LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
XV
Em busca do pai perdi o meu rasto
Mais uma vez eu e o meu
irmão travávamos uma conversa animada e descontraída; recordávamos tempos
passados, revivíamos os momentos mais marcantes da nossa infância. Se puderem
venham ouvir esse interessante diálogo:
- Então o nosso pai foi para as bandas da Galiza e nunca mais nos
veio ver?!
- Isso é o que a mamã diz: eu, concretamente não sei para onde raio
ele foi. Quanto a visitar-nos, pode ser que tenha ido alguma vez a Cendre, que
nos tenha visto de longe, que eu me lembre de ele ter vindo ter connosco isso
não, eu era tão pequenino quando ele se foi embora que se o visse na rua não o
reconhecia, provavelmente nunca mais se lembrou de nós, esqueceu-se que nós
existíamos!
- Achas que ele tem mais filhos?
- A estrangeira era uma mulher nova, ele também, o mais certo é
terem geração. Se a tiverem, se existir algum nosso irmão, eles nem sequer
sabem da nossa existência, não lhes devem ter contado nada, para eles nós
representamos apenas um episódio sem importância, um grão de areia no deserto,
uma gota de água no imenso oceano, nem isso!
- Gostava de o conhecer, e aos irmãos de lá, não gostavas de falar
com eles, dizer-lhes que somos filhos do mesmo pai, que podemos ser amigos?
- Eu não, não sou lírico como tu, a mim não me dizem nada, não os
conheço, nem sequer sei se nasceram, o que é que ganhava com isso, o mais certo
era virem-me pedir ajuda, podem ser uns pelintras, uns tesos, que se
desenrasquem, eu também nunca lhes pedi nada, sabes como tenho mourejado,
catorze e mais horas por dia, não venhas com essa, qual é o teu interesse em
conhecê-los, se calhar davam-te alguma coisa, nem sonhes com isso, ninguém dá
nada, o tipo se quisesse já nos tinha contactado, o malandro fez de conta que
não foi nada com ele; andou metido com a tua mãe, fez-lhe dois fedelhos, e
pôs-se a andar nas calmas, pisgou-se; também, com a idade dela, o que é que a
tola esperava, casar?! Só se ele fosse parvo, um rapaz daquela idade ia
ligar-se para sempre a uma mulher de trinta e tal anos de idade e mãe de vários
filhos, só se fosse estúpido, burrinho de todo, eu teria feito o mesmo, quanto
mais longe dela melhor.
- Não me digas que terias coragem, fígados, para deixar uma mulher
com duas crianças, uma de meses e outra de três anos de idade, não acredito que
fosses capaz disso, não acredito, mesmo que afirmes o contrário.
- Bem, não sei, mas o mais certo era não me meter com ela, metia-me
com uma da minha idade, ou mais nova, ao menos casava e pronto, não ficava com
remorsos, meus queridos anjos, eram do meu sangue, até parece que não tem
coração, deixarem dois putos tão pequenos, inocentes, que culpa têm as crianças
dos erros, das fraquezas dos pais?
- Ela deveria, como mais velha, ter tido mais juízo, pelo menos não
emprenhar, mas se isso tivesse acontecido não estaríamos nós aqui, e olha que
eu gosto de viver, apesar de não ter pai e ter uma mãe como a nossa.
- Tivemos azar, lá isso, tivemos. Há gente que nasce num bercinho
de ouro, nós nascemos na palha, na pocilga, na imundície, na pobreza total,
absoluta, ninguém nasceu mais pobre do que nós, sem nada, nem ninguém, pigmeus
do mundo, crescemos sozinhos, ao deus dará, aos empurrões da fortuna, mas olha
que não estamos pior do que alguns que nasceram em ricas camas, cheios de tudo,
bom conforto, boa comida, roupa à fartança, não estamos, não, mas graças ao
nosso esforço, não nos podemos queixar muito, outros estão bem pior, e olha que
podíamos ter saído bêbados, ladrões, do piorio que há, mas não, felizmente
saímos honestos, trabalhadores, todos nos respeitam e admiram, e alguns até
inveja nos terão!
- Parece que a divina providência nos amparou, nos quis compensar
de toda aquela miséria, daqueles anos de fome, de frio, de doenças, de falta de
carinho, olha que a falta de carinho foi o que mais me custou, uns braços de
pai, de avós, de uma mãe carinhosa e sorridente, mas não, nem avós, nem pai,
com uma mãe a cheirar a sardinhas e a vinho entornado, até parece que foi
castigo de Deus por algum mal que nós tenhamos feito antes de nascer, olha que
eu não me lembro de ter feito mal fosse a quem fosse.
- Nós não fomos os únicos desgraçados, infelizmente houve muitos
outros, alguns até foram abandonados pelos progenitores, nem sequer sabem quem
são, eu até preferia ser um desses, ao menos não sabia quem eram, teria a
ilusão de pensar que eram pessoas fidalgas, ricas, bem instaladas na vida, mas
que não quiseram assumir o escândalo, uma aventura de jovens.
- O nosso avô Gaspar foi exposto, coitado, julgo que nunca soube
quem foram seus pais, é muito triste, eu prefiro saber, não tenho culpa que os
meus pais sejam quem são, não escolhi nascer deles, mas prefiro saber, se
calhar até o teu pai não é o mesmo que o meu, eu gostava que fosse, seríamos
irmãos inteiros, mas ele disse que não tinha a certeza, provavelmente a tua mãe
andava com outro, com a bebida, não sei.
- O avô, coitado, ficou viúvo tinha eu cinco anos de idade, mal me
lembro dele, morreu passado dois anos da morte da avó, em 1949, os desgostos
mataram-no, ainda não era muito velho, só tinha setenta e dois anos de idade, a
segunda guerra mundial deu cabo dos países, tudo racionado, muita miséria,
carência de tudo, até havia falta de açúcar para fabricar os rebuçados e
roscas.
- Quando faleceu a avó tinha eu três aninhos de idade, não me
recordo nada dela, a mamã diz que ela sofreu muito, coitada, a tratar dos
filhos, a criá-los, para depois os ver morrer, caíram como tordos, um a um,
somente dois lhe sobreviveram, olha que custa; a vida para os pobres é sempre
difícil. E para cúmulo da desgraça, as doenças, as mortes, o sofrimento! Os
ricos gozam a vida, têm tudo, as doenças não os matam, têm bons médicos, podem
comprar os medicamentos, vão para os melhores hospitais, até depois da morte
são diferentes de nós: acompanhados aos cemitérios pelas irmandades, bombeiros,
bons jazigos de família, missas de corpo presente, responsos; nós somos apenas
acompanhados pelos humildes e a seguir enterrados em campa rasa, e ao fim de
cinco anos atiram com outro corpo para cima dos nossos ossos e mais ninguém se
lembrará da nossa passagem por este vale de lágrimas. Outro dia o senhor padre
Alberto recusou-se acompanhar o funeral do marido da senhora Albina, alegando que
ele não ia à missa, que era maçónico e ateu – eu nem sei bem o que isso é!
- E depois dizem que são representantes de Deus na terra! O Senhor
com certeza não teria procedido dessa forma, as pessoas não são obrigadas a ir
à missa; se o defunto pertencesse a essas famílias abastadas certamente ele não
teria agido assim.
- Eu não gostava de ser milionário, isso não, mas também não queria
ser um pobretana, estou cansado de o ser, contentava-me em ser remediado, não
me importava de ser padre, têm uma vida boa, não pagam renda de casa, recebem a
côngrua, alguns ainda são professores no Colégio, e agora já não ia para o
exército, mas mesmo que eu quisesse não podia sê-lo.
- Não podias?!
- Somente os filhos nascidos no casamento católico são admitidos no
Seminário.
- Desconhecia isso. Pulhas! Cada dia gosto menos deles. Que culpa
têm as crianças de nascerem fora do matrimónio? Até Jesus nasceu! O pai dele
não era São José, são os próprios padres a afirmá-lo, mas sim Deus, ou Jeová,
como lhe chamam no oriente.
- Os padres não são os culpados, não foram eles que fizeram essa
absurda lei. Julgo que foram os cardeais, ou os bispos, a pedido do Papa,
talvez para proteger a Igreja Católica dos malnascidos. Por outro lado, o que
disseste acerca de Jesus, atenção, isso é diferente: Deus é Pai e Senhor de
toda a Humanidade e de todas as criaturas que existem e que porventura venham a
existir no universo, não se pode confundir a divindade, o Ser Supremo, com um
humilde ser humano. Jesus veio ao nosso planeta enviado pelo seu pai para nos
salvar, para nos livrar da tentação. Escolheu Maria e o seu lar porque achou
que aí Jesus teria as condições ideais para crescer em harmonia e virtude. Não
confundas as coisas. Nós somos apenas criaturas de Deus e seremos sempre aquilo
que ele quiser que nós sejamos.
- A padralhada tem-te doutrinado bem!
- Vós na cidade tornais-vos blasfemos, incréus!
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