MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS
Por Augusto César Esteves
Linda Terra e Linda História
É linda a terra e outra igual não há. Não
receia confrontos; e de encómios dos nativos não precisa, porque as belezas de
Melgaço não estão só na retina dos meus olhos, nem os muitos encantos naturais
da terra meu coração os criou. E assim como é linda a terra, linda é também a
sua história. Disse-mo primeiro o coração e ensinaram-mo depois os livros. // Durante
a aprendizagem, por toda a parte pesquisei velhos papéis, muitos li e estudei
com afinco e, entrementes, ó Melgaço! Ó minha terra amada! Para escrever com
arte, verdade e elegância a história dos teus Homens todas as minhas tentativas
falharam, porque acumulei, apenas, desejos sobre vontades – e isto é pouco, e
isto é nada. Mas, embora sejam frágeis as armas vestidas agora por este novo e
atrevido magriço teu, convém conhecer algo da antiguidade da terra onde se
passam os factos historiados e, para tanto, façamos aqui uma pequena digressão
em busca do Melgaço de antanho, segundo os ensinamentos dos livros e da poeira
dos arquivos.
Estão cheias de trevas as eras a visar e
mesmo a própria Idade Média é campo ingrato para quantos procuram descobrir os
seus arcanos; não raras vezes colhe aí um triste desengano quem julgar ter
feito uma grande descoberta. A medo, pois, entra-se agora a rasgar clareiras e
embora se reconheça estarem ainda por explorar a fundo bons filões, arquive-se
no entanto aqui, de antigualhas, apenas o preciso para não quebrar a unidade
deste estudo. Serão fantasias algumas passagens? Serão desacertos, outras?
Talvez. Mas neste ramo do saber humano quem pode afirmar ter escrito obra
acabada e perfeita? E se os livros dos mestres não são quais catecismos de
religiões a ensinar sempre pelas mesmas palavras as mesmas verdades, quem pode
acalentar a pretensão de expor os seus pontos de vista como dogmas de fé?
Entretanto, e enquanto não chega a última variante das investigações
históricas, como os nautas das caravelas da epopeia portuguesa foram
disseminando pelos mundos desconhecidos os seus padrões, também eu,
imitando-os, vou espalhar por estas páginas afora retalhos de lições e velhos
documentos, não para que me tomem como descobridor, mas para os assinalar como
marcos miliários a avultarem nas solidões do estudo, em épocas afastadas e
menos canseirosas da minha vida.
Sejam eles conhecidos, pois, de todos os
entusiastas amigos de Melgaço e de modo especial sirvam para promover a cultura
popular do meu concelho. Frisado isto, leia-se agora afoitamente o capítulo e
com a mesma afoiteza responda-se no fim a estas cantantes palavras italianas: «se non é vero, é
bene trovato?» // Não se conhece documento algum para assentar-se ter
sido povoada por D. Afonso Henriques em 1170 a terra de Melgaço, como diz uma
das fontes obrigatórias bebida por quantos escrevem sobre esta Vila, a “Corografia
Portuguesa”, do padre António Carvalho da Costa; mas esta ideia deve
ter a consistência da informação dada por Viterbo no “Elucidário”
ao explicar o termo colecta, onde marca de 1171 o foral concedido por aquele
rei. Mas se me repugna a asserção, embora fossem bens da Coroa transmitidos por
D. Afonso VI, de Leão, ao conde D. Henrique, quando em 1097 separou da
Galiza o Condado Portucalense, e os bens desta natureza serem muitos para
todos andarem sempre bem trabalhados – o que implicaria vasta população (num tempo dela escasso) – reconheço e aceito, mesmo assim, o
povoamento destes sítios próximos desde a mais alta antiguidade.
Poucos são até hoje, é certo, os segredos
arrancados ao seio da terra melgacense pelos arqueólogos; e sobre as eras
recuadas não é grande também o feixe de informações dos avós dos nossos avós,
recolhidas e conservadas pela linguagem do povo numa constante e religiosa
tradição. No entanto, Abel Viana, um estudioso com invejável posição no mundo
das letras, em Abril de 1930 descobriu nos terrenos do Peso actual, antiga Juradia
de Várzea, uma estação paleolítica e nela recolheu três instrumentos chelenses,
de talho grosseiríssimo, do mais rude por ele visto em quantas estações
encontrou, sem então lhe passar pela mente ter deixado no mesmo local,
enterrado numa das fímbrias do velho prazo da Quinta da Torre, um lindo
exemplar de machado de bronze, de duplo anel e dupla caneladura, mas com enorme
defeito – não ser meu. // José Fontes, um dos velhos pioneiros destes
trabalhos, descreveu em Portugalia, como produto dum esconderijo margeano ou
dum esconderijo de fundidor mercante, cinco machados, de duplo anel e dupla
caneladura também, que um trabalhador, por acaso, encontrou em 1906 numa bouça
da Carpinteira, S. Paio, quando arrancava um pinheiro.
Nas ligeiras escavações da Cividade,
vários objectos colheu o Sr. Dr. José Leite de Vasconcelos, levando-os para o
Museu Etnológico de Belém com a pequena pedra do interessante tetráscele achada
à flor do monte; conseguindo endereçar para lá os machados de bronze descritos
em Portugalia e carrear para esse Museu até o chamado túmulo de D. Paterna,
referido na “Corografia Portuguesa” do padre Carvalho…
«aonde se
vê sua figura de cónega obrada de meio relevo sobre o túmulo, e junto de si, na
mesma sepultura, outro de homem armado com uma espada na mão para o pé»
e o monumento apresentado pelo Dr. Luís Figueiredo da Guerra como um cipó
luso-romano «tendo na parte superior um nicho com duas figuras, homem e
mulher dando as mãos; no rectângulo inferior, e também abaixo dele, a inscrição,
que diz: Fulana, de cem anos, e seu companheiro Valus (filho de
Arda), de cinquenta anos, estão aqui sepultados; o companheiro Pento mandou
fazer este monumento.»
Esse arqueólogo, fundador do Museu,
salvou-os da destruição, salvando-os da nossa tradicional incúria e supina
ignorância. Mas se nos levou estas preciosidades, deixou-nos uma lição,
incompreendida até hoje: explorar os nossos castros. E estes facilmente se
encontrariam, seguindo a voz do povo. Sem necessidade de apontar para fora de
um acanhado semi-círculo traçado à volta do seu eido, um castro, também,
conservado na tradição como castelo da moirama, o melgacense ainda hoje
apresenta sobranceiro à Vila o castro do planalto de Eiró e, mais para cima, o
Crasto e a Eira, todos três na freguesia de Rouças. No antigo couto de Paderne
outros dois aponto: Crastos e Cividade; este, um castro lusitano-romano, na
opinião autorizada do sábio mestre, José Leite de Vasconcelos.
Outros há, como os castelos de Sante, e
até o Cartulário de Fiães conserva memória de um sepulcro megalítico ainda no
tempo de D. Sancho II, a venda da «hereditatem meam quam habeo de casali de auteiro de mamoa et
dedi eam ab forum Johanni ligoni», em local que não sei situar. / Mas
tudo isso é pouco. Diminuto é ainda o espólio, e pequeno, por isso, o processo
organizado. Através das suas folhas filtra-se já, contudo, uma réstea de luz e
esta, coada por ensinanças dos mestres, é suficientemente clara para permitir a
visão dum Melgaço habitado alguns séculos antes de Cristo nascer, mas habitado
por um povo rude, aguerrido e de mui rudimentar cultura – os celtas.
Aqueles instrumentos de pedra lascada não
bastam, decerto, para atribuir ao homem paleolítico aquela estação de
superfície e nunca ela, por isso, se poderá considerar como constituindo um
castro pré-histórico. Mas, se algum dia da antiguidade ali se estabeleceu o
homem – e o encontro do machado de bronze alguma significação tem – ao seu
castro, tal qual como aos outros castros, deve atribuir-se a cronologia já
avançada da era do ferro. // continua...
Sem comentários:
Enviar um comentário