LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Sílvia Neto |
Capítulo XXIII
Na alcateia o lobo uiva e a presa geme.
Os jovens, tarde ou cedo, uns mais cedo e outros mais tarde, iniciam a sua prática sexual. Nas terras do interior existe quase sempre uma desgraçada, geralmente abandonada pelo namorado, ou pelo amante, e depois pela família, com uma criança nos braços, que virá a ser a mestra de todos eles. É o caso:
- Queres ir esta noite à Corga de Cima?
- Eh, pá! Aquilo de noite é perigoso, não há luz, o regato leva muita água, estou com receio, ainda sou tão novo!...
- Temos dezasseis anos, somos uns homens; todos vão lá, só leva 2$50, já combinei com os outros, saímos do Terreiro às nove em ponto, quem não aparecer não vai.
- Quem são os outros?
- O Joca, O Rina, o Afonso, o Barata…
- Parece um regimento; nunca mais de lá saímos!
- Aquilo é rápido, eu já lá fui uma vez, levou-me lá o meu primo Teotónio.
- E não faz mal? Ouvi dizer que aquilo era uma nojeira.
- Tens é de mijar a seguir, senão podes apanhar uma doença chamada “galiqueira”; nós nem a vemos, ela deita-se numa palhas secas, em cima duns sacos de lona, abre as pernas e pronto, às escuras, é um ver se te avias, tudo num ápice.
- Não sei se aparecerei; até porque a minha mãe se souber dá-me uma soberba coça, é cá uma bronca!
- Eh, pá! Alguma vez tens de começar, ou queres que te chamem aquele nome feio? Ela está lá para isso mesmo, agora anda prenha, a filha da mãe, dizem que é melhor ainda, o filho é do Tebas, o figurão está em cima dela quase meia hora, assim qualquer um a enchia.
- O primeiro bebé que teve – era ela nessa altura uma linda rapariga – é, segundo dizem, do senhor Santos, o da drogaria; não quis casar com ela, foi pena, mas ela rogou-lhe todas as pragas do mundo.
- Pragas?!
- Sim; pediu a Deus e a todos os santos que o primeiro filho do casamento dele tivesse uma morte violenta, para que assim soubesse o que era sofrer.
- E morreu mesmo, coitadinho, ainda não teria cinco anos de idade, era tão bonito, era a criança mais linda da Vila, até parecia uma menina, ou um anjo.
- E sofreu muito antes de embarcar para o céu, até ficou com o rosto desfigurado de tanto padecimento.
- Dizem que o Luís da Peneiras viu o funeral antes de ele se realizar! Coitadito, não teve culpa dos erros do pai, de certeza que a sua pequenina alma está em repouso.
- Cá se fazem, cá se pagam; a mãe da criança, a Mirta, ficou maluquinha, nunca mais foi a mesma, nem de casa sai!
- E agora a Ruça prenha! Mais uma criança para passar fome, já tem uma data delas, cada uma de seu pai; ela atraía os homens, era jeitosa, ainda hoje, com trinta e tal anos de idade, não é de se deitar fora.
- Se andasse arranjadinha e asseada, mas anda porca e a cheirar mal que tresanda, mal vestida, despenteada, julgo que nem se lava, e se o fizer deve ser naquele alguidar onde depena os frangos! Também! A viver naquele pardieiro, e sempre gajos a entrar e a sair.
- Os filhos vão ter vergonha dela quando forem grandes.
- Há tantos putos por aí sem pai, quem é que liga a isso? Se viessem a ser ricos é que se podiam importar, mas nesse caso saíam daqui, iam para a cidade, lá há muita gente e ninguém os conhecia, nem reparam nessas coisas.
- Tens razão, há tantos filhos sem pai nesta terra! Eu, os meus irmãos, os da Pulquéria, os da Joana Caganitas…
- Podias estar um dia inteiro a contá-los; deixa lá isso, os homens nicam e as mulheres engordam, quantos mais melhor, uma malga de caldo e um naco de pão duro haverá sempre, ninguém morre à míngua.
- Maldita região; a pobreza nunca nos larga, pega-se a nós como o caracol à erva, e para cúmulo da desgraça, a ignomínia, o ferrete.
- Eh, pá! Deixa lá essas coisas, o que é preciso é viver, nós não nascemos para sermos ricos, quantos há nesta terra? Conta-os: meia dúzia, o resto é tudo pobre ou remediado.
- Tu gostarias de ser rico?
- Que pergunta mais idiota; quem não gostaria, com empregados, boa casa, boa comida, bom carro, muito dinheiro, passear, boas mulheres, boa vida, os outros que trabalhassem para mim, havia de viver regaladamente.
- E os pobres? Nem sequer pensavas neles!
- Dava esmolas àqueles que me fossem bater à porta, nunca negaria uma esmola, e dava trabalho aos operários e caseiros.
- Sonhos, não é, Cleto? Nunca seremos alguém, eu a ganhar cinco escudos por dia naquela minúscula oficina, tu nas obras a ganhar sete escudos, mal dá para comer, andamos andrajosos, sempre com o mesmo calçado, a mesma roupa, o rosto chupado, uma corda a servir-nos de cinto! E eles, os poderosos, têm de mais, até dá para estragar, olha o Atílio, com três ou quatro carros, duas casas, empregadas com farda, os filhos a estudar na cidade, nós fizemos a primária e pronto, alguns nem isso conseguiram, toca a trabalhar para eles, a engordar o seu peteiro, eles cada dia mais ricos e nós sempre pobres, maldita vida esta. E quando lavra um incêndio nas suas casas, nos seus bens, somos nós, bombeiros voluntários e o povo que o vai apagar, que eles nem sequer pegam num balde de água! E no fim nem obrigado dizem.
- Qualquer dia vou para a França, já está lá o meu cunhado e diz que me manda ir, nem que vá a pé por essa Espanha fora, o Trinchas também foi, conta que passou fome de rabo, mas hoje está cheio de massa, o filho da mãe também só come tripas e carne de porco de terceira, acho que bifes só em dia de festa, e feitos com carne de cozer, olha que os filhos saem a ele, são uns sovinas, para viver assim não vale a pena sair da nossa terra natal.
- Eu não gostava de sair daqui, gosto imenso disto, até as pedras da rua conheço, todos os cantinhos, as pessoas, tenho os meus amigos, a banda de música, o meu clarinete, qualquer dia já vou tocar para as festas, o mestre prometeu-me, diz que eu estou a aprender bem, já vai mandar fazer a minha farda, com este corpo não vão gastar muito pano; vou também começar a jogar na equipa de futebol. Se fores para França lá não tens amigos, eles falam outra língua, não te vais entender com eles.
- A língua aprende-se, o meu cunhado já a arranha, o que é preciso é saber o nome das ferramentas e mais qualquer coisa: «bonjure», «bonsuare», «mangere», e pouco mais; e aquilo que não se souber fala-se por gestos, os franceses não são burros.
- Ah!, ah!, ah!; até já tu falas francês sem nunca teres ido a França!
*
- Eh, pá! Eu nunca mais cá venho; que cheirete insuportável, ia vomitando as tripas. Ela tem a pia tão suja e funda, quase que cabia lá eu, não gostei nada.
- Com essas esquisitices todas ainda acabas em panasca!
- Não digas asneiras; quando tinha onze anos brinquei aos namorados com a neta do senhor Rodrigues, fomos para a cama, ela despiu-se…, mas assim não, com o bebé ali ao lado a choramingar, não dá qualquer gozo; além disso, estou farto de espirrar, devo estar com uma gripe dos caraças, se a minha mãe descobre que foi por causa disto, mata-me.
- Não tenhas medo. Enquanto resfolegavas à espera das estrelas da Ruça, sentava-se a tua mãe no colo do teu patrão.
- Ó Afonso, não digas isso ao rapaz.
- É mentira? Toda a gente sabe que eles…
- Olha, Afonso: eu não sabia, nunca mo tinham dito, mas já desconfiava; fizeste bem em dizê-lo, amanhã mesmo já saio da sua oficina. Eu já não gostava dele, mas a partir de agora…
- Se dizes mais alguma coisa desse género ao Cândido, sou eu que te dou um murro na tromba.
- Tu, Rina?! Tens a mania de que és forte.
- Ó rapaziada, guardem essas disputas para amanhã; e não se esqueçam de que ao chegarmos à Vila toca a separar, cada um vai para sua casa e nada de dar com a língua nos dentes, oquei?
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