ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
Na parte alta vê-se a capela da Orada |
UMA PEDRA FORA DO LUGAR
Para meu espanto, quando em tempos estive
em Melgaço, deparei com uma pedra tumular no sítio das Carvalhiças, da parte
exterior do convento, pedra essa que, segundo me informaram, foi retirada da
igreja da Misericórdia aquando das obras nela, igreja, efetuadas. Augusto César
Esteves em «O Meu Livro das Gerações Melgacenses» diz, referindo-se à pessoa,
cujo corpo esta lápide cobria: «… o seu
cadáver pertence ao número dos primeiros inumados no cemitério municipal».
Dos primeiros sim, mas antes dele foi lá enterrado o meu bisavô João António Alves,
serralheiro, ao qual o Mário de Prado atribui a autoria dos portões do
cemitério, pois morreu no dia 14/12/1877. José Augusto Vieira, na sua obra
«Minho Pitoresco», editada em 1886/1887, informa-nos de que o cemitério da vila
de Melgaço tinha sido recentemente inaugurado. Temos, evidentemente, de ter em
conta o tempo decorrido entre o escrito e a publicação. Desconheço a razão por
que deslocaram a dita pedra para tão longe, mas o mais certo foi dela se terem
esquecido, pois é nossa tradição respeitar escrupulosamente os túmulos dos
nossos avoengos. Claro que dentro de algum tempo, estando como está exposta à
chuva e ao sol, sumir-se-ão os dizeres que a identificam: «AQUI JAZ O Rdº João Evangelista de Sá Sotto Mayor Abbade que foi desta
villa – Faleceu em 20 de 11 de 1878».
O padre João Evangelista nascera em 1793 e
era filho natural de D. Caetana Luísa Soares de Meneses Sotomaior, ou Pereira
de Castro. Sua tia, D. Francisca de Quevedo, ajudou-o financeiramente,
custeando todas as despesas com os seus estudos. Em 1843, por decreto de 15 de
Abril, é despachado abade para a freguesia de Santa Maria da Porta, vila de
Melgaço, onde permanecerá até à sua morte. Nesse longínquo ano de 1843 era presidente
da Câmara Municipal Manuel Inácio Gomes Pinheiro. Consta que o padre
Evangelista teve a auréola de santo, talvez pelas suas obras caridosas e pela
sua bondade para com os pobres; não possuímos no entanto dados, nem quaisquer
milagres, reais ou inventados, que o possam confirmar.
Aquando das três invasões francesas (1807, 1809 e 1810) era
ele ainda um jovenzinho e delas apenas ouviria falar, tal como outros rapazes da
sua idade. Os franceses nunca puseram as suas botas em terras melgacenses, porque
o nosso concelho não tinha para eles qualquer valor estratégico, nem era rico
ou farto para alimentar os seus famintos soldados e oficiais. A fuga
precipitada da família real e de toda a corte para o Brasil não o deve ter afetado
minimamente. Mas quando se deu a revolução liberal de 1820, preparada e
dirigida por Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges, e José da Silva
Carvalho, entre outros, já ele tinha 27 anos de idade, e nessa altura sim, deve
ter reagido a favor ou contra. Viveu todas as lutas liberais, a guerra civil,
as mudanças constantes de governo, as vigências da Constituição de 1822 e da
Carta Constitucional dada ao país pelo rei Pedro IV em 1826; assistiu, com bonomia,
ou talvez não, à extinção das ordens religiosas, e ao encerramento do poderoso
convento de Fiães. Deve ter conhecido perfeitamente o facinoroso Tomás das
Quingostas, e talvez tenha respirado de alívio quando o informaram da sua morte
em 1839.
Nunca chegou a viajar pela estrada real
número 23, depois estrada nacional número 202, e desde este ano de 1996 estrada
camarária, mas assistiu com alegria à inauguração da linha telegráfica em 1874.
Não teve o privilégio de beber as famosas águas do Peso, achadas somente nos
anos oitenta, mas viu chegar o comboio ao Minho.
O padre João Evangelista está ligado de
certo modo à minha família, pois no dia 2/5/1861, na igreja paroquial da vila,
casou Francisco Maria Gonçalves (que
ficou a partir desse dia a ser padrasto da minha bisavó Albina, a quem o mesmo
sacerdote batizara em 1852) com Teresa
Joaquina Alves, minha trisavó. Esse Francisco Maria passou mais tarde a assinar
Francisco Maria de Melo, talvez por ser filho de um homem com esse apelido, e
foi o pai dos Melos «cucos» de Melgaço; Zé cuco, 1859-1920 = José Joaquim Alves
de Melo (pai do Mâncio, Roberto, Vítor…); Ilídio cuco, 1866-1952 = Ilídio Cândido Alves de Melo (tem ainda alguns filhos vivos em Melgaço – Maria Julieta de
Melo, nascida em 1909); Júlia cuca, 1868-1910 = Júlia da
Glória Alves de Melo (mãe do António, do Gaspar “Pala” e do
José “Truta”, todos falecidos); Cacilda cuca,
1875-1956 = Cacilda da Glória Alves de Melo (mãe
da Aurora e do Umberto, este sogro do nosso amigo Manuel Igrejas, e esposa de
José António Penha, mais conhecido por Zé Tringuelheta, célebre contador de
histórias.)
O referido pároco, a 9/4/1869, batizou
também na igreja matriz a minha avó materna, cujo padrinho era o governador da
praça, Luís de Sousa Gama, um liberal dos quatro costados, com sangue na
guelra, o qual lutou de armas na mão contra o tirano D. Miguel, rei pela força
e pela traição, verdadeira marioneta da mãe, Carlota Joaquina (1775-1830), mulher cruel, sem
coração, “irmã” tardia da «megera e
aleivosa» Leonor Teles, que incitando o filho à revolta e à infidelidade
deu origem a uma guerra civil sangrenta que só terminou com a Convenção de
Évora-Monte, na qual se exigia a expulsão do usurpador. Estávamos então em Maio
de 1834. Para cúmulo da nossa vergonha, e revelando bem a hipocrisia da alta
nobreza, Miguel iria receber, enquanto permanecesse no estrangeiro, a pensão
anual de sessenta contos de réis, verdadeira fortuna para a época. Esta nunca
lhe foi paga porque ele, uma vez lá fora, conspirou contra o governo legítimo e
contra sua sobrinha D. Maria II. Em nossos dias ainda há quem queira
ressuscitar a monarquia, na pessoa de um descendente do degredado. Que os ricos
e poderosos o desejem, não me admiro; mas os pobres e humildes, potenciais
lacaios e vítimas desse regime de elites, custa a crer! Leiam a História de
Portugal desses seis anos em que reinou Miguel I e verão o quanto sofreu o povo
português. Leiam também essa obra admirável de A. Silva Gaio (1830-1870), o romance
histórico «Mário», onde se descrevem algumas cenas pungentes da guerra civil que
opôs partidários do filho segundo de João VI à gente de Pedro IV, o rei
liberal, e depois digam-me se querem de novo a monarquia, sobretudo a
absolutista.
O major Sousa Gama exerceu o cargo de
governador militar de Melgaço entre 1839 e 1870, precisamente até à sua morte,
ocorrida a 31/12/1870.
Em minha posse estão fotocópias de vários
documentos com a assinatura do presbítero João Sotomaior e podem crer que a
letra é bonita e perfeita. Devia ser certamente um homem lido e culto.
Depois deste arrazoado todo, faço um
apelo, embora não saiba a quem: voltem a colocar a pedra tumular no respetivo
jazigo – os mortos têm direito ao eterno descanso.
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1062, de 1/12/1996.
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