LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
Capítulo XXXIV
Nem sempre
é princípio o fim
Escutem, se puderem, esta interessante e
comovedora conversa entre avô e neto:
- Avô, o senhor
provedor vai deixá-lo entrar para o asilo.
- Parece que estás
contente por isso!
- Contente e triste, ao
mesmo tempo; preferia não ter de ir à tropa, ficar aqui consigo e com a minha
mãe, apesar de ela ser como é.
- No meu tempo de jovem
a vida militar era boa para alguns: ficavam lá, faziam vida daquilo, sempre
tinham comida, roupa, uma cama para dormir e algum dinheiro.
- Ganhavam pouco…
- Quando fui às sortes,
em 1909, toda a gente ganhava pouco neste país, excetuando uns quantos; por
isso, ter um prato de comida, mesmo que não prestasse, já era bom.
- Quando ouço falar as
pessoas da sua idade fico com a ideia de que era melhor não terem nascido!
- Bem podes dizê-lo;
muitas vezes desejei morrer ao longo da minha triste vida. Não calculas, mas tu
também já passaste por isso, ter fome e não ter nada para comer, ter frio e não
ter roupa para vestir, ter febre e não termos ninguém que nos refresque a
testa.
- Pobre avô.
- Mesmo assim penso que
não foi mal ter nascido, ter visto e vivido tudo aquilo que vivi, ter comido o
pão que o diabo amassou. Depois da morte terei milhares de histórias para
contar àquelas almas que comigo estiverem, dessa maneira não nos aborreceremos
no além.
- Sabe que às vezes
penso nessa vida depois da morte? É uma sensação esquisita, estranha!
- Todos deviam pensar;
seriam mais compreensivos, e tolerantes, uns para com os outros.
- O senhor padre
Alberto disse na missa de domingo que os maus iriam todos arder no inferno; os
bons iam para o paraíso; e aqueles que não são bons nem maus aguardarão no
purgatório que deus ou o diabo os chamasse!
- Terão de esperar que
haja vaga, como eu esperei agora para entrar no asilo, no quartel.
- É curioso: mesmo depois
de morrer é preciso ir para a fila, aguardar a sua vez!
- Mas, uma vez no céu,
fica-se lá para sempre.
- Deve ser bom viver
lá.
- Para nós, os que aqui
neste planeta vivemos mal, qualquer coisa melhor do que isto será bom.
- Se eu soubesse onde
se encontra o seu filho…
- Quando entrei na
vossa casa disse-te que nunca tivera notícias dele; isso não é completamente
verdade. Há uns dez anos atrás recebi uma carta dele e da minha nora dizendo-me
que qualquer dia apareceriam por aí a fim de nos visitarem; até hoje ainda não
recebi essa visita!
- O avô respondeu à
carta?
- O senhor Antunes da
mercearia é que me fez o favor de responder; eu não sabia o que lhe falar, não
tenho escolaridade nenhuma.
- E a direção?
Lembra-se da direção?
- A carta perdeu-se,
deve ter ido parar à estrumeira, ou à fogueira; só me lembro que o lugar onde
moravam se chamava Porrinho.
- Porrinho é na Galiza,
já ouvi falar nesse nome.
- Seja onde for, eu não
podia lá ir; nem dinheiro tinha para comprar comida, quanto mais para passeios!
- Vou perguntar a
alguém, talvez ao senhor professor Romano, ele sabe tudo, se conhece essa
localidade galega. Se fosse perto daqui e as viagens não ficassem muito caras
dava lá um pulo; até pode ser que ele o venha buscar, nesse caso já não ia para
o asilo.
- És tão generoso, mas
olha que se ele se lembrasse do velho pai já cá tinha vindo buscar-me há muito,
com certeza que também vive com dificuldades, os espanhóis não estão melhor do
que nós, não penses.
- Ele pode julgar que o
avô ainda se encontra a trabalhar os campos, que a avó está viva, enfim, não lhe
passará pela cabeça que as coisas correm deste jeito.
- Podes tentar saber,
mas não tenho nenhumas esperanças.
Nas
entranhas do animal coabitam o bem e o mal
- Na Galiza; ainda é um
bocado longe daqui.
- Muito longe?
- Sabes onde é Valença?
Já lá foste?
- Nunca lá fui, só a
Monção, mas passei lá de comboio, há três anos, quando fui a Lisboa visitar os
meus irmãos.
- Olha: o Porrinho fica
mais ou menos frente a Valença. Claro que ainda são uns bons quilómetros;
primeiro é necessário passar pela cidade de Tui.
- Fica caro lá ir.
- Mesmo assim deve ser
mais barato do que ir a Lisboa.
- As viagens para
Lisboa foram pagas pelos meus irmãos, eu e a minha mãe não tínhamos dinheiro.
- Para que diabo queres
tu ir ao Porrinho?
- É que o meu avô
paterno vai ser internado no asilo e está triste por ir para lá, acha que é uma
espécie de prisão, um quartel militar.
- E o que é…
- Bem, no Porrinho
vive, segundo consta, o filho dele, o Olavo, que é o meu pai.
- E tu esperas encontrá-lo?
- Não sei, mas não
custa tentar.
- Não vai ser fácil,
mesmo que dês com essa terra. Não te vais pôr a bater a todas as portas, além
disso deve haver imensas aldeias espalhadas por esse concelho; não vês Castro
Branco, dista daqui da Vila cerca de trinta quilómetros.
- Então o que devo
fazer, senhor professor?
- O melhor seria
escrever-lhe primeiro, os Correios de lá tentariam entregar-lhe a carta, se
viesse devolvida logo se veria, talvez recorrendo à Guarda Civil, ao Alcaide,
quem sabe?
- É que já não tenho
muito tempo, em Janeiro vou para a vida militar.
- Pois é! E por falares
nisso quero desde já chamar-te a atenção para o seguinte: se fores apanhado nesta
situação, isto é, quase a ires para a tropa, as autoridades pensarão que tu
vais a fugir, prendem-te como desertor, é melhor não arriscares, quem te avisa
teu amigo é.
- Não tinha pensado
nisso, mas o meu avô…
- O velhote não fica
mal instalado no asilo, tem comida para comer, remédios, cama, roupinha lavada,
que mais quer? Olha que não falta quem para lá queira ir, ele julga-se superior
aos demais? E tens a certeza que o filho o quer em casa?
- Não é isso, senhor
professor; o problema dele é perder a liberdade que tem tido; meteram-lhe na
cabeça que no asilo é preciso cumprir horários para as refeições, para deitar,
para levantar, para tudo!
- A isso chama-se
regras, disciplina; tu também a vais ter a partir de Janeiro. E achas isso mal?
- Não; eu a bem dizer também
uso horários para tudo, mas não são os outros a impormos, se eu quiser posso
alterá-los.
- É certo, mas no asilo
tem de ser assim, se não cada internado fazia o que queria, era uma anarquia
total, impossível de controlar. Eu não fui à tropa, e tenho bastante desgosto
não ter sido apurado, mas pertenço à Legião, e ali há disciplina, se há!
- Eu tenho visto;
vestem e marcham como as forças militares.
- É praticamente a
mesma coisa, e temos armas de fogo. E a marchar? Já viste como nós marchamos
todos certinhos, dá gosto ver.
- E estendem a mão ao
chefe…
- Isso é um sinal de
obediência, de respeito pelo nosso superior, é como a dizer-lhe que pode contar
connosco em todas e quaisquer circunstâncias. Daremos a vida pela Pátria, pela
Nação, pelo Chefe.
- Eu não tenho jeito
para essas coisas, o que gostaria é que me deixassem ficar aqui quietinho, a
trabalhar no meu ofício; não nasci para vestir fardas.
- Quando voltares da
tropa já pensarás de outra maneira, vais ver; até o corpo te cresce!
- Estou é com medo da
guerra.
- Quem me dera a mim
poder ir, mas já não tenho idade para isso; olha que já me ofereci, é preciso
defender a nossa querida pátria, seja na metrópole, seja em Angola, Moçambique
ou Guiné. Já nos bastou termos perdido a Índia, esse maldito Nehru! Ainda bem que
já morreu. Não tenhas receio, vais ser um verdadeiro herói, o orgulho da nossa
terra. Quando regressarem, tu e os outros, nós aqui estaremos para vos
prestarmos homenagem.
- Quanto ao meu pai…
- Se ele estivesse
interessado em ver o velhote, ampará-lo na velhice, já cá tinha vindo;
desconfio bem que o esqueceu, olha que se fosse rico não lhe largava a porta,
são todos iguais.
- De qualquer maneira
vou tentar.
- Antes de ires é
melhor falares comigo; eu passo-te um salvo-conduto, a fim de poderes circular
sem ninguém te incomodar.
- Obrigado, senhor
professor.
// continua...
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