ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra nas matas da Guiné-Bissau)
romance histórico - Por Joaquim A. Rocha
10.º capítulo
A VIAGEM
A parte da narrativa relacionada
com a guerra vai agora começar. Viajantes forçados, transportados como animais
de carga, acções de empresas falidas, ei-los a caminho das matas africanas.
Cândido, como sempre, usando um discurso didáctico, esclarece:
- Meu caríssimo amigo: quem nunca
viajou de barco há-de pensar certamente que é um prazer. Isso acontece somente
quando se viaja em paquetes de luxo, com todas as comodidades, poucos
passageiros e muitos serviçais, em águas calmas, com constantes idas a terra.
Mas viajar num navio para quinhentas pessoas e lá dentro serem transportadas
quase duas mil, sem quaisquer confortos…
- Estou a ver… E quanto tempo durou a
viagem?
- Cerca de seis dias, e seis noites:
uma vida! Seis dias de tortura: má disposição, enjoos, vómitos. Ao sairmos a barra,
e mal penetramos no Atlântico, este, talvez por não gostar da nossa intromissão
– ou relembrando épocas passadas – quis aniquilar-nos, provar que era o mais
forte. Atirou com raiva incontida o navio ao ar e bateu-lhe rijo com ondas de
muitos metros de altura!
- Assustou-se…
- Eu, que pela primeira vez navegava,
não tendo em conta aquelas passagens na batela no rio Minho, poucos metros de
largura e com águas calmíssimas, senti um horrendo calafrio: afinal o meu fim –
pensei – estava mais próximo do que
previra. Seria o mar, o imenso mar, e não a terra, o meu leito de morte! Uma
sepultura marítima, como os marinheiros de outros tempos tiveram. E lembrei-me
então de Ulisses, seus homens a serem engolidos pelas profundas águas, pelos
deuses em fúria: «Enquanto olhávamos para
Caribdes com receio da morte, Cila arrebatou-me da nau côncava seis
companheiros, os melhores de braços e os mais valentes. Ao volver os olhos para
a nau ligeira – e para os meus companheiros – só então percebi os pés e os
braços dos que tinham sido arrebatados…»
Henrique tudo ouvia, fascinado,
mas comovidíssimo. «Como era possível, tudo aquilo, ter acontecido? As pessoas
não são gado», pensava. Arriscou uma pergunta, cuja resposta já fora dada, mas
que lhe escapara devido a uma pequena desatenção:
- E o navio, quantas pessoas levava?
- Meu caro amigo, aquele cruzeiro fora
construído para transportar cerca de quinhentas almas, como mais atrás te disse;
como o governo precisava urgentemente de colocar soldados em África, naquela
viagem o Uíge transportava cerca de duas mil criaturas! Duas mil vidas
flutuando ao sabor das ondas e do destino.
- Aposto que não iam lá dentro oficiais
de alta patente…
- Acertaste em cheio. O oficial mais
graduado a bordo era capitão. Os oficiais com patente superior eram transportados
por via aérea: mais cómodo, mais seguro, mais rápido. Não queriam correr
riscos, nem misturar-se com a ralé. Lusos, todos; mas uns mais do que outros!
Como estava longe o tempo em que os generais acompanhavam as suas tropas: Júlio
César, Aníbal, Carlos Magno, Napoleão… Nos tempos hodiernos refugiam-se em
gabinetes atapetados e daí, através de sistemas modernos e sofisticados, complexos,
transmitem as suas ordens, inventam as suas estratégias: puros jogos de computador!
- Não teme que esses comentários, esse
seu modo de pensar, o comprometam? Nunca se sabe o dia de amanhã.
- Não estamos nós num país livre? A
ditadura já acabou e espero que em minha vida a não volte a sentir. Sabes,
Rique, que é quase impossível indivíduos com as minhas características
sobreviverem num regime ditatorial – simplesmente sufocamos.
- Calculo. Eu apenas lhe senti o efeito
pela rama. De qualquer modo tenha cuidado. Comigo está à vontade, pode confiar
cegamente, mas nem todos são seus amigos como eu – há muita maldade no mundo.
- A quem o dizes. Eu sou prudente,
embora por vezes me exceda nas minhas apreciações; mas não posso com injustiças…
- Sugiro-lhe que continue a sua
narrativa, embora goste de ouvir as suas divagações.
- Faço-te a vontade. Escuta, então: nos
dois primeiros dias da viagem não consegui ingerir qualquer espécie de alimento
– o meu delicado estômago não permitia; depois, lentamente, fui-me adaptando ao
baloiçar ininterrupto, pendular, da embarcação. Outros camaradas não o conseguiram.
Logo que chegámos perto de Bissau tiveram de ser conduzidos para o hospital
militar (infelizmente não havia outro em
todo o território, dando-nos de imediato a ideia do que era a província da
Guiné, com o que poderíamos futuramente contar).
- E durante o trajecto passou-se algo
de importante, um episódio que mereça destaque?
- Talvez! A bordo ia um mercenário,
isto é, um soldado voluntário que já tinha feito campanhas em Angola e
Moçambique! Comparado connosco parecia um ancião, devia ter à volta de trinta
anos de idade. Penso que ele iria mais pela aventura do que pelo dinheiro,
visto que o exército português pagava muito mal aos seus soldados.
- A não ser que se tratasse de uma
excepção ou de um agente da PIDE!
Olhando
para a cara do amigo, incrédulo, diz-lhe:
- Admira-se? Olhe que é uma conclusão
plausível; segundo me disseram, eles infiltravam-se em todo o lado, nada lhes
escapando.
- É possível; mas ele contou-nos que
tivera um grande desgosto de amor; a namorada trocou-o por um emigrante e foi
com ele para França. Desejava a morte, pois a sua vida era um autêntico
calvário, e por isso procurava-a nas matas africanas. Como não pertencia à
minha Companhia só nos encontrámos no mato uma única vez e devido ao seu comportamento,
pouco consentâneo com o momento que se estava a viver, logo fiquei com a
impressão de que não regulava bem da cabeça.
- Mas o que é que ele fez para o
impressionar assim tanto?!
- Bem! Andava alegre, descontraído,
cantava, queria que fôssemos com ele à caça, afastando-nos do acampamento,
correndo riscos inúteis, até parecia que se encontrava nas serras do continente!
- Devia estar mesmo doido. A cachopa
deixou-o de rastos!
- Estava, de certeza! Vou-te contar
outro episódio interessante: no navio, e pertencendo à minha Companhia, encontrava-se
um fadista já com alguma fama, natural do Porto. Logo arranjaram uma guitarra e
ele cantou uns fados. Cantava bem, mas parece que após o regresso se tornou
alcoólico, ou qualquer coisa do género, devido a um tremendo desgosto de amor.
Como simpatizou comigo, contou-me que namorara uma cantora, também no início de
carreira, e que agora é famosa, mas quando ele foi para a Guiné já ela tinha
outro. Não suportou a rejeição, é o diabo! As mulheres são volúveis e os homens
sofrem as consequências.
- Nem todas serão, mas eu acerca disso
não me posso pronunciar, tenho pouca experiência, e a que possuo ainda não dá
para tecer grandes considerações sobre tão melindroso assunto. Uma coisa é
certa: ninguém deve casar com uma pessoa de quem não gosta.
- Tens razão. Eu ainda me mantenho
solteiro, mas já namorei com algumas raparigas. Não é fácil entendermo-nos.
- Desembarcaram no porto de Bissau?
- Não, não desembarcámos aí, mas sim
muito longe. Quem nos dera que isso tivesse acontecido. Lanchas da marinha,
semelhantes a ferry-boat, esperavam a Companhia. Descemos do Uíge para as
lanchas e depois seguimos rumo a Bolama, antiga capital da Guiné. Pelo caminho
os marinheiros ofereceram-nos pão de trigo (casqueiro)
com chouriço e um pouco de vinho tinto, que saboreamos com um certo prazer.
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