sábado, 16 de abril de 2016

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha

Acácio com a irmã (ao centro) e esposa

“LEITURA”


     Não pensem que vou falar de livros! O título sugere-o, eu sei. Trata-se, tão-somente, de uma escultura do nosso conterrâneo Acácio Caetano Dias, a qual acaba de ganhar o 1.º prémio da Quinzena Cultural Bancária (10.ª edição), iniciativa do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas. O júri, «constituído pelo pintor António Carmo, pelo arquiteto João Santa Rita, e pelo pintor A.M. Pinto Carvalho, tendo em conta os regulamentos publicados e os trabalhos apresentados aos respectivos concursos, decidiu:
b) – No concurso de escultura, atribuir apenas o primeiro prémio à peça de escultura “Leitura”, de Acácio Caetano Dias…»
     Não tive ainda a oportunidade de ver a escultura, nem de falar com o seu criador, mas espero consegui-lo em breve. Disso falarei oportunamente. A peça está exposta no Palácio Foz, em Lisboa, juntamente com outros trabalhos premiados. Um conterrâneo com o talento do Acácio é um orgulho para todos os melgacenses. Ele é um artista nato, um homem que não tendo frequentado Escolas Superiores de Arte é émulo daqueles que tiveram essa possibilidade e essa formação; é um autodidata, pois as suas habilitações literárias, 1.º ciclo, nunca o impediram, nem impedem, de brilhar em várias exposições: Escola de Belas Artes, Hotel Altis, Palácio Foz, Festa da Cultura de Melgaço, etc.
     O Acácio nasceu na freguesia de Prado, concelho de Melgaço, em 1935. Seu pai, o popular Amadeu Dias “Rato”, tinha a profissão de latoeiro. A sua oficina situava-se perto da barbearia e taberna-restaurante de Augusto Domingues “Carlota”. Juntamente com a sua oficina, ou seja, na mesma sala, ou loja, coexistia uma outra, de sapateiro, cujo mestre era o Henrique Gonçalves “Abelhão” (isto em 1958, mais ou menos). Nessa altura já o Acácio se encontrava provavelmente em Lisboa, pois em 1959 entrou para o Banco Nacional Ultramarino como apontador.
     Os dois, Amadeu e Henrique, formavam um duo impagavável no que diz respeito a “malandrices”. Não havia cliente que não saísse sorridente com a graça de ambos, mesmo os mais sisudos. No carnaval, o pai do Acácio fazia normalmente parelha com o senhor António “Trauliteiro” (apesar da alcunha, o senhor António era um homem pacífico, brincalhão, o alvo cavaleiro – São Jorge – que na vizinha vila de Monção, aquando da procissão do Corpus-Christi matava a Coca, ou Santa Coca, o terrível dragão que afugentava o povo amedrontado). Ainda me lembro de vê-lo dentro de um carrinho de bebé, vestido a rigor e com chupeta na boca, chorando lágrimas comoventes, a ser empurrado pela velha ama (Amadeu), pesarosa e convincente. Davam a volta à avenida, percorriam as ruas da vila, iam até à calçada e loja nova, e depois recolhiam, pois o líquido precioso esperava-os ansiosamente! Acerca do pai do Acácio conta-se uma história divertidíssima: o seu irmão, Edmundo, também latoeiro, um dia recebe na sua oficina um camponês que lhe pede para pôr um fundo a uma lata que consigo trazia, daquelas que se usavam para o sulfato ou a cal. O cliente perguntou quando é que poderia ir buscar a obra e a resposta, carregada de sofisma, não se fez esperar: - «Senhor Fulano, não precisa vir buscá-la; na próxima semana tenho de ir visitar uma pessoa sua vizinha e assim aproveito para lha levar.» O homem ficou radiante, pois deste modo evitaria perder tempo, tempo esse que necessitava para o amanho das suas terras. - «Obrigado, senhor Edmundo; vai provar uma pinga que lá tenho que é somente para os verdadeiros amigos.» O convite do agricultor veio aguçar ainda mais o apetite devorador do latoeiro. Depois do cliente ir embora apressou-se a falar com o senhor António “Cerinha”, sapateiro, seu vizinho de oficina, e com seu irmão Amadeu, acerca do tal convite. Todos eles passaram a língua pelos lábios ressequidos, fecharam os olhos e tiveram a visão do deserto, isto é, começaram a ver o líquido (em lugar da água o vinho do lavrador) a cair de baixas nuvens espessas. As malgas, todas elas do tamanho de alguidares, começaram a encher-se do divino néctar e seus olhos brilharam de sofreguidão e ânsia. O senhor Amadeu sentenciou: «O vinho só não chega; terá de ser acompanhado de presunto e broa
     A lata parecia nova. Marcaram o dia e a hora e puseram-se a caminho. Três ou quatro quilómetros a pé não é brindeira nenhuma, mesmo naquele tempo. Chegaram extenuados. O aldeão andava a sachar as suas leiras, perto de casa, e quando os viu gritou-lhes com ar bonacheirão: - «Ainda bem que vêm a esta hora porque também estou com sede.» Os três aplaudiram o gracejo e como quem não quer a coisa lá se foram aproximando da adega. Malgas na mão, olhar fixo no presunto que baloiçava ali bem perto, começaram um por um, a receber da pipa a tão esperada pinga. Depois de já terem despejado três ou quatro malgas, um deles disse ao anfitrião: - «Senhor José, um naco de pão não lhe ia mal agora!» Essas palavras apanharam o homem de surpresa. Aguardava que eles se despedissem a fim de recomeçar os trabalhos. O tempo passava, a torneira da pipa sem descanso, e agora o pão! Chamou a mulher e pediu-lhe que trouxesse broa para a gente da vila. - «Rico pão, sim senhor!», comentou um dos glutões. Outro, aproveitando a deixa, arrisca: - «Pão pede algo, talvez presunto
     O pobre lavrador viu-se de repente entre a espada e a parede, acossado como uma raposa ou um lobo. Se recusasse, passava por somítico; se aderisse à sugestão ficava sem presunto. Pegou na faca, olhou pela última vez para a bela perna do porco, que tanto trabalho e cuidados lhe dera, e diz-lhe, como falando para um filho que parte para longe: - «o teu dia chegou, é o destino!» Do desgraçado, duas horas mais tarde, restava apenas um grande osso feio e bruto; da broa, nem uma côdea restou! A pipa ficou exausta! Saíram da adega, cambaleando, rindo descaradamente! O cavador, entre pragas, foi-lhes dizendo: - «Três para uma lata; é obra
     Que me perdoem aqueles que já conheciam a história ao vê-la tão mal narrada; contei-a tal qual como a contaram a mim, apenas lhe acrescentei um pequenino ponto.

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1004, de 1/4/1994.


     Nota: o nosso amigo Acácio Dias morreu no dia 7 de Março de 2013, há pouco mais de três anos. Merece ser lembrado, não só pela sua obra, mas também pelo seu caráter impoluto, pela sua alegria contagiante

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