A ADVERSIDADE POR MADRASTA
- romance -
Por José Alfredo Cerdeira
Prefácio
Este romance, o terceiro publicado pelo
autor, conta-nos uma história extraordinária, mesclada de sofrimento, de
injustiças, de crueldades, desespero, e por fim de esperança. Estamos, sem
dúvida, perante uma tese bem elaborada: o
ser humano é capaz de sobreviver a todos os malefícios, a todas as provações,
desde que, no fim da corrida, algo - ou alguém - o espere para o compensar dos
sacrifícios, dos esforços ciclópicos que a vida, ou o destino, quem sabe, as
circunstâncias, lhe exigiram. Isto levar-nos-ia a especular sobre as nossas
reais capacidades ou, então, a remeter-nos para o universo da ficção, onde tudo
é possível e aceitável, e o exagero, sabiamente doseado, é um ingrediente
indispensável.
Quer se queira, ou não, ao iniciarmos a
leitura deste livro entramos, quase sem nos apercebermos, dentro do enredo,
tomamos partido, irritamo-nos com a injustiça, com a impunidade, sofremos com o
sofrimento das personagens, partilhamos da sua imensa dor. No decorrer da
narrativa, sem darmos por isso, uma lágrima traiçoeira baila nos nossos olhos,
um grito de raiva e desespero sai dos nossos peitos, por nos acharmos
impotentes face ao mal que está a ser perpetrado aos mártires, vítimas de atos
apenas inventados, de crimes que não cometeram! Parece-nos estar a assistir ao
difícil caminhar para a santidade: Raimundo, a personagem sofredora, percorre o
caminho que o conduzirá ao “céu”; pelo contrário, outra personagem, Rosa, cheia
de ódio e despeito, caminha, paulatinamente, devido aos seus planos
inconcebíveis de vingança, próprios de uma mente perversa, executados com
requintes de malvadez, para o “inferno”, para os braços escaldantes do diabo. Mas
se o despeito nos leva ao crime,
como habilmente defende o narrador, ai daquele que se atravesse na vereda do
despeitado! A sua vida torna-se num turbilhão, num cadinho de todas as
experiências maléficas!
Outra tese, que está subjacente no
romance, diz respeito ao perdão absoluto.
Ao contrário daquilo que nos fizeram crer na catequese, quando éramos meninos,
convencendo-nos de que só um deus tem o poder de perdoar, no romance o perdão é
concedido por Raimundo, a personagem mártir! Obviamente que a tese vinga, pois
ele, pelo seu sofrer, pela sua abnegação, o seu caráter impoluto, ganhou a
santidade, tornou-se divindade, embora em grau menor, pelo que pode conceder
essa dádiva, não como um deus do Olimpo, mas sim como seu intermediário, um mensageiro.
O exemplo vem da igreja cristã ao canonizar alguns indivíduos, tidos como criminosos
pela lenda, ou tradição, não tanto pela sua biografia, quantas vezes deturpada,
ou mesmo ignorada; graças ao seu arrependimento, e aos supostos milagres
subsequentes, ganharam um lugar no paraíso, onde outrora viveram Adão e Eva! Os
conceitos religiosos estão patentes em toda a obra, são o sal que a tempera. A
doutrina cristã: sofrimento, morte, ressurreição (em sentido figurado), percorre em ziguezague a narrativa, levando o
leitor a compreender que a vida não é linear, mas sim eivada de coisas más e
boas, numa mistura plenamente conseguida, na procura do prémio: a salvação da
alma. O destino de cada um de nós está previamente traçado mas - mediante ações
praticadas pela vontade individual ou coletiva - pode o mesmo ser alterado, é o
livre arbítrio! A superstição, o espiritismo, surgem aqui e ali, sem grande
relevo embora, a lembrar-nos que as gentes dos meios rurais e de montanha ainda
conservam resquícios de outras eras, de tempos obscuros, e que os padres católicos
ainda não conseguiram extirpar na sua totalidade, pois até eles próprios, por
vezes, são atingidos por essas crenças e costumes ancestrais.
No primeiro romance apresentado pelo autor
a personagem principal, histórica, o famigerado Tomás das Quingostas, morre às
mãos dos soldados; no segundo romance, Morgado, sucumbe soterrado no antigo
convento dos frades vítima da sua ambição; neste, Raimundo sobrevive, casa com
Pureza, que sempre o amou, em silêncio, e por ele aguarda, anos a fio, mesmo
sabendo que se voltar do desterro, a que fora condenado, não será para os seus
braços, mas sim para os de Rosalina, cujo fim será trágico, por não ter
conseguido ser fiel à sua palavra de adolescente. A morte funcionou como exemplar
castigo! Não subiu ao pódio, porque desistiu, porque se cansou de esperar,
porque sucumbiu às artimanhas e à chantagem da manipuladora madrinha! Só como
heroína, senhora de uma fé inquebrantável, sem tergiversações, é que poderia,
de vestido branco, imaculado, subir os degraus da igreja, sorridente, olhos
brilhantes, ao lado de Raimundo.
O contraste entre o espaço ao ar livre e
o meio urbano é-nos apresentado de uma forma admirável. No primeiro, carecemos
de quase tudo: eletricidade, água canalizada, transporte, escolas, mas
possuímos liberdade; no segundo, temos as comodidades, mas falta-nos a alegria
de viver! Poder-se-ia afirmar, como o fez o poeta: «está-se bem, onde não se está!» À
medida, porém, que o ser humano se distancia da animalidade, a tendência é para
viver na cidade, onde tem tudo à mão, onde se realiza como pessoa, embora,
claro, se afaste da natureza, se prive da liberdade sem limites.
A paz, embora tardia, é alcançada
finalmente pelo nosso herói. Não foi gorada a nossa expectativa. O tempo sarará
todas as feridas provocadas pelos nefastos acontecimentos, apagar-se-á da
memória o passado sombrio, e vingará o amor. Enfim, verificou-se a catarse,
simbolizada pelo raiar do sol, pelo eclipse das nuvens que escureciam o caminho
para a suprema felicidade, e – acima de tudo – a expiação.
Joaquim A. Rocha