sábado, 9 de janeiro de 2021

LINA - FILHA DE PÃ

(romance)

Por Joaquim A. Rocha 




17.º Capítulo

  

     Ao volante do carro estava um homem bem-parecido e duas jovens. A filha informou-a:

 

- Aquele é o meu marido; chama-se Artur. As duas meninas são minhas filhas, a Alice e a Clara. Tenho também um filho, o Anselmo, mas não pôde vir; quando chegarmos a casa já o vai conhecer.   

 

     Lina cumprimentou o genro com delicadeza e olhou para as netas: ambas bonitas, bem vestidas. Elas olharam para a ex-prisioneira e cumprimentaram-na:

 

- Olá avó: eu e a Alice estávamos ansiosas por a conhecer.

- Que alegria me dão minhas netinhas, que alegria me dão.

 

     Depois dos cumprimentos arrancaram. Demoraram umas boas três horas de carro a chegar ao seu destino, Condeixa-a-Nova, perto de Coimbra. Artur estacionou o automóvel perto de uma mansão, um Mercedes de cor preta. O palacete tinha uma escadaria, na parede viam-se as armas reais. Uma casa brasonada só podia ser de fidalgos – pensou a Lina. A filha disse-lhe:

 

- Minha mãe: finalmente chegamos. É aqui que a sua filha habita. Estamos a uns escassos quilómetros da cidade de Coimbra, onde eu trabalho: sou professora de línguas na Universidade. A Quinta e a Casa pertencem ao meu marido, herdou-a de seus pais, antigos fidalgos. Ele é engenheiro agrónomo.

 

     Uma das netas interrompeu aquela conversa para dizer:

 

- Avó, avó: venha comigo que lhe vou mostrar os cavalos; um dos potros é só meu, até já lhe dei um nome – Melcarte!

- Lindo nome e linda terra, minha netinha: há muito tempo que lá não vou!  

 

     Lina deixou-se levar pela neta. Um portão enorme dava para a Quinta. Quando entrou nem queria acreditar: inúmeros cavalos pastavam tranquilamente, e mais ao longe podia-se admirar imensas vinhas a estender-se por aqueles terrenos fora. E a dona daquela mansão e quinta era a sua filha! Como fora isso possível? E professora universitária? O que se passara? «Já morri e agora estou num sítio qualquer que me foi destinado» - sussurrava ela, para que ninguém a ouvisse. Estava emocionadíssima. 

 

- Avó: vamos embora; já estou com apetite. As Marias já devem estar a servir o jantar. 

- Vamos netinha, vamos.

 

     Subiram aqueles degraus e entraram no palacete. Lina ficou deslumbrada: candelabros por todo o lado, móveis antigos, armaduras, espadas cruzadas nas gigantescas paredes, quadros belíssimos, espalhados um pouco por todo o lado, corredores enormes que conduziam aos quartos. Aquilo não lhe estava a acontecer. Era impossível. A filha chamou-a:

 

- Minha mãe: venha comigo, vou mostrar-lhe o seu quarto.

 

     Acompanhou a filha. Sentia-se completamente atordoada: viera de cumprir uma série de anos na cadeia e agora traziam-na para o Éden! Olhou para a Lisete e perguntou-lhe:

 

- Não quero parecer tolinha, mas responde a uma dúvida que tenho: eu estou a viver a realidade ou é apenas uma ilusão?

- Mãe, a senhora está aqui comigo, com o seu genro, com os seus netos; isto não é um sonho, é a pura realidade. Depois de algum tempo vai ver que se habitua.

- Então conta-me: como vieste parar a esta terra, a esta mansão?

- Esta localidade chama-se Condeixa-a-Nova. Eu fui trabalhar para um dos Hotéis…

 

     E contou-lhe a história toda, sem omitir nada.

 

- Ah! Agora já começo a entender. O teu pai trouxe-te com ele. O destino, só pode ser o destino. E que é feito dele, do teu pai?

- Mora em Coimbra. Durante muitos anos andou de cidade em cidade. Agora já está aposentado. De vez em quando vem visitar-nos. Dá-se muito bem com o Artur, têm longas conversas os dois, adora passear pela Quinta, na companhia dos netos. É um homem feliz, mas há dois anos faleceu a sua esposa, a quem eu chamava madrinha. Era uma excelente senhora.

- E tem mais filhos?

- Dois homens. Estão casados ambos; gostam muito de mim e eu deles. Prometeram-me passar o natal connosco.

- Minha rica filha: tu bem mereces ser feliz.  

- Todos merecemos, mãe. Agora diga-me: gosta do seu quarto?

- Que luxo filha, que luxo! Nem sei se consigo dormir no meio de tanta coisa boa e bonita. Na prisão…

- Faça por esquecer esses tempos. Eu também já esqueci os tempos de garota – agora a realidade é esta: o passado é para deitar para detrás das costas.   

- Não é fácil esquecer, sobretudo quando se sofreu tanto.

- Faça esse esforço: por mim e pelos seus netos. Promete?

- Vou tentar. Ainda me resta um bocadinho de alegria no meu peito; com a vossa ajuda ainda posso voltar a sorrir.

 

     Foram para a sala de jantar. Aquilo não era uma sala, mas sim um salão! Lisete colocou a mãe a seu lado. Sabia que ela iria ter dificuldades em servir-se, com tantos talheres, tantos copos, tanta “ferramenta” à sua volta. Por outro lado, aquela mesa gigantesca amedrontava-a. Antes de se sentarem agradeceram a Deus aquela fartura, aquele bem-estar. Lisete, vendo a sua progenitora agitada, diz-lhe:

  

- Mãe, não se preocupe: eu estou aqui a seu lado. Como há vários pratos, só se tira um bocadinho de cada. Primeiro as empregadas, as Marias, como lhe chamam, vão servir a sopa. Ponha este guardanapo para não se sujar.  

- Obrigada, filha; sem a tua preciosa ajuda perdia-me no meio deste labirinto.

- Daqui a uns dias já se sentirá à vontade. Os seus netos já nasceram neste ambiente, nós não; mas aprendemos, nada é impossível de aprender, é uma questão de força de vontade, de querer.    

 

     Lina ouvia falar a filha e ficava contemplativa: como fora possível aquela criança tão desamparada na infância estar agora ali, ao lado de um fidalgo, à vontade, como se aquele mundo fosse o dela desde sempre. E a firmeza e sabedoria como ela se exprimia! Alguém a quisera pôr à prova no passado; agora, esse ser poderoso, mas desumano, estava a recompensá-la por tudo aquilo que padecera – era uma espécie de compensação.   

      

    À mesa serviam duas empregadas ainda jovens. As suas fardas, azul e branco, estavam impecáveis. Sorriam para todos, com aqueles dentes brancos e perfeitos, perguntando amiúde aos comensais: «Vossas Excelências precisam de mais qualquer coisa?» Sempre solícitas e atentas. Lisete pediu a uma das serviçais:

 

- Judite: traz mais água, por favor.

- Sim, minha Senhora.

 

     Dali a pouco já o jarro da água estava na mesa. Via-se que eram profissionais. Para os quartos havia mais duas jovens e na cozinha laborava uma excelente cozinheira e uma sua ajudante. Na Quinta havia o feitor e uma data de trabalhadores rurais.

      

     A Lina gostava de passar o seu tempo na Quinta: queria ela tratar das galinhas, dos patos, perus, e outra bicharada, mas a filha dizia-lhe sempre:

 

- Mãe, não faça essas coisas. Não vê a quantidade de gente que há para tratar dessas tarefas? A mãezinha descanse; já trabalhou muito quando era nova.

- Desde os sete anos; nunca me hei-de esquecer desse tempo. Havia miséria, tínhamos muitas vezes de repartir uma sardinha por dois, mas ao fim e ao cabo éramos felizes à nossa maneira. O pior era quando saíamos de casa, sobretudo as raparigas; os rapazes só abandonavam a casa dos pais para irem cumprir o serviço militar ou então quando emigravam. 

- Por falar nisso: havemos de escrever aos meus tios para nos virem visitar. Acha bem?

- Não sei se os meus irmãos me perdoaram, minha filha. Com certeza não vão aceitar o convite.

- Então fazemos uma coisa: no verão vamos passar uma ou duas semanas às Termas; nessa altura vamos visitá-los, de surpresa.

- A ti vão receber de braços abertos; mas quanto a mim tenho imensas dúvidas que isso venha a acontecer.

- Está combinado. Vou falar com o Artur acerca do assunto; se ele concordar vamos a Melcarte – já tenho saudades da nossa terra.

 


 

     O Senhor Doutor Juiz Conselheiro apareceu, certo dia, na Mansão. O motorista parou, foi a correr abrir a porta da viatura ao seu patrão, e depois de tirar as malas de viagem foi arrumar o automóvel na garagem. 

     Abraçou a filha com muito carinho, os netos, cumprimentou o genro com um grande abraço, e depois pôs-se a olhar com alguma curiosidade para a senhora. Aquela figura não lhe era totalmente estranha, mas não se lembrava onde a vira antes. Lina olhou também para ele e conteve-se. Apetecia-lhe abraçá-lo, dizer-lhe que só a ele amara, somente a ele se entregara sem quaisquer reservas. Lisete, notando o embaraço, diz ao pai:

 

- Pai, não se importa de chegar aqui: preciso de falar com o senhor urgentemente.

 

     Pediu desculpa aos outros e deu uns passos em direcção à filha. Esta, de braço dado com o seu progenitor, retirou-se uns metros. Pararam. Ela contou-lhe toda a história, sublinhando a mudança radical de sua mãe.

 

- Sabe o que consta na Penitenciária de Lisboa? Que a minha mãe é santa; já lhe atribuíram alguns milagres! Não é irónico?

- Eu já tive de aplicar muitas penas ao longo da minha carreira, enviei centenas de seres humanos para a prisão. E sabes uma coisa? Todos eles reagiram de maneira diferente! Uns resignaram-se; outros revoltaram-se, jurando vingança, como se eu tivesse a culpa de eles serem como eram – gente má, sem escrúpulos. O ser humano é imprevisível. Eu conheci a tua mãe ainda ela era uma adolescente. Nessa altura não tinha qualquer maldade no seu coração. E eu, leviano, imprudente, transformei-a noutra pessoa. Não sei como vai ser doravante a nossa relação. Vou pedir-lhe perdão, que mais poderei fazer?

 

     Lisete chamou a mãe. Lina hesitou, mas por fim caminhou em direcção aos dois.

 

- Mãe, peço-lhe um imenso favor: o meu pai quer pedir-lhe perdão, mas está com receio de que a senhora não lhe perdoe nunca.

- Filha, por favor, deixa-nos ficar a sós; eu e o teu pai temos muito que conversar.    

 

     Lisete afastou-se. Nunca lhe passara pela cabeça ver um dia os seus pais juntos. O mais certo era não se entenderem. Esperaria com paciência o desfecho daquele diálogo.

      O Juiz olhou de novo para a Lina e disse-lhe:

 

- Nunca imaginaria, sequer, voltar a encontrar-te: fosse na Terra, no Céu ou até no Inferno. O destino prega-nos cada partida!

- Pelos vistos não gostou muito de me ver por aqui; preferia certamente que já tivesse morrido.

- Isso não; nunca desejei a morte a ninguém, muito menos à mãe da nossa filha. Cometi um erro enorme, e para ele sei que não há perdão. Era novo nessa altura, imaturo, e servi-me de ti, como se fosses um brinquedo, uma boneca, qualquer coisa que se podia usar e deitar fora. A minha cegueira, a minha arrogância, impediu-me de reparar o erro; fugi, como um vil cobarde, e tu ficaste à mercê das circunstâncias, do mundo implacável.

- E por causa do Senhor Doutor morreu um jovem inocente.

- Aquele rapaz com quem te casei?

- Sim, esse; morreu afogado. Teve que trabalhar para sustentar a nossa filha, pensando que era dele, e meteu-se no contrabando; um dia a batela tombou e ele, que mal sabia nadar, afogou-se.

- Pobre rapaz; mais um crime na minha conta.

- E um mal nunca vem só: depois disso prejudiquei imensa gente.

- Por minha causa!

- Sim; eu amava-o e por si era capaz de tudo – até de matar. Foi o único amor que eu tive até hoje: nunca mais amei ninguém, apesar de ter dormido com muitos homens.

 

     O Juiz queria falar, mas a garganta não o permitia – estava sufocado. Por fim conseguiu dizer-lhe:

 

- Lina: vou confessar-te um segredo; trago-o comigo há muitos anos, e levá-lo-ia para o jazigo se tu não aparecesses hoje aqui.

- Um segredo? E quer revelar-mo?

- Sim, Lina; só a ti o posso revelar. Eu apaixonei-me por ti. Quando fomos um do outro, eu não vi em ti a criada, a analfabeta, a camponesa. Não: eu vi em ti a criatura mais maravilhosa do mundo. Beijei-te com desejo, com paixão, mas também com amor.

- Então por que fugiu?!

- Preconceitos, Lina, preconceitos. Se eu tivesse casado contigo todos os meus colegas: juízes, advogados, delegados do Procurador da República, ter-se-iam rido de mim, considerar-me-iam um louco, um extravagante, e a minha carreira teria terminado ali.

- Teve vergonha de mim, apesar de me amar, como eu o amava. E depois casou-se!

- Sim, mas não por amor. Foi por mero interesse. A minha noiva era rica, filha de gente importante, o meu estatuto elevou-se.  

- Sacrificou o nosso amor aos interesses materiais.

- Sim, e disso me arrependo. Fingimos que éramos felizes, mas bem no fundo ambos sabíamos que isso não correspondia à verdade, pois ela gostava loucamente dum rapaz humilde, do seu tempo de jovenzinha, e a família nunca permitiu esse namoro. Nasceram dois filhos do nosso casamento e tentamos dar-lhes uma educação primorosa, com muito carinho, a fim de eles nunca se aperceberem que os pais não se amavam.          

- Uma tragédia! E agora está viúvo, disse-me a Lisete. Reside com os seus filhos?

- Vivo só. Os meus filhos estão ambos casados, com cursos superiores, e moram longe de mim, em Lisboa. Fugi de ti e acabei só, para meu castigo.

 

     Retiraram-se. Ainda tinham muito que conversar, imensas perguntas a fazer, mas era melhor terminarem por hoje. Nenhum deles fora violento, não houve qualquer agressividade verbal nas acusações. Ambos compreendiam agora que as decisões tomadas sem ponderação, sem respeito pelos outros, desencadeiam reações em cadeia, um nunca acabar de consequências nefastas. O seu papel agora, tendo em conta a sua idade, seria o de assegurar que os seus netos não viessem a cometer os mesmos erros. Estariam os dois atentos.    

 


 

    O Senhor Doutor Juiz Conselheiro passava agora mais tempo no Solar da filha e do genro. Ia à caça com ele, ali à mata da Quinta, e traziam quase sempre duas ou três lebres, uns coelhos, umas rolas, perdizes, e até uma vez conseguiram matar um javali!

 

- Este bichinho andava-nos a estragar há muito tempo as nossas sementeiras: a comer o nosso milho, batatas, etc. Horta e nabal, ficaram de rastos. Agora seremos nós a comê-lo – diz o engenheiro Artur para o sogro, esfregando as mãos de contente.   

- É um grande bicho, um macho de peso, precisava de muito alimento. Qualquer dia aparecem por aí os filhotes. 

- Estaremos aqui à espera deles; não lhes daremos tréguas.

 

     Dirigiram-se para a adega. As pipas de vinho tinto e branco perfilavam-se como soldados na parada. Pendurados numa trave, com um enorme gancho, aguardando a sua vez de serem devorados, viam-se alguns presuntos. Havia uma mesa com duas canecas e algumas malgas. Artur vira-se para o juiz e desafia-o:

 

- Meu sogro: e se provássemos um branquinho do ano passado? Temos que encetar a pipa e aproveitamos agora o ensejo. Temos pão de milho e centeio, presunto e paio. Que prefere?

- Talvez o presunto. Tem ótimo aspeto. Quando entrei na adega estava sem apetite, mas agora…

 

    Logo a seguir apareceu o feitor. Homem de estatura mediana, de meia-idade, costas largas, bigode retorcido, chapéu na cabeça, que tirou logo que viu o engenheiro e o juiz.

 

- Ora vivam, Suas Senhorias. A petiscar? Como está o vinho? Deve estar excelente, pois o ano correu de feição.

- Senta-te aqui, Jeremias; vem provar o presunto. Deste não há à venda nos estabelecimentos comerciais. E a pinga está de se lhe tirar o chapéu; pergunta aqui ao meu sogro.

- Não podia estar mais de acordo. Sim senhor: estão todos de parabéns, uma perfeição.  

 

     Conversaram de tudo um pouco, até de política! Veio à baila a primeira República, lembraram Paiva Couceiro «aquele grande homem, antes quebrar que torcer, mas sonhador». Nenhum deles era contra o corporativismo de Salazar, mas também não eram a favor. Monárquicos ferrenhos, esperavam pelo regresso da monarquia a Portugal. O feitor, para lhes agradar, dizia:

 

- Nós precisávamos da monarquia, sem ela o país não tem piada nenhuma: deixou de ter vida, parece adormecido.

- Dizes bem, Jeremias; até as touradas deixaram de ter brilho! É um país cinzento. As notícias são censuradas, os espetáculos, os livros, tudo! Só se lê e vê o que os censores querem! Que raio de país! Connosco não se metem, e ainda bem; nós também não lhes fazemos oposição. Ainda sonhamos, há uns anos atrás, que o Doutor Salazar ajudasse os monárquicos a recuperar o regime, mas recuou. Teve medo que nós o expulsássemos de Portugal, ou o mandássemos de novo dar aulas em Coimbra.

- Suas Senhorias acham que esta situação vai durar muito tempo?

- Enquanto o Senhor Doutor Oliveira Salazar viver, dificilmente este regime, nem carne nem peixe, soçobrará – afirma o magistrado. – Depois, sem ele ao leme, será problemática a sua existência. Já se perfilam no palco dois ou três delfins, mas ainda é cedo para dizer quem lhe vai suceder nas rédeas do poder.      

 

     A conversa prolongou-se para além do que seria de esperar, mas o vinho, pão, o presunto e o paio, não os deixavam abandonar aquele local, cuja temperatura oscilava entre os vinte e dois e os vinte e quatro graus, enquanto no exterior rondava os trinta graus.

 


     Lina fazia anos brevemente. A filha queria fazer-lhe uma surpresa. Contactou o rancho folclórico de Santa Marta, um dos mais famosos do país, a fim de abrilhantar a festa. Não podia faltar nada. Os netos andavam eufóricos. Era a primeira vez na sua vida que celebrariam o aniversário da avó. Que prendas iriam oferecer à mãe da sua mãe? Começaram a sondá-la, para verem se descobriam os seus gostos. Ela, porém, esquivava-se a essas frivolidades, dizendo que já estava velhota, agora o que mais desejava era paz e sossego.

     Lisete contactou o pai e falou sobre o assunto:

 

- A minha mãe faz anos o próximo dia vinte e três; estou a pensar dar uma festa aqui na Quinta. Espero que esteja presente, que acha?

- Não podia faltar. E estou cem por cento de acordo com esse evento. Sofreu muito e agora merece que tudo façamos para ela esquecer esse passado terrível. Mas vê lá tu: não sei o que lhe hei-de oferecer!

- Pai: podia dar-lhe uma prenda que ela nunca esqueceria.

- Qual, minha filha?!

- No decorrer da festa pedia-a em casamento.

 

     O Senhor Doutor Juiz Conselheiro ficou extático, a olhar para a filha. Todos os dias lhe passava pela cabeça pedir à Lina que casasse com ele, agora que estava viúvo, sozinho, mas nunca se atrevera. Conversava com ela, lembravam tempos passados, aqueles maravilhosos dias de 1935 e 1936, depois a gravidez, precipitando a saída dele de Melcarte, mas quando chegava o momento do pedido, mudava de conversa. Diz à filha:

 

- Lisete, vou-te confessar uma coisa: eu sempre gostei da tua mãe! Fugi dela devido a malditos preconceitos. Agora, depois de lhe ter causado tanto dano, tanto dissabor, não tenho coragem de lhe solicitar que case comigo. Podia ser mal interpretado, ouvir da sua boca: «Quer redimir-se do mal que outrora me causou? Quer comprar a passagem para a eternidade?» E perguntas do mesmo género.             

- Deixe o caso comigo. Vou falar com ela. Ainda os vou ver de braço dado, rindo, amando-se. Ambos merecem ser felizes.

 

     Lina conversou com a mãe sobre tão melindroso assunto. Às tantas pergunta-lhe:

 

- Aceita? Posso dar a boa nova ao meu pai?

- Para te ser sincera, minha querida filha, isso era o que eu mais queria; sempre o amei, sempre o trouxe no meu pensamento, jamais o esqueci. Porém, hoje somos dois velhos, muita água passou debaixo das pontes, e não sei se o casamento resultaria. Ele disse-te que quer casar comigo?

- Repetiu isso mil vezes; só não teve coragem para lho pedir.  

- Então está bem. Aceito. Mas peço-te: não alardeies por aí essa notícia. Nada de jornais e revistas. Faremos tudo com discrição, com simplicidade. A nossa idade já não permite grandes exposições públicas, grandes festas.

 

     Lisete abraçou a mãe com redobrado carinho. Este sonho de ver os seus pais juntos ia finalmente concretizar-se. Que enorme felicidade. Logo que teve oportunidade, reuniu com o marido e filhos e contou-lhes toda a conversa que tivera com a sua mãe. Eles nem queriam acreditar:

 

- É verdade?! Mas isso é fantástico. Temos que comemorar – disseram todos em uníssono.

 

     Lisete telefonou de imediato a seu pai:

 

- A minha mãe aceita casar consigo. Pode comprar a aliança. Vou preparar tudo. Estou tão feliz.

- E eu, minha adorada filha, e eu.

// continua...

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