segunda-feira, 25 de abril de 2016

ENTRE MORTOS E FERIDOS

(dois anos de guerra nas matas da Guiné-Bissau)

romance histórico - Por Joaquim A. Rocha

10.º capítulo

 A VIAGEM

  
     A parte da narrativa relacionada com a guerra vai agora começar. Viajantes forçados, transportados como animais de carga, acções de empresas falidas, ei-los a caminho das matas africanas. Cândido, como sempre, usando um discurso didáctico, esclarece:

- Meu caríssimo amigo: quem nunca viajou de barco há-de pensar certamente que é um prazer. Isso acontece somente quando se viaja em paquetes de luxo, com todas as comodidades, poucos passageiros e muitos serviçais, em águas calmas, com constantes idas a terra. Mas viajar num navio para quinhentas pessoas e lá dentro serem transportadas quase duas mil, sem quaisquer confortos…
- Estou a ver… E quanto tempo durou a viagem?
- Cerca de seis dias, e seis noites: uma vida! Seis dias de tortura: má disposição, enjoos, vómitos. Ao sairmos a barra, e mal penetramos no Atlântico, este, talvez por não gostar da nossa intromissão – ou relembrando épocas passadas – quis aniquilar-nos, provar que era o mais forte. Atirou com raiva incontida o navio ao ar e bateu-lhe rijo com ondas de muitos metros de altura!
- Assustou-se…
- Eu, que pela primeira vez navegava, não tendo em conta aquelas passagens na batela no rio Minho, poucos metros de largura e com águas calmíssimas, senti um horrendo calafrio: afinal o meu fim – pensei – estava mais próximo do que previra. Seria o mar, o imenso mar, e não a terra, o meu leito de morte! Uma sepultura marítima, como os marinheiros de outros tempos tiveram. E lembrei-me então de Ulisses, seus homens a serem engolidos pelas profundas águas, pelos deuses em fúria: «Enquanto olhávamos para Caribdes com receio da morte, Cila arrebatou-me da nau côncava seis companheiros, os melhores de braços e os mais valentes. Ao volver os olhos para a nau ligeira – e para os meus companheiros – só então percebi os pés e os braços dos que tinham sido arrebatados…»

     Henrique tudo ouvia, fascinado, mas comovidíssimo. «Como era possível, tudo aquilo, ter acontecido? As pessoas não são gado», pensava. Arriscou uma pergunta, cuja resposta já fora dada, mas que lhe escapara devido a uma pequena desatenção:

- E o navio, quantas pessoas levava?
- Meu caro amigo, aquele cruzeiro fora construído para transportar cerca de quinhentas almas, como mais atrás te disse; como o governo precisava urgentemente de colocar soldados em África, naquela viagem o Uíge transportava cerca de duas mil criaturas! Duas mil vidas flutuando ao sabor das ondas e do destino.
- Aposto que não iam lá dentro oficiais de alta patente…
- Acertaste em cheio. O oficial mais graduado a bordo era capitão. Os oficiais com patente superior eram transportados por via aérea: mais cómodo, mais seguro, mais rápido. Não queriam correr riscos, nem misturar-se com a ralé. Lusos, todos; mas uns mais do que outros! Como estava longe o tempo em que os generais acompanhavam as suas tropas: Júlio César, Aníbal, Carlos Magno, Napoleão… Nos tempos hodiernos refugiam-se em gabinetes atapetados e daí, através de sistemas modernos e sofisticados, complexos, transmitem as suas ordens, inventam as suas estratégias: puros jogos de computador!
- Não teme que esses comentários, esse seu modo de pensar, o comprometam? Nunca se sabe o dia de amanhã.
- Não estamos nós num país livre? A ditadura já acabou e espero que em minha vida a não volte a sentir. Sabes, Rique, que é quase impossível indivíduos com as minhas características sobreviverem num regime ditatorial – simplesmente sufocamos.    
- Calculo. Eu apenas lhe senti o efeito pela rama. De qualquer modo tenha cuidado. Comigo está à vontade, pode confiar cegamente, mas nem todos são seus amigos como eu – há muita maldade no mundo.
- A quem o dizes. Eu sou prudente, embora por vezes me exceda nas minhas apreciações; mas não posso com injustiças…
- Sugiro-lhe que continue a sua narrativa, embora goste de ouvir as suas divagações.
- Faço-te a vontade. Escuta, então: nos dois primeiros dias da viagem não consegui ingerir qualquer espécie de alimento – o meu delicado estômago não permitia; depois, lentamente, fui-me adaptando ao baloiçar ininterrupto, pendular, da embarcação. Outros camaradas não o conseguiram. Logo que chegámos perto de Bissau tiveram de ser conduzidos para o hospital militar (infelizmente não havia outro em todo o território, dando-nos de imediato a ideia do que era a província da Guiné, com o que poderíamos futuramente contar).   
- E durante o trajecto passou-se algo de importante, um episódio que mereça destaque?
- Talvez! A bordo ia um mercenário, isto é, um soldado voluntário que já tinha feito campanhas em Angola e Moçambique! Comparado connosco parecia um ancião, devia ter à volta de trinta anos de idade. Penso que ele iria mais pela aventura do que pelo dinheiro, visto que o exército português pagava muito mal aos seus soldados.
- A não ser que se tratasse de uma excepção ou de um agente da PIDE!

Olhando para a cara do amigo, incrédulo, diz-lhe:
- Admira-se? Olhe que é uma conclusão plausível; segundo me disseram, eles infiltravam-se em todo o lado, nada lhes escapando.
- É possível; mas ele contou-nos que tivera um grande desgosto de amor; a namorada trocou-o por um emigrante e foi com ele para França. Desejava a morte, pois a sua vida era um autêntico calvário, e por isso procurava-a nas matas africanas. Como não pertencia à minha Companhia só nos encontrámos no mato uma única vez e devido ao seu comportamento, pouco consentâneo com o momento que se estava a viver, logo fiquei com a impressão de que não regulava bem da cabeça.
- Mas o que é que ele fez para o impressionar assim tanto?!
- Bem! Andava alegre, descontraído, cantava, queria que fôssemos com ele à caça, afastando-nos do acampamento, correndo riscos inúteis, até parecia que se encontrava nas serras do continente!
- Devia estar mesmo doido. A cachopa deixou-o de rastos!
- Estava, de certeza! Vou-te contar outro episódio interessante: no navio, e pertencendo à minha Companhia, encontrava-se um fadista já com alguma fama, natural do Porto. Logo arranjaram uma guitarra e ele cantou uns fados. Cantava bem, mas parece que após o regresso se tornou alcoólico, ou qualquer coisa do género, devido a um tremendo desgosto de amor. Como simpatizou comigo, contou-me que namorara uma cantora, também no início de carreira, e que agora é famosa, mas quando ele foi para a Guiné já ela tinha outro. Não suportou a rejeição, é o diabo! As mulheres são volúveis e os homens sofrem as consequências.     
- Nem todas serão, mas eu acerca disso não me posso pronunciar, tenho pouca experiência, e a que possuo ainda não dá para tecer grandes considerações sobre tão melindroso assunto. Uma coisa é certa: ninguém deve casar com uma pessoa de quem não gosta.
- Tens razão. Eu ainda me mantenho solteiro, mas já namorei com algumas raparigas. Não é fácil entendermo-nos.
- Desembarcaram no porto de Bissau?
- Não, não desembarcámos aí, mas sim muito longe. Quem nos dera que isso tivesse acontecido. Lanchas da marinha, semelhantes a ferry-boat, esperavam a Companhia. Descemos do Uíge para as lanchas e depois seguimos rumo a Bolama, antiga capital da Guiné. Pelo caminho os marinheiros ofereceram-nos pão de trigo (casqueiro) com chouriço e um pouco de vinho tinto, que saboreamos com um certo prazer. 

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