sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
 
Por Joaquim A. Rocha





Capítulo XXXIV
 

Nem sempre é princípio o fim

 

     Escutem, se puderem, esta interessante e comovedora conversa entre avô e neto:

 

- Avô, o senhor provedor vai deixá-lo entrar para o asilo.

- Parece que estás contente por isso!

- Contente e triste, ao mesmo tempo; preferia não ter de ir à tropa, ficar aqui consigo e com a minha mãe, apesar de ela ser como é.

- No meu tempo de jovem a vida militar era boa para alguns: ficavam lá, faziam vida daquilo, sempre tinham comida, roupa, uma cama para dormir e algum dinheiro.

- Ganhavam pouco…

- Quando fui às sortes, em 1909, toda a gente ganhava pouco neste país, excetuando uns quantos; por isso, ter um prato de comida, mesmo que não prestasse, já era bom.  

- Quando ouço falar as pessoas da sua idade fico com a ideia de que era melhor não terem nascido!

- Bem podes dizê-lo; muitas vezes desejei morrer ao longo da minha triste vida. Não calculas, mas tu também já passaste por isso, ter fome e não ter nada para comer, ter frio e não ter roupa para vestir, ter febre e não termos ninguém que nos refresque a testa. 

- Pobre avô.

- Mesmo assim penso que não foi mal ter nascido, ter visto e vivido tudo aquilo que vivi, ter comido o pão que o diabo amassou. Depois da morte terei milhares de histórias para contar àquelas almas que comigo estiverem, dessa maneira não nos aborreceremos no além.

- Sabe que às vezes penso nessa vida depois da morte? É uma sensação esquisita, estranha!

- Todos deviam pensar; seriam mais compreensivos, e tolerantes, uns para com os outros.

- O senhor padre Alberto disse na missa de domingo que os maus iriam todos arder no inferno; os bons iam para o paraíso; e aqueles que não são bons nem maus aguardarão no purgatório que deus ou o diabo os chamasse!

- Terão de esperar que haja vaga, como eu esperei agora para entrar no asilo, no quartel.

- É curioso: mesmo depois de morrer é preciso ir para a fila, aguardar a sua vez!

- Mas, uma vez no céu, fica-se lá para sempre.

- Deve ser bom viver lá.

- Para nós, os que aqui neste planeta vivemos mal, qualquer coisa melhor do que isto será bom.

- Se eu soubesse onde se encontra o seu filho…

- Quando entrei na vossa casa disse-te que nunca tivera notícias dele; isso não é completamente verdade. Há uns dez anos atrás recebi uma carta dele e da minha nora dizendo-me que qualquer dia apareceriam por aí a fim de nos visitarem; até hoje ainda não recebi essa visita!

- O avô respondeu à carta?

- O senhor Antunes da mercearia é que me fez o favor de responder; eu não sabia o que lhe falar, não tenho escolaridade nenhuma.     

- E a direção? Lembra-se da direção?

- A carta perdeu-se, deve ter ido parar à estrumeira, ou à fogueira; só me lembro que o lugar onde moravam se chamava Porrinho.

- Porrinho é na Galiza, já ouvi falar nesse nome.

- Seja onde for, eu não podia lá ir; nem dinheiro tinha para comprar comida, quanto mais para passeios!

- Vou perguntar a alguém, talvez ao senhor professor Romano, ele sabe tudo, se conhece essa localidade galega. Se fosse perto daqui e as viagens não ficassem muito caras dava lá um pulo; até pode ser que ele o venha buscar, nesse caso já não ia para o asilo.

- És tão generoso, mas olha que se ele se lembrasse do velho pai já cá tinha vindo buscar-me há muito, com certeza que também vive com dificuldades, os espanhóis não estão melhor do que nós, não penses. 

- Ele pode julgar que o avô ainda se encontra a trabalhar os campos, que a avó está viva, enfim, não lhe passará pela cabeça que as coisas correm deste jeito.

- Podes tentar saber, mas não tenho nenhumas esperanças.


 
 





XXXV


 

Nas entranhas do animal coabitam o bem e o mal

      Procuro colher informações sobre a localidade onde presumivelmente se encontra o meu pai. Quero tentar localizá-lo, a fim de lhe pedir que leve para a sua beira o meu avô Agostinho, evitando desse modo a sua entrada no asilo. Será que o vou conseguir?

 
 
- Senhor professor, onde fica o Porrinho?

- Na Galiza; ainda é um bocado longe daqui.
- Muito longe?
- Sabes onde é Valença? Já lá foste?
- Nunca lá fui, só a Monção, mas passei lá de comboio, há três anos, quando fui a Lisboa visitar os meus irmãos.
- Olha: o Porrinho fica mais ou menos frente a Valença. Claro que ainda são uns bons quilómetros; primeiro é necessário passar pela cidade de Tui.
- Fica caro lá ir.
- Mesmo assim deve ser mais barato do que ir a Lisboa.
- As viagens para Lisboa foram pagas pelos meus irmãos, eu e a minha mãe não tínhamos dinheiro.  
- Para que diabo queres tu ir ao Porrinho?
- É que o meu avô paterno vai ser internado no asilo e está triste por ir para lá, acha que é uma espécie de prisão, um quartel militar.
- E o que é…
- Bem, no Porrinho vive, segundo consta, o filho dele, o Olavo, que é o meu pai.
- E tu esperas encontrá-lo?
- Não sei, mas não custa tentar.
- Não vai ser fácil, mesmo que dês com essa terra. Não te vais pôr a bater a todas as portas, além disso deve haver imensas aldeias espalhadas por esse concelho; não vês Castro Branco, dista daqui da Vila cerca de trinta quilómetros.
- Então o que devo fazer, senhor professor?
- O melhor seria escrever-lhe primeiro, os Correios de lá tentariam entregar-lhe a carta, se viesse devolvida logo se veria, talvez recorrendo à Guarda Civil, ao Alcaide, quem sabe?
- É que já não tenho muito tempo, em Janeiro vou para a vida militar.
- Pois é! E por falares nisso quero desde já chamar-te a atenção para o seguinte: se fores apanhado nesta situação, isto é, quase a ires para a tropa, as autoridades pensarão que tu vais a fugir, prendem-te como desertor, é melhor não arriscares, quem te avisa teu amigo é.    
- Não tinha pensado nisso, mas o meu avô…
- O velhote não fica mal instalado no asilo, tem comida para comer, remédios, cama, roupinha lavada, que mais quer? Olha que não falta quem para lá queira ir, ele julga-se superior aos demais? E tens a certeza que o filho o quer em casa?
- Não é isso, senhor professor; o problema dele é perder a liberdade que tem tido; meteram-lhe na cabeça que no asilo é preciso cumprir horários para as refeições, para deitar, para levantar, para tudo!
- A isso chama-se regras, disciplina; tu também a vais ter a partir de Janeiro. E achas isso mal?
- Não; eu a bem dizer também uso horários para tudo, mas não são os outros a impormos, se eu quiser posso alterá-los.
- É certo, mas no asilo tem de ser assim, se não cada internado fazia o que queria, era uma anarquia total, impossível de controlar. Eu não fui à tropa, e tenho bastante desgosto não ter sido apurado, mas pertenço à Legião, e ali há disciplina, se há!
- Eu tenho visto; vestem e marcham como as forças militares.
- É praticamente a mesma coisa, e temos armas de fogo. E a marchar? Já viste como nós marchamos todos certinhos, dá gosto ver.
- E estendem a mão ao chefe…
- Isso é um sinal de obediência, de respeito pelo nosso superior, é como a dizer-lhe que pode contar connosco em todas e quaisquer circunstâncias. Daremos a vida pela Pátria, pela Nação, pelo Chefe.
- Eu não tenho jeito para essas coisas, o que gostaria é que me deixassem ficar aqui quietinho, a trabalhar no meu ofício; não nasci para vestir fardas.
- Quando voltares da tropa já pensarás de outra maneira, vais ver; até o corpo te cresce!   
- Estou é com medo da guerra.
- Quem me dera a mim poder ir, mas já não tenho idade para isso; olha que já me ofereci, é preciso defender a nossa querida pátria, seja na metrópole, seja em Angola, Moçambique ou Guiné. Já nos bastou termos perdido a Índia, esse maldito Nehru! Ainda bem que já morreu. Não tenhas receio, vais ser um verdadeiro herói, o orgulho da nossa terra. Quando regressarem, tu e os outros, nós aqui estaremos para vos prestarmos homenagem.
- Quanto ao meu pai…
- Se ele estivesse interessado em ver o velhote, ampará-lo na velhice, já cá tinha vindo; desconfio bem que o esqueceu, olha que se fosse rico não lhe largava a porta, são todos iguais.
- De qualquer maneira vou tentar.
- Antes de ires é melhor falares comigo; eu passo-te um salvo-conduto, a fim de poderes circular sem ninguém te incomodar.
- Obrigado, senhor professor.  
 
// continua...

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