ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
UMA VIDA
O primeiro número
de A Voz de Melgaço surgiu a 30/5/1946, não tinha eu ainda dois anos de idade,
brincava nessa altura despreocupadamente nos montes e campos de Cevide. Quem
diria então que aquele rapazinho viria um dia a colaborar em jornal tão
importante! Cinquenta anos é muito tempo para um jornal que vive exclusivamente
do dinamismo da direção, das assinaturas, e da colaboração de uns quantos
amadores de jornalismo que nos intervalos das suas atividades profissionais vão
arranjando tempo para alinhavar umas prosas e uns toscos versos.
Os jornais, se
assim já se podem chamar, apareceram em Portugal no século XVII, depois da
Restauração de 1640; antes desse acontecimento havia as chamadas folhas
volantes, «muitas das quais, pretendendo
levantar a opinião pública contra o domínio espanhol, eram passadas
clandestinamente debaixo da capa.» Filipe III reagiu e impôs-lhes
restrições através da Carta Régia dirigida ao chanceler-mor, Cristóvão Soares:
«de alguns anos a esta parte se tem
introduzido nessa cidade escrever e imprimir relações de novas gerais, e porque
em algumas se fala com pouca certeza e menos consideração, de que resultam
graves inconvenientes, ordenareis que se não possam imprimir sem as licenças
ordinárias, e que antes de as dar se revejam e examinem com particular cuidado.»
Os desembargadores do Paço e a santa inquisição teriam de passar a pente fino
toda a obra impressa, sob pena do impressor a perder na totalidade e ainda
pagar pesada multa «a metade para os
cativos e a outra para o acusador.» Como se vê, a censura salazarista teve
aqui o seu modelo e ultrapassou-o, pois até chegou a censurar artigos escritos
por gente afeta ao próprio regime!
A imprensa teve
um enorme desenvolvimento depois de 1820, ou seja, após a revolução liberal.
Grandes escritores, como Almeida Garret e Alexandre Herculano, entre outros,
colaboraram mais ou menos assiduamente em jornais da época. Depois deles,
Camilo Castelo Branco, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, não falando já de
outros mestres, deixaram para a posteridade belas páginas escritas.
A Voz de Melgaço
pode considerar-se um jornal regional, quer sob o ponto de vista da forma (bom
papel, boa apresentação), quer sob o ponto de vista do conteúdo, embora pudesse
enriquecer as suas páginas se nelas inserisse de vez em quando reportagens e
entrevistas, mas isso acarretaria mais despesas e canseiras, ultrapassando
provavelmente as possibilidades financeiras do quinzenário. Também não ajuda
nada o facto de muitos assinantes não pagarem a assinatura a tempo e horas!
Melhoraria também se muitos dos melgacenses espalhados pelo país e pelo
estrangeiro (o Manuel Igrejas é quase uma exceção) quisessem colaborar
desinteressadamente com artigos da sua autoria; mas não, a terra para eles
significa apenas uma semana ou duas de férias anualmente. Quanto às notícias em
si também poderia melhorar de modo substancial se houvesse em Melgaço, além dos
senhores Alfredo do Paço e Miguel Pereira, alguém que em cada freguesia as
recolhesse e as enviasse para Braga. Podiam mesmo ser remetidas em bruto, depois
seriam trabalhadas na redação. Há pessoas que pensam não ter jeito para
escrever: como sabem, se nunca experimentaram? As sessões da Câmara Municipal
deveriam também ser publicadas, pois tudo que ali se trata diz respeito ao
concelho e ao cidadão. A Conservatória do Registo Civil deveria igualmente
fornecer os registos de nascimento, casamento e óbito (nos jornais antigos era
assim que se procedia), tudo isso faz parte da vida de uma comunidade e a todos
interessa, até para futuros estudos na área da estatística, da economia e da
história.
Os objetivos deste jornal foram expostos no seu primeiro número (páginas 1 e 3): «… interessam-nos, sobremaneira, as coisas de Melgaço e não tanto as pessoas; não vamos guerrear, vamos construir.» Por outras palavras: os conflitos individuais, o egoísmo, o falso bairrismo, a mesquinhez, serão arredados das nossas colunas e somente as obras, os interesses gerais, coletivos, serão focados e estimulados. Não sei se estes objetivos foram sempre escrupulosamente cumpridos e respeitados: há quem diga que não. Mas quem será capaz de exigir mais e melhor a pessoas que se privaram de muita coisa para se dedicarem de corpo e alma a uma empresa, a uma tarefa, cujo lucro não se traduz em dinheiro mas apenas em trabalho, gastos e dissabores? E em troca de quê – prestígio, glória? Quão mais fácil será consegui-los noutras paragens, noutros climas.
Ao longo destes cinquenta anos muita coisa aconteceu, quer interna, quer externamente. A Voz de Melgaço teria forçosamente de refletir essas mudanças. De 1946 (ano em que o jornal nasceu) até Abril de 1974 não era fácil (nem mesmo para aqueles que não hostilizavam o regime, como é o caso) manter uma linha de rumo coerente e imparcial; pois a Voz de Melgaço, de uma forma ou de outra, conseguiu-o. Não bajulou ninguém, não se sentou à mesa do poder como o fizeram outros, cujos princípios ideológicos os obrigavam, pelo menos moralmente, a afastar-se, a opor-se pelo silêncio e pela discrição a um regime opressor e umbiguista. Eu sei que a maioria dos leitores não tem o raro privilégio, como eu tenho, de se instalar, sempre que haja uma hora disponível, nas cadeiras da Biblioteca Nacional, e passar um por um os jornais que se publicaram ao longo dos anos em Melgaço; sei que a memória das pessoas é curta e a tendência é para esquecer; sei que os tempos eram outros e que o analfabetismo, a ignorância, o servilismo e a subserviência torpe grassava no nosso concelho, impedindo as gentes humildes de ver aquilo que as rodeava, não distinguindo, ou distinguindo mal, aquilo que as favorecia ou prejudicava. Criaram-se fações, pequenas tribos, cujo chefe punha e dispunha dos seus seguidores. A Voz de Melgaço, através da palavra justa do padre Júlio Vaz deu, ou pelo menos tentou dar, algumas estocadas bem dadas nesses caciques de meia tigela. É bem verdade que foi a queda do regime que provocou por arrastamento a sua queda, mas de qualquer modo sempre tiveram um dedo apontado à sua arrogância e desprezo pelos valores humanos e locais.
feira medieval em Melgaço (2018) |
Os objetivos deste jornal foram expostos no seu primeiro número (páginas 1 e 3): «… interessam-nos, sobremaneira, as coisas de Melgaço e não tanto as pessoas; não vamos guerrear, vamos construir.» Por outras palavras: os conflitos individuais, o egoísmo, o falso bairrismo, a mesquinhez, serão arredados das nossas colunas e somente as obras, os interesses gerais, coletivos, serão focados e estimulados. Não sei se estes objetivos foram sempre escrupulosamente cumpridos e respeitados: há quem diga que não. Mas quem será capaz de exigir mais e melhor a pessoas que se privaram de muita coisa para se dedicarem de corpo e alma a uma empresa, a uma tarefa, cujo lucro não se traduz em dinheiro mas apenas em trabalho, gastos e dissabores? E em troca de quê – prestígio, glória? Quão mais fácil será consegui-los noutras paragens, noutros climas.
Ao longo destes cinquenta anos muita coisa aconteceu, quer interna, quer externamente. A Voz de Melgaço teria forçosamente de refletir essas mudanças. De 1946 (ano em que o jornal nasceu) até Abril de 1974 não era fácil (nem mesmo para aqueles que não hostilizavam o regime, como é o caso) manter uma linha de rumo coerente e imparcial; pois a Voz de Melgaço, de uma forma ou de outra, conseguiu-o. Não bajulou ninguém, não se sentou à mesa do poder como o fizeram outros, cujos princípios ideológicos os obrigavam, pelo menos moralmente, a afastar-se, a opor-se pelo silêncio e pela discrição a um regime opressor e umbiguista. Eu sei que a maioria dos leitores não tem o raro privilégio, como eu tenho, de se instalar, sempre que haja uma hora disponível, nas cadeiras da Biblioteca Nacional, e passar um por um os jornais que se publicaram ao longo dos anos em Melgaço; sei que a memória das pessoas é curta e a tendência é para esquecer; sei que os tempos eram outros e que o analfabetismo, a ignorância, o servilismo e a subserviência torpe grassava no nosso concelho, impedindo as gentes humildes de ver aquilo que as rodeava, não distinguindo, ou distinguindo mal, aquilo que as favorecia ou prejudicava. Criaram-se fações, pequenas tribos, cujo chefe punha e dispunha dos seus seguidores. A Voz de Melgaço, através da palavra justa do padre Júlio Vaz deu, ou pelo menos tentou dar, algumas estocadas bem dadas nesses caciques de meia tigela. É bem verdade que foi a queda do regime que provocou por arrastamento a sua queda, mas de qualquer modo sempre tiveram um dedo apontado à sua arrogância e desprezo pelos valores humanos e locais.
A missão de um
jornal não é o de separar, mas sim o de unir as pessoas; este quinzenário
tem-no conseguido admiravelmente. Claro que todos gostam mais de ouvir elogios
do que críticas; mas estas, quando fundamentadas, servem para corrigir erros ou
imperfeições que até aí passaram despercebidas aos responsáveis. Ninguém se
arrogue a pretensão de tudo saber; é na troca de opiniões, no diálogo aberto e
simples, que as ideias brotam do nosso cérebro. A democracia não é uma palavra
sem sentido, é praticando-a que nós conseguimos dar corpo e vida às ideias, e
este jornal é um bom modelo de democracia, pois nele colaboram pessoas de
vários quadrantes políticos, com visões diferentes do mundo, havendo assim a
possibilidade de se discutirem os assuntos sob diversos ângulos, com
perspetivas divergentes ou até antagónicas. Claro que «Voz» não é o mesmo que
“vozes”, mas os limites terão a ver, quanto a mim, com a educação, a tolerância,
a razoabilidade, a convicção de que se está a contribuir para o bem da nossa
terra de nascimento. A Voz de Melgaço é um ponto de encontro entre melgacenses
ou descendentes destes; é a carta que gostamos de receber de quinze em quinze
dias com notícias dos nossos conterrâneos. Espero bem que esta missiva continue
a ser-nos enviada e que as suas páginas se encham cada vez mais com a palavra
amiga de novos colaboradores para que a chama jamais se extinga.
Penso que me
alonguei um pouco e possivelmente até me excedi naquilo que disse, mas isto é
também um desafio ao próprio jornal: um mar de ideias é, quanto a mim, melhor
do que um pequeno rio. Daqui a cinquenta anos muitos de nós não estarão cá para
ler as páginas de A Voz de Melgaço ou para tecer loas à sua direção, apesar das
expectativas de longevidade criadas pela ciência médica, mas estarão certamente
os nossos filhos e os nossos netos e esses sim, serão os nossos maiores
críticos, pois serão eles que julgarão a nossa obra, ou a ausência dela.
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1052, de 1/6/1996.
feira medieval em Melgaço (2018) |
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