz de prisão. Ela
ainda tinha a porta aberta, para se despedir dele, e era nessa altura que deteriam
ambos.
Aconteceu numa quinta-feira de manhã:
quando Filipe saía de casa e se dirigia para o seu carro, estacionado ali
perto, surge, detrás de uma grande árvore, um soldado da GNR e aponta-lhe a
arma: «considere-se preso!» O homem
ficou estupefacto e não conseguiu reagir de imediato. Logo a seguir, surgiram
mais dois soldados – um foi algemar o comerciante e o outro saltou os degraus e
prendeu a criminosa.
A Lina reagiu com uma agressividade canina.
Transformara-se de repente numa leoa, ou em um tigre da savana. Seus olhos flamejavam:
- Seus canalhas!
Que estão a fazer? Agora prendem pessoas honestas e trabalhadoras?
O guarda que a detivera olhou friamente
para ela e disse-lhe:
- Cale-se, sua
descarada! Explique no tribunal, ao Senhor Doutor Juiz, as suas razões.
Empurrou-a para fora de casa e obrigou-a a
juntar-se ao amante.
Eram cerca de quinze quilómetros de Lamas Santas
à Vila, quase todo o trajeto a descer. Cinco pessoas: três agentes da autoridade
e o casal teriam de palmilhar a pé aquele percurso. A Guarda Nacional Republicana
nessa altura possuía apenas uma mota, velha, com um atrelado ao lado,
permitindo viajar nela apenas duas pessoas, sem quaisquer comodidades. Os jipes
estavam nas cidades e nas Forças Armadas. Podiam chamar um táxi, mas como, não
havendo comunicações?
- A caminho! – grita um dos guardas.
Demoraram
quase três horas. A soez mulher, depois de barafustar imenso, resolveu
calar-se. Não podia gastar energias em vão. «Como teriam descoberto o crime?» - interrogava-se. «Escapou-me qualquer pormenor» - disse
entre dentes.
Primeiro levaram-nos para a prisão, improvisada,
da Guarda Nacional Republicana, a que davam o nome de calabouço: uma cela com
apenas dez metros quadrados. Lá dentro via-se uma cama de madeira, pequena, só
para uma pessoa, e duas cadeiras – tudo de uma pobreza franciscana.
Nesse
edifício, inaugurado em 1932, estava instalado o Tribunal, a Câmara Municipal,
as Conservatórias, as Finanças, toda a burocracia do concelho. Uma incrível
amálgama! Apenas a Guarda-Fiscal tinha quartel próprio, junto às muralhas do vetusto
castelo – os postos estavam distribuídos pelos sítios onde os achavam necessários;
a Polícia Internacional fixara-se perto da fronteira com a Espanha.
A Lina foi interrogada de uma forma brutal:
- Mesmo que não
confesses, passarás anos na cadeia, pois as provas são evidentes – ameaçaram os interrogadores.
Depois de dias de tortura, de fome e
sede, de violentas punhadas, cheia de inchaços, sabendo já que o amante não
resistira ao interrogatório e confessara toda a verdade, omitindo apenas os
pormenores que o incriminariam ainda mais, atirando para ela todas as culpas, a
Lina acabou por ceder. «Terei outras
oportunidades, o mundo ainda não acabou para mim.»
Deu-se então início ao processo jurídico:
nomeou-se o advogado de acusação; o advogado de defesa foi escolhido pelo senhor
Filipe. O primeiro, era de Melcarte; e o segundo de Monção. O julgamento,
apesar da confissão dos assassinos, iria levar os seus tempos, seguir os seus
trâmites – em Portugal «país de brandos
costumes» tudo se fazia lentamente, sem pressas. O regime corporativista
conseguira esse milagre: colocara em estado de hibernação os portugueses.
Enquanto os outros países progrediam, o país de Camões, de Eça, etc.,
estagnava! E se alguém resmungasse era acusado de comunista e os agentes da Polícia
Internacional de Defesa do Estado tratavam-lhe logo da saúde. Podia, na pior
das hipóteses, ir parar ao Tarrafal, sito em Cabo Verde, de onde dificilmente
sairia com vida!
Tudo calado, tudo mudo, nada de
contestações. Os vencimentos do funcionalismo público mal davam para comer e
pagar a renda da casa; a pequena corrupção era geral. Ia-se a uma Repartição
Pública pedir um documento e necessitando dele urgentemente tinha de se entregar
uma gorjeta. Enfim, vivia-se no país do marasmo. Os que defendiam a liberdade eram
coagidos a abandonar o país. Os melhores cientistas, professores
universitários, escritores de renome, deixavam esse Portugal cinzento, labrego.
Depois de uma decisão do juiz, os dois
criminosos foram transferidos para a prisão concelhia, a alguma distância do
posto da Guarda Nacional Republicana, a fim de aguardarem julgamento; depois
deste concluído, iriam para a cadeia de uma qualquer cidade, muito mais segura.
Como iam a pé, primeiro levaram o Filipe.
Estava um farrapo humano: magro, sujo, a barba por cortar, parecia um mendigo.
Não reagia a nada – quase não tocava na comida que vinha do pequeno restaurante,
tão diferente, para pior, daquela que a Lina lhe servia. Ajudara a destruir a esposa,
agora estava ali a sofrer as consequências desse crime horrendo, nefando. Preferia
extinguir-se, a passar por esta vergonha. Pensara, erradamente, que a companheira
e amante era uma exímia estratega, tudo faria na perfeição: ninguém suspeitaria
de nada. E o que aconteceu? Estavam ambos presos, iriam ser julgados e
condenados pelo Tribunal a pesadas penas. Acabaria seus dias numa dessas
prisões da cidade, junto com os maiores criminosos do país. Tinha a percepção
de que não era nenhum santo, mas comparado com aqueles bandidos, assassinos
cruéis, era quase um anjo.
Fora o amor, aquele amor tardio, serôdio, que
o conduzira a este estado de coisas. O azar batera-lhe à porta. Podia
considerar-se um homem rico, era considerado por toda a gente, ninguém sabia do
seu passado brasileiro, aquela parte mais sombria da sua existência, nem a
própria Emília! Limpara, com imenso esforço, a sua imagem, mas agora voltara
àqueles tempos tenebrosos. «Não merecia
acabar assim!» - concluiu. // continua...
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