LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
CAPÍTULO XXX
A religião
é mel para os que dela se alimentam
A
doutrina, ou catequese, era obrigatória para todas as crianças que
frequentassem a escola primária; o padre, e o professor do ensino primário,
formavam uma sagrada, sólida e estratégica aliança, mantinham uma vigilância
apertada para que essa obrigação fosse cumprida. O castigo seria severo para
todos aqueles que tentassem ludibriá-los. Eu, católico como era, embora com um
espírito rebelde, nunca faltava a esses deveres. Venham assistir a uma aula:
- Quem é Deus?
- Deus é o pai
todo-poderoso, criador do céu…
- Muito bem. E como se
compõe a santíssima trindade?
- Pai, Filho, Espírito
Santo.
- Como se chama a mãe
de Jesus?
- Maria.
- Insuficiente. É
assim: Virgem Maria, esposa de São José. Apanhas uma canada; para a próxima já
responderás corretamente.
- Mas o senhor abade
disse que a mãe de Jesus se chama simplesmente Maria.
- O senhor abade é o
senhor abade; eu sou eu. Eu sou a catequista e estou aqui para vos ensinar.
Vais dizer-me, tu aí, ó Francisco, quais são os sete pecados cardeais?
- «Soberba»; «avareza»;
«luxúria»; «ira», e não me lembro de mais.
- Quem quer responder?
Tu vais para ali de castigo, assim, de costas para os outros.
- Eu sei, senhora
catequista.
- Então responde.
- … «gula», «inveja» e «preguiça».
- Muito bem. O pecado
da preguiça é o que vocês mais cometem. Agora ali o Cândido: vais-nos dizer
quais são os dez mandamentos da lei de Deus.
- Dez mandamentos?
Tantos?
- Ninguém ri, se não
fica ali de castigo. São dez e vais dizê-los.
- Só me lembro de
quatro: «não matarás»; «não furtarás»; «não levantarás falso testemunho»; «não
cobiçarás mulher alheia»; …
- … «não invocarás o
santo nome de Deus em vão»; … Bem, agora vamos sair. Tu, ó Aniceto, vais buscar
a caixa, o Júlio leva a bandeira… Já vem ali o senhor abade, todos perfilados.
- Boa tarde! Então como
vão os nossos rapazes?
- Uns melhor do que
outros, senhor padre Alberto.
- Vamos marchar um
pouco, em frente, hoje damos a volta à avenida Salazar, o exercício também faz
bem. Não se esqueçam que no próximo domingo às nove horas fazem a primeira
comunhão, no fim passam pela sacristia para tomar um copo de cacau quentinho.
- Senhor abade, eu não
tenho roupa para levar, só tenho esta que trago vestida.
- Oh, diabo! Isso é que
é mau. Olha: vais falar com a minha irmã Teresinha, ela que veja o que se pode
arranjar, talvez adapte – ela tem muito jeito para a costura – umas calças
minhas que já não me sirvam, ultimamente engordei uns quilitos, e uma camisa
usada também por lá se arranja.
- Sim senhor, senhor
padre Alberto; e muito obrigado.
- Deus compensar-me-á
sobejamente por tudo aquilo que faço pelos pobrezinhos, é a minha obrigação.
Jesus dizia sempre: «venham a mim as
criancinhas.» Então eu, não havia de respeitar esse seu amor pelos mais
pequeninos? Esses corpos bem direitos. Depois da curva vamos cantar o hino nacional,
ai daqueles que se enganem. Assim: «heróis
do mar, nobre povo, nação valente, imortal, levantai hoje de novo o esplendor
de Portugal, entre as brumas da memória, ó pátria sente-se a voz dos teus
egrégios avós que há de guiar-te à vitória; às armas, às armas, sobre a terra e
sobre o mar! Às armas, às armas, pela pátria lutar, contra os canhões marchar,
marchar.»
- Não está mal, mas
quero essas vozes bem afinadas, a Pátria vem depois do Pai que está no céu: «Deus, Pátria, Família.» Quem é o Chefe,
quem é?
- Salazar! Salazar!
- Mais forte.
- Salazar!!!
Salazar!!!...
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