ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
Romance histórico
Por Joaquim A. Rocha
As cansadas e barulhentas viaturas por
fim chegaram. Os soldados, sexualmente satisfeitos, sorridentes, quase felizes,
saltaram com extrema agilidade para o seu interior. Praticamente esquecidos da
operação, dos sofrimentos a que o seu corpo e o seu espírito tinham sido sujeitos,
falam agora daquele acto machista que julgam, pobres idiotas, dignificá-los!
Dentro da viatura o tema da conversa é apenas um: sexo! «Quantas deste, ó Santarém?»
O outro responde, a rir: «Eu sei lá! Algumas três!» O Coimbra, com imensa
mágoa, lamenta-se: «Eu só consegui dar duas!» Logo a seguir outra voz: «Pois
eu, se não fôssemos já embora, ainda dava mais uma ou duas; de chicha nunca me
farto!» Era o Famalicão, explodindo de ironia. O Braga, aborrecido consigo
mesmo, por ter dormido enquanto os outros fornicavam, comenta: «Caramba! Pelo
que ouço, vocês emprenharam as gajas!» Logo, o pérfido Lamego, zomba: «E qual
de nós será o pai das crianças?!»
Todo o percurso nisto! Não podia mais. Vomitava raiva! Finalmente
chegámos à Vila de Teixeira Pinto. «Que bom!» - disse eu baixinho, respirando
de alívio.
- Na verdade, esse crime não tem perdão
– explode Henrique. – Nem o facto de
estarem em guerra o justifica!
- Monstruoso! Hediondo! Somente os
homens de Gengiscão se podem comparar com eles.
- E quando chegaram ao quartel, desta
vez havia água nas torneiras?
- Não me fales disso; o soldado não
contava, não valia um tostão furado, um pataco dos antigos; era escumalha, lixo
humano. Haver ou não haver água para nós tomarmos um banho repousante era
indiferente para os superiores. Desde que eles a tivessem… Acontece que obras
públicas não existiam – tudo estava paralisado. Alguma coisa que se fizesse na
então província da Guiné-Bissau era realizada pela tropa! As ruas de Teixeira
Pinto eram de terra batida; não existia Câmara Municipal, nem Juntas de
Freguesia, nada!
- Isso revela uma certa mentalidade. E
contou tudo aquilo que aconteceu ao seu capitão?
- Contar-lhe?! Ele nem sequer me
ouviria! E se os meus colegas viessem a saber que falara sobre o assunto com o
comandante da Companhia, considerar-me-iam traidor, renegado, e vingar-se-iam de
mim certamente. Isso estava fora de questão. O melhor era tentar esquecer
aquilo que se passou. Sozinho não podia mudar o mundo.
Os seres humanos são pior do que as feras em certas circunstâncias, e
este e outros crimes repetir-se-ão através dos séculos. Ninguém tenha dúvida
disso!
crianças tirando água de um poço |
As operações, batidas, missões, patrulhamentos, acções, como lhe queiram chamar, ou então arranjem outro nome para o sofrimento, para a dor, física e espiritual, sucederam-se com poucas interrupções.
Ainda me encontrava em Teixeira Pinto quando decidi, ou me autorizaram,
ir à consulta do médico militar. Estava escanzelado. Pesava somente quarenta e
sete quilos! O clínico, e depois de me auscultar, fez, ou mandou fazer,
análises e chegou à conclusão de que eu tinha o estômago cheio de bichinhos (micróbios) que devoravam tudo aquilo que
eu ingerisse. Receitou-me uns medicamentos e lá fui aguentando. Mas antes de
abandonar o seu consultório, aconselhou-me:
«Quando chegares à Metrópole vai
ao hospital e trata-te como deve ser.»
Agradeci a sua sábia sugestão;
faltava um ano para eu regressar. Que eram doze meses na vida de um ser humano?
Doente, ou com saúde, o soldado tinha de estar ali, a combater pela Pátria e
pelo Chefe. No fim da campanha teria a sua medalha e o louvor hipócrita.
Depois, já como civil, recuperaria, ou não, das mazelas arranjadas na guerra.
Tudo à sua custa! Mas isso não tirava o sono aos governantes.
Quanto aos dentes – já tinha dois apodrecidos – teria de me deslocar a
Bissau a fim de os extrair, único sítio onde havia “dentista”.
Entretanto aconteceu nessa recatada e bonita
vila, um dos episódios mais cruéis de toda a campanha: na prisão do quartel
encontrava-se um prisioneiro idoso, com uma barbicha algo ridícula, mas
importante para ele. Não se sabia bem por que razão o homem se achava detido.
Era difícil escutar da sua boca uma única palavra. Tinha sido feito prisioneiro
numas das batidas que se levavam a cabo periodicamente nas redondezas do aquartelamento.
- Até faz lembrar as rusgas na baixa
lisboeta para apanhar as prostitutas! – interveio
Henrique, com o intuito de desanuviar um pouco a tensão.
- Brinca, brinca, maroto, que o teu
brincar tem graça! Agora a sério: nessas missões tudo que viesse à rede era peixe
– novos e velhos, homens ou mulheres, excluindo as crianças, tudo servia! Após
um breve, ou prolongado, interrogatório grotesco, mandavam-se embora ou matavam-se
na primeira oportunidade.
O velho, certo dia, aparece estendido, sem vida, no pavimento da sua
cela improvisada. Ainda mostrava os sinais da violência junto à barbicha, agora
quase toda ela arrancada!
Quem teria sido, quem… Os indícios escasseavam, provas… inexistentes! A
sentinela nada viu, nada escutou, não desconfiava de ninguém. Mas eis que um
dia, no bar dos soldados, o Bragança se descai. O álcool, esse amigo da
verdade, passou-lhe uma rasteira: tinha sido ele! Como se divertira! «Arranquei-lhe
pêlo a pêlo!» - conta, eufórico e importante. «Os turras não merecem compaixão,
por sua causa é que nós aqui nos encontramos!» - berra para todos o ouvirem
bem.
- É óbvio que o prenderam e
castigaram?! – interpreta Henrique.
- Por mais incrível e surpreendente que
isso nos pareça, nem preso nem castigado! Por matar um presumível colaborador
da guerrilha? «Caramba! Merecia era uma medalha!» - comentavam entusiasmados os
seus incontáveis admiradores.
- O seu colega revelou-se um grande
canalha, um patife! Merecia um severo puxão de orelhas, um castigo exemplar.
- Mas espera! Em contraste com este
episódio, passou-se este outro: juntámo-nos uns quantos soldados e, a pé, fomos
conhecer melhor os arredores de Teixeira Pinto. Seguimos por uma estradinha de
terra batida, G-3 ao ombro, e de repente avistámos um campo de ananaseiros.
Aquele cheirinho agradável indicava-nos que o fruto já estava bom para comer.
Um dos camaradas sugeriu: «Como não se encontra por perto o dono, vamos colher um
ou dois ananases; ninguém vai dar por nada – são tantos!»
Embora com uma certa relutância, acompanhei os outros e tirei apenas um.
Não era um grande apreciador desse fruto – gostava mais de pêssegos ou peras.
Frutinha da minha terra minhota.
O proprietário, um negro de olhos
de águia, tudo observou sem ser visto por nós. Assim, quando regressámos ao
quartel já lá tínhamos a queixa. Chamados ao comandante, ouvimos uma
admoestação daquelas que jamais se olvidam: «Devem respeitar a propriedade alheia;
o dono dos ananases é amigo e antigo cooperante da tropa portuguesa. Isto que
não volte mais a acontecer; não quero larápios na minha Companhia. Agora vão
pagar com língua de palmo o que comeram. Cada um de vocês desembolsará a
importância de vinte escudos!»
- Não considero o castigo exagerado...
acho até que foi leve.
- Amigo Rique: com esse dinheiro
compravam-se três cervejas das maiores, mais ou menos o que se bebia diariamente
quando não se saía do quartel, e comiam-se umas sandes de queijo, chouriço ou
presunto, isto no bar é claro. O ananás que furtei, quando muito, valeria cinco
escudos!
- E pagaram?
- Que remédio! Com língua de palmo. Esse
dinheiro seria descontado no pré. Hoje penso que não foi totalmente errada essa
sentença, só custava contudo verificar que os critérios para a aplicação da
pena eram completamente arbitrários.
- Vejo que a justiça militar nessa
altura andava muito por baixo!
- Escuta o caso seguinte, emblemático
de tudo o que atrás disse. Ouve e dá-me a tua opinião: o soldado que assassinou
o velhote da barbicha, vendo que ficara impune, e ainda por cima o crime lhe
trouxera certa fama, começou a pensar noutra patifaria digna dele, do seu “prestígio”. Havia perto do nosso quartel
uma bajuda (rapariga virgem),
engraçada, com quinze, dezasseis anos. A moça via a tropa como amiga e por isso
dava conversa aos soldados. Nunca lhe passara certamente pela mente receber de
nós qualquer tipo de maldade. Porém, o Bragança, já a tinha fisgado. Um dia
disse aos camaradas que o acompanhavam: «Hei-de comê-la, hei-de partir katota
com ela! Não sei ainda como, mas isso vai acontecer de certeza absoluta!»
O Sintra, gozão, mas ao mesmo tempo ponderado, observou: «Vê lá no que
te metes, olha que o capitão não gosta que se abuse dos pretos nossos amigos; a
bajuda vai fazer queixa de ti, denunciar-te, e é o fim do mundo; eu não
arriscava.»
«Se fizer queixa, rebento-lhe com os miolos!» - reagiu a sinistra
criatura, de punhos cerrados.
«Tretas! De qualquer modo eu nada sei: não ouvi nada!» - apressa-se a
dizer o Sintra.
Passado uns escassos dias o Bragança apareceu triunfante – conseguira a
proeza! Era deveras um herói! «Como o tinha conseguido?!» – perguntaram-lhe,
achando o acto incredível.
«Ah!, Ah!, querem saber? Pois ouçam: falei com a miúda e perguntei-lhe
se alguma vez provara vinho do Porto – que se tratava de uma bebida docinha,
própria para senhoras; as europeias bebiam daquilo todos os dias. Respondeu-me
que não, que nem sequer sabia o que era, nunca tinha visto nem bebido. Enfim,
ficou combinado oferecer-lhe uma garrafa, do bom, para ela provar. Dirigi-me ao
bar da cantina e comprei uma botelha, do mais barato que havia! Depois fui ter
com ela, abri a dita e passei-lha para as mãos. Até lambeu os beiços! Dei-lhe
mais. Bebeu, como quem bebe água! Às tantas, quando vi que já estava meio tonta,
levei-a para o capim. De morte, meus amigos, de morte! Nunca tinha manjado nada
semelhante. Um autêntico pitéu!»
«Eh, pá! Tu violaste a gaja! Estás tramado» - disse com certo receio e
alguns ciúmes um dos seus amigos. «Não sejas parvo» - retorquiu o Bragança.
«Para eu ser castigado teria de ser muita gente; não vês os putos mulatos que
pululam por aí? Alguém os fez, não?! Vocês são cegos! Não vêem entrar nos
quartos dos oficiais, e não só, as raparigas negras?»
O Sintra, poeta ao jeito de António Aleixo, e para acabar com aquela
conversa perigosa, improvisou:
A katota
da bajuda
é fresca
como um limão;
como a
pêra, é carnuda…
é bela…
como um pavão!
«Muito bem!» - disseram todos em uníssono.
«Muito bem!»
- Desta vez foi severamente castigado?
– perguntou Henrique, esperançado em
ouvir um sim.
- Qual quê! O violador tinha novamente
razão. Parece que foi chamado ao comandante, mas o que disseram entre si ninguém
o sabe. O certo é que ficou mais uma vez impune!
- Quase inacreditável o que me acaba de
contar. Estou fulo, irritado. Como é possível que esse malandro, esse sabujo,
não tenha sido severamente punido?! Como?!
- A tropa, meu caro Henrique, a tropa…
tudo explica. Ali a lei era outra. Os oficiais castigavam ou perdoavam conforme
as suas conveniências. Eram os senhores da guerra! Passados uns dias destacaram
o meu pelotão para Cacheu. // continua...
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