LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
XXIV
Todos os
passos do condenado o conduzem ao patíbulo
Decorre o ano de 1962; eu tenho agora dezoito anos, sou um homenzinho, frequento um curso noturno, com a duração de quatro anos, criado por decreto do Ministério da Agricultura. Dedico-me a ele na esperança de encontrar um outro rumo para a minha vida. O meu cérebro vai despertando para o sublime conhecimento, a minha alma descobre o fascínio da ciência. Embora estivesse subjacente a política, ali, naquela escola, ela não se fazia notar, pois o professor, um salazarista confesso, legionário por convicção, tinha como verdade indiscutível que todos os alunos serviam lealmente o regime corporativista. Mas o melhor é porem-se à escuta:
- Tu és o meu melhor aluno, o curso deve-te muito, tens trazido para ele muitos rapazes, fizeste dezoito anos, trabalhas por conta própria, é certo, mas considero que tens capacidade para ires mais longe, a tua arte é muito humilde, e dia a dia degrada-se mais, hoje ninguém manda fazer calçado novo a um sapateiro, só trabalham em consertos, eu vou arranjar-te um emprego no Grémio da lavoura, como sabes sou seu presidente, no princípio do mês que vem já começas lá a trabalhar, o Lito vai para a França, o irmão mais velho mandou-lhe carta de chamada, vamos precisar de alguém para o substituir.
- Mas, senhor
professor; eu nunca tive outra profissão, não sei se me vou adaptar, é tão
diferente uma coisa da outra.
- Ninguém nasce
ensinado, com o tempo habituas-te, vais ver que acabas por gostar, o ordenado
inicial não é muito grande, mas depois serás aumentado, tens ali o teu futuro,
sempre é uma atividade mais asseada, com outro estatuto, e descontas para a
previdência, para quando fores velho teres direito a uma pensão. Está assente:
no início do mês apresentas-te ao serviço, eu vou falar com o senhor Roque, ele
é o chefe do pessoal. Outra coisa: leva a tua melhor roupinha, isso sempre
ajuda, impressiona bem, vais ter de atender ao balcão logo que para isso
estejas preparado.
- Sim, senhor
professor.
*
- Senhor Roque, venho
apresentar-me, o senhor professor Salomão mandou-me vir para cá.
- Já sei; vai falar ali
com o senhor Couto, ele já te dará trabalho, já te dirá o que tens a fazer.
Couto!
- Sim, senhor Roque.
- Encaminha aqui o novo
funcionário.
- Sim, senhor; deixe-o
comigo. Cândido!
- Sim, senhor Couto.
- Vês estes sacos?
- Vejo sim, senhor
Couto.
- Estão cheios de
sementes, adubos, rolhas de cortiça…
- Pelo que vejo, as
sementes têm cores variadas!
- E os adubos também;
mas cuidado, não os cheires, olha que alguns são tóxicos, muito perigosos. Os
preços estão aqui, nesta tabela, não os confundas, há duas balanças, uma
grande, pode-se pesar nela centenas de quilos, e uma mais pequena, a que se
encontra no balcão, essa é só para os artigos leves.
- E vem cá muita gente
comprar?
- Nos dias de feira o
Grémio é muito movimentado, mas todos os dias há muito trabalho, terás também
de ir à Central de Camionagem buscar os sacos que chegam dos armazéns para nós,
levarás aquele carrinho de ferro.
- Oh! raio. Disso é que
o senhor professor não me informou, só me disse que era para trabalhar ao
balcão; andar por aí com o carrinho, e logo este que faz uma chiadeira dos
diabos.
- Pões-lhe óleo; olha
que não te caem os parentes na lama, tu até tiveste sorte ter vindo para aqui,
houve muitos pedidos, o senhor professor é que gosta de ti, aprecia as tuas
qualidades, e pronto, trouxe-te. Em relação ao carro, o Nando, que está cá há
pouco tempo, também vai à Central algumas vezes, ultimamente é ele que lá tem
ido.
- E o ordenado, sabe
quanto vou ganhar?
- O senhor Roque disse
que começas a ganhar trezentos escudos por mês, depois será aumentado.
- Trezentos escudos?!
Isso é pouco, eu já tirava mais na minha oficina.
- Olha que eu não estou
a ganhar muito mais, e tenho já vinte anos de carreira.
*
- Ó Nando, sabes que
isto de andar com o carrinho de um lado para o outro, carregado até não poder
mais, está bem que é quase todo o caminho a descer, não me está a agradar
muito, se ainda o ordenado fosse bom, mas é uma miséria, baixíssimo, e querem
que um tipo ande bem vestido, o que se ganha não dá para comprar roupa, eu se
calhar vou-me despedir, que metam outro, ganho mais na oficina e não preciso de
andar vestido com roupa domingueira, e tomar banho duas vezes por semana, no
verão vá lá, vai-se ao rio, mas no inverno… nem casa de banho há na minha casa,
tomo banho num alguidar de barro, já está a ficar pequeno para o meu corpo; por
outro lado, tenho vergonha de andar pelo meio da Vila com este carro, faz um
barulho tremendo, toda a gente olha para nós.
- Tu é que sabes, eu
terei de aguentar, se saísse, o meu pai dava cabo de mim, esfolava-me vivo,
fartou-se de correr atrás do senhor professor para ele me ter no Grémio, mas tu
não tens pai, a tua mãe não risca peva; além disso, és mais velho do que eu quase
dois anos, eu apenas tenho dezassete.
- Está decidido, vou-me
despedir; o professor Salomão é que vai ficar danado comigo, mas o senhor Roque
anda-me sempre a chatear, sempre a dar ordens, raspanetes… Eu não posso com ele;
o Couto, esse é boa pessoa, um paz de alma, o Roque faz dele o que quer, eu não
aguentava.
*
- Senhor Roque: no fim
deste mês vou embora daqui, deste emprego.
- Embora?! E porquê,
posso saber?
- Não gosto deste
trabalho, vou continuar a trabalhar na minha oficina, os meus clientes andam
sempre a pedir-me para voltar, apreciam muito o meu serviço, até a criada do
senhor doutor juiz me pediu para reabrir a oficina.
- Já informaste o
senhor professor?
- Não, estou com receio
que ele fique zangado comigo; quase um ano aqui já deu para ver se gosto ou
não, o senhor professor vai certamente compreender.
- Deixa lá, eu falo com
ele; de facto nunca te vi muito entusiasmado, não nasceste para isto, segue o
teu rumo.
- Obrigado, tira-me um
grande peso de cima.
- O pior é arranjar
outro, agora com a guerra colonial foge tudo para o estrangeiro, qualquer dia
não há população masculina neste concelho, têm medo da guerra, olha que eu
lutei na primeira grande guerra, a de 1914-1918, e não morri, naquele tempo
havia homens, não tínhamos medo, agora fogem como cobardes, deviam ser todos
presos e enviados para África, para a frente de batalha.
- Eles também fogem
porque aqui nesta terra se ganha pouco, eu entrei a ganhar trezentos escudos
por mês e ao fim de quase um ano continuo a receber o mesmo ordenado!
- Estávamos a pensar
aumentar-te, mas vais-te embora.
- Nem para comprar
roupa chega, e aqueles que trabalham nas obras não ganham muito mais, e
trabalham como escravos, de sol a sol; os camponeses, coitados, se os anos
agrícolas correm mal é a fome, a absoluta miséria.
- Não exageres;
antigamente vivia-se bem pior, olha que antes do senhor doutor Oliveira Salazar
assumir o poder os partidos políticos não se entendiam, havia revoluções
constantemente, não havia paz em Portugal, a economia estava de rastos, os
anarquistas e os republicanos deram cabo do nosso país, levaram-no à banca
rota, já não tínhamos crédito no estrangeiro, a nossa moeda não tinha qualquer
valor, Salazar foi o grande salvador da nossa pátria, devemos-lhe tudo, tudo!
- Eu não sou desse
tempo, sou deste, e agora vive-se mal, a não ser os ricos, e também aqueles que
têm ordenados chorudos. O senhor Roque já pensou o que se pode fazer num mês
com apenas trezentos escudos?
- É bem melhor do que
nada, vocês agora querem levar vida de lorde, são arrogantes; pobrezitos, mas
com barriga de nababo! Soberbos, é o que vocês são, olha que eu para chegar
aonde cheguei tive de esperar e guerrear muito, que os meus pais também eram
gente de escassos recursos, são do tempo do teu avô Gaspar, era boa pessoa,
humilde, bom homem, os copos é que deram cabo dele; também, era a única alegria
e distração que eles tinham! Andava pelas festas, a vender rebuçados, fabricados
por ele, deliciosos, muitos comi! Está bem, queres ir embora vai, faço votos
para que tudo te corra pelo melhor.
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