ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
romance histórico
Por Joaquim A. Rocha
- O regresso a Teixeira Pinto tornou-se
lento e penoso. Tivemos sempre a nítida sensação de estarmos a ser perseguidos.
Não me lembro quantos quilómetros já tínhamos percorrido a pé. Talvez qualquer
coisa como quarenta! Nem valia a pena pensar nisso. A caminho… que se faz tarde.
Havia mais de uma hora que deixáramos a povoação em chamas e uma virago
africana a ser devorada pelos abutres e toda a espécie de carnívoros necrófagos!
O silêncio da floresta anunciava borrasca. A emboscada estava mesmo a rebentar.
Não seria de prever outra coisa!
A “costureirinha” dos
paigecês, com o seu matraquear caraterístico, produzindo um som semelhante ao
da máquina de costura, cantava a sua canção fúnebre. Atirei-me ao solo com a
rapidez do raio, aproveitei o tronco grosso de uma árvore e ripostei às balas
do inimigo. O nosso capitão, verdadeira personagem dos filmes de guerra, indiferente
às balas, andava de um lado e de outro, dando instruções, empolgando os seus
guerreiros: «Carregar! A eles, a eles!
Morte aos turras!»
Ouviam-se palavrões, obscenidades que fariam corar uma prostituta. O
tiroteio não durou mais do que meia hora. Os guineenses não deviam ser muitos e
só pretendiam perturbar, desgastar a tropa portuguesa. Permaneci deitado mais
algum tempo. Só tinha consumido um carregador. Depois daquele barulho
indescritível, resta o silêncio novamente. Até o bater do coração se ouve!
O comandante, aparentemente calmo, mandou avançar: «Vão atentos, o inimigo pode atacar-nos de novo.»
- Houve feridos? – pergunta Henrique, com comiseração.
- Felizmente não houve quaisquer baixas
a lamentar. No entanto, o nosso furriel Grande, ao tentar levantar-se, cai ao
chão desmaiado. Um contratempo. O capitão, habituado a lidar com a fraqueza
humana, acostumado também a resolver todos os problemas e dificuldades que iam
surgindo, com um sentido prático, sem tergiversações, vai ao pé dele e dá-lhe
duas valentes bofetadas: «Acorde furriel,
deixe as suas misérias e debilidades para outra ocasião. Este não é propriamente
o lugar nem o momento certo para este tipo de exibições!»
- A terapêutica surtiu efeito?! – pergunta Henrique, com ironia.
- Por mais incrível que isso pareça, o
furriel entreabriu os olhos e, com a ajuda dos seus homens, levantou-se a custo.
O enfermeiro deu-lhe qualquer coisa a cheirar e, amparado, sem qualquer carga,
lá foi indo.
- Lá diz o ditado: «os gigantes também tombam!»
- Podes não acreditar, mas este novo
acontecimento também mexeu imenso comigo. Um dia ancho de lições! Como que é
que um homem, muito mais alto e forte do que eu, com outro treino, com uma
alimentação mil vezes melhor do que a minha, vergava assim?! Eu, franganito,
cinco réis de gente, o “lingrinhas”,
ou “esquilo”, como o alferes Briosa
sempre me chamou, aguentava, embora sofrendo, todo este diabólico percurso.
Ainda hoje, passados tantos anos, reflito nisso.
- De facto, você é um homem de têmpera!
– elogia Henrique, num sorriso aberto e
franco, mostrando uns dentes perfeitos e bem escovados.
- Nem por isso! Hoje já estou um pouco em baixo, os anos não perdoam. Na Guiné-Bissau suportei mil sofrimentos porque tinha aquela idade, caso contrário teria sucumbido. Eu não sou Hércules, nem sequer Ulisses! E David também não poderia ser, porque não tenho a sua pontaria! Até parece que estou a ver o gigante Golias a tombar depois de receber uma pedrada em cheio, naquela testa enorme!
Mas prosseguindo: continuámos a andar; uma hora depois, mais ou menos, ouvimos vozes. Escondemo-nos e vimos um grupo de mulheres, com cestos à cabeça, andar apressado. Logo que se aproximaram, alguns dos meus companheiros saltaram-lhes ao caminho como qualquer Zé do Telhado, ou Tomás das Quingostas, e um dos oficiais mandou-as parar e deu-lhes ordem de prisão, como se elas tivessem acabado de assaltar uma agência bancária em Lisboa!
- Nem por isso! Hoje já estou um pouco em baixo, os anos não perdoam. Na Guiné-Bissau suportei mil sofrimentos porque tinha aquela idade, caso contrário teria sucumbido. Eu não sou Hércules, nem sequer Ulisses! E David também não poderia ser, porque não tenho a sua pontaria! Até parece que estou a ver o gigante Golias a tombar depois de receber uma pedrada em cheio, naquela testa enorme!
Mas prosseguindo: continuámos a andar; uma hora depois, mais ou menos, ouvimos vozes. Escondemo-nos e vimos um grupo de mulheres, com cestos à cabeça, andar apressado. Logo que se aproximaram, alguns dos meus companheiros saltaram-lhes ao caminho como qualquer Zé do Telhado, ou Tomás das Quingostas, e um dos oficiais mandou-as parar e deu-lhes ordem de prisão, como se elas tivessem acabado de assaltar uma agência bancária em Lisboa!
- Do primeiro já ouvi falar, até já li
um livro, e vi um filme, sobre a sua vida; mas quem foi esse Tomás das Quingostas?
Nunca ouvira antes pronunciar o nome de tal criatura!
- Era um chefe de malfeitores. Nasceu
no lugar das Quingostas, em São Paio de Melgaço, no ano de 1808. A sua
quadrilha esteve ao serviço, durante a guerra civil, provocada pela desavença
entre os dois irmãos D. Pedro e D. Miguel, de quem lhes pagava melhor. Depois
de 1834, quando terminou a dita guerra, dizia-se miguelista, mas era para
receber dinheiro dos absolutistas e dos carlistas espanhóis. Logo que os
liberais (mais concretamente o visconde
das Antas) o promoveram a comandante da guarda volante do Alto Minho, força
paramilitar muito duvidosa, começou logo a perseguir aqueles que até aí tinha
apoiado. Era um verdadeiro camaleão.
- Um bandido age de acordo com as suas
conveniências! – corrobora o jovem
Henrique.
- Exatamente! O Tomás e a sua quadrilha
percorreram os montes de Castro Laboreiro, as serras da Peneda e do Gerês, o
Soajo, os concelhos limítrofes ao seu, sobretudo Valadares, indo até à Galiza,
assaltando quintas e casas senhoriais, ricos e remediados, traficando soldados
para as hostes carlistas, enfim, causando o terror e o caos numa vasta zona,
pilhando e matando diversas pessoas que por azar se cruzaram no seu caminho.
- Um valentão! E ninguém lhes dava
caça? – pergunta Henrique, incrédulo com
aquilo que ia ouvindo.
- O país estava de rastos por essa
altura, tanto financeira como economicamente, mas a rainha D. Maria II deu
ordens à tropa para o perseguirem e prendê-lo; no caso dele não se render,
deveria ser abatido. E foi o que aconteceu. Em finais de Janeiro de 1839 o
Tomás das Quingostas foi preso; mas quando os soldados da soberana o levavam
para a cadeia de Melgaço ele tentou fugir. Os militares apontaram-lhe as armas
e mataram-no! Isto é o que conta a lenda, mas quanto a mim ele morreu numa
emboscada preparada minuciosamente por um tal major Frazão, enviado pelo governo
para acabar com o sacana e a sua quadrilha. Assim acabou o maior bandido do
Alto Minho. E sem cabeça!
- Sem cabeça?! Como foi isso? – pergunta, admiradíssimo, Henrique.
- A razão foi a seguinte: ele tinha de
ser enterrado na freguesia onde morrera – neste caso coincidia com a freguesia
onde nascera. Tudo bem! Mas como é que os soldados iriam provar aos seus
superiores que tinham abatido o chefe de uma grande quadrilha de bandoleiros?
- Só levando-lhes a cabeça do moinante!
- Exatamente. O resto do corpo foi
enterrado perto do sítio onde fora fuzilado, por detrás de uma capela – o padre
não permitiu que ele fosse sepultado no seu interior, visto que era um fora da
lei e, segundo consta, um herege.
- Interessante. Há tantos episódios da
História de Portugal por divulgar!
- É verdade. E agora prosseguindo a
minha narrativa:
As mulheres africanas, assustadas, fugiram. Como atletas de alta
competição, como genuínos galgos, espumando pela boca, alguns magalas correram
atrás delas. Apanharam três: duas novas e uma mais idosa. Os oficiais tentaram
falar-lhes; mas o diálogo, devido sobretudo ao idioma e ao nervosismo, não foi
possível. Chamaram um dos guias, mas este disse desconhecer aquele dialeto.
Desse modo, e receando serem elas portadoras de mensagens para os paigecês,
levámo-las connosco.
Chegámos finalmente ao local de onde tínhamos partido, ou seja Bachile.
Através da rádio pediu-se ao quartel de Teixeira Pinto que mandasse as viaturas
a fim de nos transportarem até lá. As criaturas foram atiradas de qualquer
maneira para o chão do alpendre e quase esquecidas.
Algum tempo passou. Enquanto esperava, tentei dormir um pouco. Mas, eis
senão quando um magano, depois de um repouso reparador e algum alimento
ingerido, lembra aos outros que «mulher,
mesmo negra, nasceu para dar prazer ao macho, e aquelas ali vinham mesmo a
calhar!»
Outro, que com certeza já o tinha pensado, mas não tivera a ousadia de
propor tal infâmia, disse então: «E por
que não?! O nosso comandante, juntamente com todos os alferes (à excepção do
alferes Briosa, que é camarada, e está neste momento a dormir como um justo),
seguiu para Teixeira Pinto num jipe. Os sargentos e furriéis não se metem
nestas coisas. Elas estão, pois, à nossa mercê. Quem começa?!»
- Eu não acredito naquilo que estou a
ouvir! – grita Henrique, num gesto de
repugnância, chamando a atenção das pessoas ali próximas.
- Escuta: logo de imediato um deles,
com uma desfaçatez exibicionista, despe as calças, aproxima-se de uma das
jovens e bruscamente puxa-lhe o pano (tanga),
que cobria as suas partes genitais. Os demais, ao verem esta erótica cena,
excitaram-se e não se fizeram rogados. Velha e novas alimentaram os apetites
carnais desses pequenos energúmenos, desses excrementos aberrantes.
- E as mulheres, como reagiram? – pergunta o jovem, espumando de raiva, mas
mais comedido.
- De nada lhes valeu chorar, implorar;
de nada lhes valeu gritar; de nada lhes valeu resistir!
Indignado com tal procedimento, invoquei a sua condição de gente
civilizada, de cristãos convictos, de divulgadores de ideais humanistas,
samaritanos. Pregava no deserto.
- O ser humano, quando atinge a
bestialidade, já não é ser humano, é um bicho! – diz Henrique, colérico.
- Tens toda a razão. Peguei na G-3, mas
logo mão serena, e certamente comungando comigo o mesmo sentimento de repúdio, segurou
com firmeza o meu braço e disse-me: «Que
pretendes fazer, louco? Queres matar os teus companheiros?!»
Refleti durante algum tempo, e respondi-lhe: «Faz sentido aquilo me dizes; contudo vou avisar o alferes Briosa.»
Bati à porta do quarto aonde ele se encontrava a dormir, e logo a porta se
abriu. Informei-o: «Meu alferes, está a
passar-se uma coisa horrível ali fora.»
O alferes tudo ouviu com paciência e compreensão, observando: «Ó “Esquilo”, tu és um autêntico anjinho! Não
vês que os homens estiveram sob pressão este tempo todo, não são nenhuns
santos, alguns deles já são casados, aos meses que vivem na mais pura abstinência,
e vai daí aproveitaram a ocasião. Tens muito ainda para ver ao longo da tua
comissão na Guiné. Guerra é guerra. Em todos os tempos, em todos os lugares,
ela gera cenas semelhantes ou piores do que estas. Que pensas que fizeram os
exércitos gregos, os romanos, os persas? E também na 1.ª Grande Guerra (1914-1918) e 2.ª Guerra Mundial, esta última começou em 1939 e acabou
somente em 1945, como sabes, quantas coisas erradas se fizeram! Até a bomba
atómica os americanos utilizaram, destruindo cidades, e matando e ferindo
milhares de japoneses! Todos, sem excepção, cometeram excessos, crimes abomináveis.
Este, comparado com os deles, é um crime menor. Se não queres ver, afasta-te –
deixa-os em paz. A vida em ambiente conflituoso é isto também!»
- O alferes agiu com prudência, mas sem
dignidade – não eram suas filhas! – comenta
o jovem.
- De nada valeram os meus argumentos,
que a seus olhos mais pareciam sofismas! Que fizeram de mal aquelas senhoras?
Que vilanias, que crimes, tinham elas cometido?! Que infrações, que regras
tinham elas violado?
Num Estado de Direito estes raciocínios poderiam ter algum peso; ali, na selva africana, em tempo de conflito armado, as teses que predominavam eram as da força das armas. Os remorsos, se um dia rebentarem como ervas daninhas no prado verdejante, serão aromatizados pelo tempo e pela distância. Além disso, os preconceitos de raça e cor eram ao tempo muito vincados.
Num Estado de Direito estes raciocínios poderiam ter algum peso; ali, na selva africana, em tempo de conflito armado, as teses que predominavam eram as da força das armas. Os remorsos, se um dia rebentarem como ervas daninhas no prado verdejante, serão aromatizados pelo tempo e pela distância. Além disso, os preconceitos de raça e cor eram ao tempo muito vincados.
- Malditos! Se existir o inferno, mais
cedo ou mais tarde irão lá parar – exclama
Henrique, numa voz teatral, profunda, ameaçadora.
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