ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
«Destinos» é o
título de um maravilhoso livro escrito pela senhora professora Lydia San Payo.
Penso que o seu objetivo principal ao escrevê-lo foi homenagear e perpetuar a
memória de seu pai, o artista-fotógrafo Manuel Joaquim Alves, mais conhecido
por Manuel Alves de San Payo, natural do lugar de Baratas, freguesia de São
Paio, nascido a 15/4/1890 e falecido a 8/5/1974. Como esta obra não chegou a
ser lançada nos circuitos comerciais, só alguns privilegiados (entre os quais
me incluo) a possuem. Confesso-vos que já li muitos livros: uns agradáveis,
outros assim-assim; este, pela maneira poética de escrever, de narrar, pela
ternura que as suas páginas emanam, pela sua quase religiosidade, foi sem
dúvida um dos livros mais interessantes que passaram pelas minhas mãos. Para
mim foi uma surpresa, e uma revelação, este encontro com a vida e a obra de um
melgacense que em quaisquer circunstâncias sempre soube honrar o seu nome e o
nome da sua e nossa terra. É possível que alguns preconceitos subsistam relativamente
à sua pessoa; contudo, a arte deverá estar acima de mesquinhas e efémeras
paisagens ideológicas. É sob o signo da Arte e do Sublime que eu escrevo estas
linhas sobre San Payo.
Com dezanove anos
de idade, juntamente com um vizinho, embarca no navio alemão ”Bahia”, rumo ao
Brasil. «Não foram fáceis os primeiros
tempos e o duro sobreviver no Rio de Janeiro», escreve sua filha. Mas
também a vida na aldeia rural não era com certeza fácil. Os agricultores
dependiam sobretudo dos produtos da terra e em maus anos agrícolas a miséria
rondava-lhes a casa. Manuel Joaquim ainda frequentou o seminário antes de
partir para a sua aventura americana, mas a sua vocação era outra – o espírito
da arte tinha-se apossado do seu ser.
O Brasil era o
destino de muitos minhotos, o país das grandes oportunidades. Porém, o nosso
conterrâneo tinha a alma de artista e os artistas não buscam o vil metal; em
lugar de trabalhar como um mouro e aferrolhar como um avaro judeu, inscreve-se
na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro e frequenta as aulas de desenho e
de pintura. O seu emprego no «atelier» do patrício Bastos Dias, como retocador
de chapas fotográficas, rasga-lhe horizontes no mundo do retrato artístico «que imagina poder ser feito como uma pintura».
O seu nome artístico, San Payo, começa a ser conhecido. Como não tem sala de
trabalho sua, e talvez cansado de andar a fotografar de casa em casa, certo dia
dirige-se a Petrópolis. É aí que conhece a futura esposa, Erna, descendente de
colonos alemães, fundadores dessa cidade brasileira. Manuel Joaquim tinha nessa
altura 29 anos de idade. «Em 1918, chegado
a Petrópolis, Manuel Alves de San Payo toma conta do atelier da fotografia
situado na Avenida 15 de Novembro e instala-se na cidade…»
Roído de
saudades, a 27/10/1920, regressa a Portugal. Nesse ano ele e Erna passam o
natal em casa de seus pais, em Melgaço «… um
natal bem diferente dos quentes natais petropolitanos…» Em Janeiro de 1921
encontram-se em Lisboa e nasce-lhes a primeira filha, Ruth. San Payo trabalha
sem descanso. Finalmente em Novembro de 1921 toma de trespasse, na Praça dos
Restauradores, um ateliê, de sociedade com Manuel Carreira. Passados poucos
anos já a fama lhe tinha batido à porta. Em 1924 expõe os seus trabalhos artísticos
na Casa Castanheira Freire, à Praça Luís de Camões; no ano seguinte volta a
expor, mas agora na Casa Aguiar, na Rua do Carmo. Foi um estrondoso êxito. O
seu nome de artista-fotógrafo torna-se uma referência para a gente chique da
capital. Em 1925, com o seu amigo Lourenço Fernandes, viaja pela Europa, visita
os grandes museus «procura inteirar-se
das novas tendências no domínio das artes.» Na cidade de Madrid expõe no
Hotel Ritz «e teve boa aceitação por
parte do público que ali acorreu». A Europa civilizada mostrou-lhe que a
sua arte tinha valor e que a sua técnica estava na vanguarda do que de melhor
então se fazia por esse mundo fora. Basta uma só fotografia para o provar: Erna
com sua filha Ruth; verdadeira obra-prima!
A 20/2/1930 é
inaugurado na Praça Marquês de Pombal novo ateliê de San Payo, estúdio que eu
próprio visitei nos finais dos anos sessenta. O bom gosto e o saber casavam-se
naquelas decorações, naquele requinte de simplicidade e harmonia. Havia poesia
em todas as coisas. Escritores, políticos, artistas, todos quiseram estar
presentes nesse dia especial. O que muita gente não sabe é que o retrato
oficial de Salazar, aquele que se encontrava nas salas de aula, e de Óscar Carmona,
Craveiro Lopes e Américo Tomás, foram tirados por San Payo! Se o artista
tivesse antes, na I República, adquirido a fama que depois teve, teria feito
certamente o retrato de Manuel de Arriaga, de Teófilo Braga, de Bernardino
Machado, Sidónio Pais, e de tantas outras figuras públicas. Para nós, melgacenses,
o que conta é que San Payo soube como ninguém elevar a sua arte, enobrecê-la,
aproximá-la estatutariamente das outras artes. Em 24 de Agosto de 1933 foi
feito Cavaleiro da Ordem de Santiago de Espada. Não se envaideceu. Ironicamente
comentou: «Tenho porém de ir levar lá
cento e dez escudos, para poder usar daqui por diante penduricalhos ao peito».
Em Julho de 1934
falecia, com trinta e sete anos de idade, a sua esposa. Deixava seis filhos:
Ruth, Lydia, Nuno, Walter, Irene e Vasco, este último com apenas quinze meses
de idade! Para San Payo foi um rude golpe. No ano seguinte, 1935, viaja até
África, e aproveita essa magnífica ocasião para realizar o filme «O Primeiro
Cruzeiro de Férias às Colónias». No Brasil já tinha realizado o filme policial
«A Quadrilha do Esqueleto», «A Cabana do Pai Tomás» (tragédia), e «O Senhor de
Posição», além de vários documentários. Esse filme foi projetado pela primeira
vez no cinema São Luís, em Lisboa, no dia 29/6/1936. Seguiram-se várias exposições.
A última ocorreu no Palácio Foz, em Março de 1950, e intitulou-a «Trinta Anos
de Fotografia».
Manuel Joaquim
nunca esqueceu a sua terra. Logo que lhe foi possível mandou construir na
freguesia de São Paio, em granito da região, uma casa de férias para si e seus
descendentes, com adega e poço de água, e rodeada de pomar e vinha. A fama não
lhe subiu à cabeça, como a tantos outros! Em 1968 quis ainda visitar essas
Américas longínquas. Tinha família no Canadá e na Argentina e imensas saudades
do Brasil – havia quarenta e dois anos de separação! Essas impressões de viagem,
publicou-as no jornal Novidades, mais propriamente no seu suplemento Letras e
Artes, com o título «Memórias de um Fotógrafo».
Depois de muito
viver, Manuel Alves de San Payo morre a 8 de Maio de 1974. É com mágoa que a
autora de «Destinos» nos diz: «A notícia
da sua morte, nesse tempo tão conturbado, não teve o realce que merecia…»
Dorme o sono eterno no cemitério de São Paio, junto de sua querida esposa Erna
Belger. O seu estúdio da Rotunda do Marquês já não existe; o edifício foi
demolido e nesse espaço vê-se agora o Banco do Brasil. A arte cede perante o
capital. «O espólio fotográfico do
artista San Payo foi considerado património cultural nacional…» e
encontra-se no Arquivo Nacional de Fotografia do IPPC.
San Payo foi
também um teorizador. Os seus escritos «A fotografia e o futurismo», «Como se
deve encarar a crítica de arte», etc., provam isso mesmo. San Payo possuía mais
um predicado que me é especialmente caro: escrevia poesia! Em «Destinos»
encontra-se um magnífico poema seu dedicado à sua filha Lydia. Pouco conheço da
sua obra, mas brevemente irei ao A.N.F. deliciar-me com ela.
À sua filha Lydia
San Payo agradecemos a oferta e o excelente livro que escreveu. Revela uma
grande sensibilidade e cultura.
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1022, de 1/2/1995.
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