LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
XVII
Entre dois fogos beijei a sereia
Estas discussões entre
mim e a minha mãe deixam-me sempre desolado. Se pudessem acabar… Agora,
aproveitando o facto de ele estar de férias, vou contar ao meu irmão cenas de
terror, acontecimentos que me apavoraram, que me deixaram marcas para toda a
vida. Ouçam:
- Tinha eu dez anos, tu acabaras de partir para a capital do país.
Sentado à mesa, pés descalços, esmagando com os pés pedras gigantescas de sal,
encontrava-se o tendeiro: velho, bruxo e feiticeiro, capaz de quebrar nozes com
uma só mão! Gritava como um possesso, pedindo aos maus espíritos, em altos
berros, que se afastassem dele e daquela casa: «ide-vos, aqui não sois bem-vindos, ide para as profundezas do inferno,
de onde nunca devíeis ter saído, ide para o mar coalhado, profundo, deixai esta
casa e esta gente.» Eu chorava baixinho, tremia de frio e de medo. A mamã,
disforme, espumava pela boca e de repente desatava aos gritos. Da sua garganta
libertava-se uma voz rouca, áspera, que dizia: «não quero sair daqui, não quero.» Em seguida rebolava-se no chão da
sala e as janelas abriam-se de par em par, agitadas por um vento estranho e
violento. As meias portas batiam uma contra a outra com um estrondo medonho. Eu
chorava, tinha vontade de sair para a rua, mas não podia, mão poderosa e cruel
retinha-me ali, obrigava-me a assistir àquela dantesca cena. As cortinas da
janela rasgaram-se em pedacinhos e voavam como pequenas aves. Depois o
silêncio. O bruxo ficou com a cabeça deitada sobre a retangular mesa de pinho,
cabelo desgrenhado, exausto, e a mamã estendida desajeitadamente no soalho da
sala, desfigurada, com as pernas e parte da barriga à mostra. Desde que aquele
homem-diabo tinha entrado em nossa casa estas cenas de espiritismo e
feitiçarias repetiam-se com pontual regularidade. Falava constantemente no
livro de São Cipriano, que eu nunca vi nem li, antes de ser santo teve um pacto
com o demónio, segundo dizem, dizia que o tal livro continha segredos de tesouros
escondidos, contou-nos que tinha ido uma vez ao monte de Santiago, aí estava,
segundo ele dizia, enterrado um grande tesouro, joias, moedas em ouro, que
levariam muitos meses a contar! Foi com ele uma mulher de corpo aberto, uma
espírita, e um homem com uma enxada e uma picareta para desenterrar o fabuloso
tesouro (talvez, quem sabe, daquele
tempo em que sarracenos andaram pela Península Ibérica; aquando das investidas
cristãs enterravam as joias junto às árvores para mais tarde, quando tudo
acalmasse, as virem recuperar; por vezes alguns deles morriam e as
preciosidades ficavam ali a aguardar que alguém as descobrisse).
Esperaram que o sino da torre batesse as
doze badaladas da meia-noite e começaram a escavar. De repente o céu ficou de
várias cores, predominando a cor do enxofre a arder, os raios desenhavam
figuras geométricas esquisitas, as faíscas eram tantas que pareciam capazes de
incendiar todas as florestas do mundo. A mulher gritava como uma doida, parecia
ter no seu peito todos os espíritos malignos da galáxia, espumava pela boca, os
olhos saíam-lhe das órbitras, inchava como um sapo quando lhe dão a fumar um
cigarro. O homem da enxada desatou a fugir pelo monte, todo borrado, o pânico
apoderou-se dele, a mulher não aguenta a emoção e tomba desfalecida, com aspeto
de morta. O velho feiticeiro, sozinho no meio daquele cenário sobrenatural,
naquele palco de terror, capaz de arrasar os nervos aos mais valentes, abandona
o local, o tesouro, fugindo a sete pés! No dia seguinte iria buscar o que ali
deixara.
Levantou-se manhã cedo,
dirigiu-se ao sítio onde o presumível tesouro estaria escondido e ficou
boquiaberto, pois estava tudo como quando lá chegara no dia anterior. Nem
enxada, nem picareta, nem o buraco escavado, nem mulher, zero, absolutamente
zero! Dava a impressão de que ali nada tinha acontecido. Pensou que se
enganara, percorreu aqueles espaços circundantes, nadinha! Parecia um sonho.
Resolveu ir ter com o homem da enxada: «ó
tio Hipólito, então aquilo de ontem à noite assustou-o a valer.» O camponês
olhou para o bruxo com temor, espelhado naqueles olhos pequenos e manhosos, e
disse-lhe: «não me fale nisso, senhor
Acúrsio, olhe que cheguei a casa em cinco minutos, e ainda era caminho para bem
meia hora; voei como as aves!» «Vossemecê
borrou-se todo, homem!» «Pudera!
Aquilo assustava o mais destemido, não me convide para outra, vá o senhor
Acúrsio sozinho, já está habituado a essas coisas da bruxaria.»
O feiticeiro dirigiu-se depois
a casa da medium, veio esta abrir-lhe a porta, olhando-o com azedume: «ó senhor Acúrsio, ia-ma arranjando bonita,
por um triz não fui desta para melhor, aquilo é dose excessiva para o meu
corpo, fique sabendo que fui transportada pelos ares até à minha porta. Fui,
fui! Aquilo não está ao nosso alcance, deixe lá o tesouro, está muitíssimo bem
guardado, o São Cipriano fez um bom trabalho, ninguém o tira dali, a não ser
que ele assim o queira.» «Vossemecês
são uns cobardes, aquilo que viram é só fogo-de-vistas, é só para assustar, se
não fugissem, hoje estávamos todos ricos, nem saberíamos o que fazer a tanta
moeda de ouro.» «Está bem, está! O
mais certo era estarmos todos mortos, a caminho do cemitério, com espíritos
daqueles jaez não se brinca.»
Contava também histórias
de ciganos, vendiam burros velhos por novos, davam aos porcos uma determinada
erva, depois de ingerida acabavam por morrer, e então eles depois iam desenterrá-los
e comiam-nos; os guardas prendiam-nos, mas eles terminavam sempre por se livrar
das acusações; certa vez, não tendo nenhuma espécie de alimento, comeram a sua
avó velha: «ai, mi abuela, mi abuela»,
gritava desesperada a pequenita Carmen, que adorava a sua avozinha. Histórias! Certa
altura, um cigano novo roubou qualquer coisa a um lavrador e este acusou-o; a
GNR prendeu-o, mas como era menor tiveram de chamar o pai dele. Então este
virou-se para o ciganito e pediu-lhe: «fala
a verdade Zé-Nega, diz tudo que sabes a estes senhores.» O rapaz, de
imediato, replica: «meu pai, ainda aquela
porta vá e venha se eu não estou dizendo a verdade.» Os guardas presentes,
desconfiados, de pé atrás com a astúcia daqueles melros, ainda contrapuseram: «mas você está a pedir-lhe para ele negar!»
«Nada disso! É mesmo o nome do catraio.»
A mamã chafurdava na
bebida, vinho e bagaço; dizia-se possuída de espíritos de pessoas que tinham
morrido. A noite era para mim um calvário, aquela luz elétrica de 110 volts,
cor amarelada, mal alumiava a casa (depois
do feiticeiro sair deixou de se pagar e foi cortada pela empresa que a fornecia), as sombras dos móveis pareciam bailar a
dança macabra dos mortos! Saía da escola primária a meio da tarde, ia jogar a
bola com os colegas, à tardinha voltava para casa com o coração apertadinho, a
assobiar, tentando desesperadamente distrair o espírito. A ceia podia decorrer
sob o signo do terror, ou cenas de álcool, nunca decorria sob o signo da
concórdia. Certo dia, levanto-me, como habitualmente, manhã cedo, cantavam os
galos na capoeira, e vou caçar com as ratoeiras de madeira alguns pardais.
- Eu é que as deixei ficar quando fui para Lisboa.
- É verdade, já o esquecera. Tinha sido dia de feira na véspera e
no chão ficavam sempre restos: grãos-de-milho, grãos de centeio, etc. Armei as
ratoeiras, e ao fim de uma hora já apanhara onze pardais. Pedi à minha mãe que
os cozinhasse para a ceia, onze já davam uma boa arrozada, ela quando queria
cozinhava divinalmente, ia ser um verdadeiro petisco. Porém, eu não contava com
a gulodice do velho bruxo; quando regressei das minhas brincadeiras (nesse dia demorei mais do que o costume, o jogo tinha-se
prolongado, teríamos de encontrar um vencedor, estava mesmo renhido) uma incrível surpresa me esperava: a besta-fera
tinha comido quase todos os pardais, nem os ossos se aproveitavam! Fiquei, como
calculas, irritadíssimo, não quis cear nessa noite, tanto trabalho, tanto
entusiasmo, para encher a pança àquele labrego, àquele barrigudo guloso. Ainda
bem que a mamã se zangou com ele, ficámos mais mirrados de bens, mas mais
livres, mais independentes, sem bruxedos, pensava eu; no entanto, ela herdou
essa perigosa arte, continuando a queimar ervas nos cruzamentos, a esconjurar
os espíritos malignos com sal e estranhas rezas, a berrar e a espumar pela boca
como cão rafeiro, a levar-me àqueles terríveis e enfadonhos velórios.
Afogava-se em vinho e em bagaço, embirrava com toda a gente, espiava, através
das cortinas já rotas e sujas, a casa dos vizinhos, sobretudo a da que botava
as cartas, a fim de descobrir segredos de alcova que depois revelava com
pormenores delirantes. As suas amizades eram as pessoas rudes dos campos, as
raparigas namoradeiras que procuravam nela a alcoviteira, a recadeira barata e
inócua, pois tudo o que ela revelasse já ninguém acreditava, não tinham crédito
as suas palavras, começou a arranjar moças novas para o ricaço da terra, o
Atílio, em troca recebia umas sujas e magras moedas de níquel.
- E pensava eu que tinhas ficado na melhor, caramba, sofreste para
raio! Eu, apesar de ter trabalhado que nem um mouro, não assisti, felizmente, a
essas diabólicas cenas; mas também te digo uma coisa: comigo eles não faziam
farinha, acabava-lhes depressa com essas histórias de espíritos e bruxarias,
que fosse fazer feitiçarias para a terra dele, caramba, ia ele, ia tudo, pela
porta fora, ali em casa é que eu não consentia que o bandido fizesse essas
coisas.
- Isso dizes tu agora, queria ver-te lá, no meio daquela gente
desfigurada, eu nem reconhecia a mamã, parecia outra, e então com aquela voz
que não era a dela, era voz de homem mau, roufenha, assustava qualquer um,
ainda hoje tremo só de me lembrar, na altura já nem sabia se era melhor estar
em casa ou fora dela, a luz elétrica ia-se abaixo de vez em quando, era
fornecida pelos espanhóis, fraca e incerta, quando se apagavam as lâmpadas só
via fantasmas à minha volta, se ao menos tu estivesses em casa, os dois sempre
seria melhor.
- É preciso tê-los no sítio, tu sempre foste um medricas, se tivesses
ido, como eu fui, alta noite, por esses montes fora, com treze anos de idade
apenas, os lobos a uivar, eu carregado com os alimentos para a semana, urinavas-te
todo, pedias a todos os santinhos que te socorressem; eu ia afoito, a
cantarolar, como se nada fosse comigo. Na maior parte das vezes levava por
companhia o “Cabras”, mas semanas houve que não quis, ou não pôde ir, não
compareceu, disse-me mais tarde que esteve doente, o que o tipo não queria era
dar o corpo ao manifesto, que aquilo era a doer. E então, quando caía neve, nem
queiras saber, os pés enterravam-se, mais de um metro de altura, os trabalhos
tinham de ser interrompidos, não se podiam plantar os pinheiros com a neve a
cair, ficávamos completamente isolados e impotentes.
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