LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
- Eu nasci em 1908 e só permaneci em casa dos meus pais até aos
oito anos de idade. No solar dos meus padrinhos não passei mal, davam-me
roupinha, embora usada, mas que queria mais? O que me custava imenso era estar
fora de casa, longe dos meus irmãos, dos meus pais, dos meus amigos, das minhas
inocentes brincadeiras e dos brinquedos que eu própria fabricara. Deixei de ser
criança e passei a ser uma empregadinha doméstica: nem escola, nem brincadeiras,
nem amigos, só casa, mais casa, sentia-me sufocada, e a igreja, a missa todos
os domingos, aquelas mulheres sérias, aqueles homens empertigados, aquele
ambiente de terror e mistério.
- Agora compreendo porque entre si e o seu irmão Aurélio, mais novo
cerca de dois anos, nunca existiu um grande afeto, um grande amor de
irmãos.
- Deixaram-nos viver pouco tempo juntos; quando saí de casa tinha
ele seis anos de idade, não deu para cimentar esse amor. Mesmo os irmãos
necessitam de conviver, pelo menos até ao matrimónio, depois cada um segue o
seu rumo, o seu destino, mas até esse momento devem permanecer unidos, como as
árvores de um bosque, crescerem lado a lado, sugarem as alegrias e tristezas do
lar. A mim não me deixaram partilhar esses doces momentos, atiraram-me para o
lado de fora, talvez pensando que era melhor para mim, não foi, não, a minha
vida teria sido diferente se tivesse ficado, quem sabe, casaria, daria à luz
filhos do casamento, teria sido feliz, assim não fui nem vos deixei a vós
sê-lo, não por culpa minha, não, quem me dera ter-vos dado mais e melhor, mas
como o poderia eu ter feito?
- Não se culpe, mamã, eu agora compreendo. Fez o que pôde, não
estava nas suas frágeis mãos fazer diferente ou opor-se, apesar de tudo foi uma
grande mulher, outras fizeram bem pior, não conseguiram ter a sua dignidade, a
sua enorme força de vontade, a sua simpatia para com todos. Errou, é certo, mas
quem não erra? Na sua situação, cheia de filhos, mãe solteira, todos os homens
a abusar de si, a cobiçá-la, a disputá-la fisicamente, como se fosse peça de
caça, trofeu de caçador, nada mais, nem melhor, poderia ter feito. Não se
culpe, nem seja juiz de si mesma; o tempo humano é curto demais face à
eternidade. O seu irmão Aurélio também passou ao lado da felicidade pelos
vistos.
- Quando eu voltei para casa grávida, em 1928, somente ele vivia em
casa com os teus avós, pois o outro meu irmão nascido depois dele faleceu com
apenas dias de idade. Era o menino querido. Vestia bem, embora com roupas modestas,
ia aos bailes, as raparigas gostavam dele, trabalhava na arte de barbeiro. Não
gostou nada que eu aparecesse, fez-me a vida negra; era uma desavergonhada, uma
mulher sem juízo, vinha lançar o estigma (opróbrio,
dizia ele) sobre
toda a família; o melhor teria sido eu ficar por Lisboa, pelo menos ninguém
saberia, o que diriam agora as raparigas da terra, irmão de mãe solteira, não
bastava já o que acontecera ao pai, que vergonha, não iria mais aos bailes. Fez
tudo para me escorraçar de casa! Quando a tua irmã nasceu eu disse aos teus
avós para me arranjarem uns patrões onde servisse, eles que me ficassem
temporariamente com a menina, não queria dar mais trabalho, despesas, e
chatices. Arranjaram-me a casa de uma família de Tronços, professores do ensino
primário, por sinal muito bons para mim.
- Em 1931 nasce o Alexandre!
- Muito eu resisti; os rapazes de Tronços e São Bernardo não me
largavam, prometiam mundos e fundos, sabiam que eu já tinha uma filha, mas não
se importavam, palavras, o que eles queriam sabia-o eu. Deixei-me ir na
conversa, embeicei-me por um deles, e zás! Fiquei com mais um rebento.
- Como se chamava o pai do meu irmão?
- O nome dele era Antão, mas todos lhe chamavam o “Chateado”.
Grande patifório, depois de eu ficar prenha deixou de me procurar, teve receio
das responsabilidades, eu que criasse o bebé, que arcasse com todos os encargos
e dissabores.
- O Alexandre acabou por morrer.
- O Alexandre acabou por morrer.
- Felizmente para ele, morreu com poucos meses; os meus patrões,
Deus os ampare no céu, foram seus padrinhos.
- Dois anos depois, outro!
- Eu já não me podia defender daqueles malandros, grandes pulhas,
faziam apostas para ver qual deles primeiro me desgraçava; em Janeiro de 1933
nascia outro rapaz, o Ambrósio, filho do António Bonfim, de Tronços. Para não
casar comigo escapou para a Venezuela, ai não, que o meu patrão, que tinha sido
professor dele, obrigava-o a casar, mas o cobarde pôs-se a mexer, nunca mais
voltou à terra de nascimento, o teu irmão foi ter com ele depois de ter
cumprido o serviço militar, por lá está, não sei se bem se mal, pois é raro dar
notícias.
- Deve estar mais ou menos, mas olhe que a nós nem escreve, também
nem o conheço, só o vi uma vez, quando ele partiu para as Américas no ano de
1955; veio aqui despedir-se, não sei se da terra que o viu nascer, se de nós.
Mal me recordo dele, só me lembro que se deitava tarde, acordava-me, uma altura
deitou o meu grilo fora, dizia que não o deixava dormir; fiquei com imensa
pena, tanto esforço eu tivera para o apanhar; e aquela gaiola de cana, que
trabalhão me dera construí-la! O grilo cantava tão bem, nunca tive outro tão
cantador, ia buscar alface e erva do monte para lhe dar, jamais passou fome,
mas o Ambrósio queria dormir e o grilo não o permitia, perdoo-lhe, mas nunca
encontrei outro grilo igual, isso não. O Ambrósio provavelmente já nem de nós
se lembra, tem lá duas irmãs, segundo dizem, filhas do pai e da mulher com quem
ele casou. A 4 de Março de 1935, de acordo com a caderneta do Registo Civil,
nasce-lhe a Rosália.
- Coitadita, não chegou a gozar a vida: viveu apenas um ano. Era tão
linda, tão amorosa, um sorrisinho cativante, foi a terrível doença, ainda a
levámos ao hospital, mas não havia nada a fazer, o médico não conseguiu salvá-la,
tive um grande desgosto, só Deus sabe quanto eu sofri, não há ninguém que
consiga descrever a minha dor, superior à força humana. // continua...
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