LINA - FILHA DE PÃ
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
17.º Capítulo
Ao volante do carro estava um homem bem-parecido e duas jovens. A filha informou-a:
- Aquele é o meu
marido; chama-se Artur. As duas meninas são minhas filhas, a Alice e a Clara.
Tenho também um filho, o Anselmo, mas não pôde vir; quando chegarmos a casa já
o vai conhecer.
Lina cumprimentou o genro com delicadeza e
olhou para as netas: ambas bonitas, bem vestidas. Elas olharam para a ex-prisioneira
e cumprimentaram-na:
- Olá avó: eu e a
Alice estávamos ansiosas por a conhecer.
- Que alegria me
dão minhas netinhas, que alegria me dão.
Depois dos cumprimentos arrancaram. Demoraram
umas boas três horas de carro a chegar ao seu destino, Condeixa-a-Nova, perto
de Coimbra. Artur estacionou o automóvel perto de uma mansão, um Mercedes de
cor preta. O palacete tinha uma escadaria, na parede viam-se as armas reais.
Uma casa brasonada só podia ser de fidalgos – pensou a Lina. A filha disse-lhe:
- Minha mãe:
finalmente chegamos. É aqui que a sua filha habita. Estamos a uns escassos quilómetros
da cidade de Coimbra, onde eu trabalho: sou professora de línguas na
Universidade. A Quinta e a Casa pertencem ao meu marido, herdou-a de seus pais,
antigos fidalgos. Ele é engenheiro agrónomo.
Uma das netas interrompeu aquela conversa
para dizer:
- Avó, avó: venha
comigo que lhe vou mostrar os cavalos; um dos potros é só meu, até já lhe dei
um nome – Melcarte!
- Lindo nome e
linda terra, minha netinha: há muito tempo que lá não vou!
Lina deixou-se levar pela neta. Um portão
enorme dava para a Quinta. Quando entrou nem queria acreditar: inúmeros cavalos
pastavam tranquilamente, e mais ao longe podia-se admirar imensas vinhas a
estender-se por aqueles terrenos fora. E a dona daquela mansão e quinta era a
sua filha! Como fora isso possível? E professora universitária? O que se
passara? «Já morri e agora estou num
sítio qualquer que me foi destinado» - sussurrava ela, para que ninguém a
ouvisse. Estava emocionadíssima.
- Avó: vamos
embora; já estou com apetite. As Marias já devem estar a servir o jantar.
- Vamos netinha,
vamos.
Subiram aqueles degraus e entraram no
palacete. Lina ficou deslumbrada: candelabros por todo o lado, móveis antigos,
armaduras, espadas cruzadas nas gigantescas paredes, quadros belíssimos,
espalhados um pouco por todo o lado, corredores enormes que conduziam aos
quartos. Aquilo não lhe estava a acontecer. Era impossível. A filha chamou-a:
- Minha mãe:
venha comigo, vou mostrar-lhe o seu quarto.
Acompanhou a filha. Sentia-se
completamente atordoada: viera de cumprir uma série de anos na cadeia e agora
traziam-na para o Éden! Olhou para a Lisete e perguntou-lhe:
- Não quero
parecer tolinha, mas responde a uma dúvida que tenho: eu estou a viver a
realidade ou é apenas uma ilusão?
- Mãe, a senhora
está aqui comigo, com o seu genro, com os seus netos; isto não é um sonho, é a
pura realidade. Depois de algum tempo vai ver que se habitua.
- Então conta-me:
como vieste parar a esta terra, a esta mansão?
- Esta localidade
chama-se Condeixa-a-Nova. Eu fui trabalhar para um dos Hotéis…
E contou-lhe a história toda, sem omitir
nada.
- Ah! Agora já
começo a entender. O teu pai trouxe-te com ele. O destino, só pode ser o
destino. E que é feito dele, do teu pai?
- Mora em
Coimbra. Durante muitos anos andou de cidade em cidade. Agora já está
aposentado. De vez em quando vem visitar-nos. Dá-se muito bem com o Artur, têm
longas conversas os dois, adora passear pela Quinta, na companhia dos netos. É
um homem feliz, mas há dois anos faleceu a sua esposa, a quem eu chamava
madrinha. Era uma excelente senhora.
- E tem mais filhos?
- Dois homens.
Estão casados ambos; gostam muito de mim e eu deles. Prometeram-me passar o
natal connosco.
- Minha rica
filha: tu bem mereces ser feliz.
- Todos
merecemos, mãe. Agora diga-me: gosta do seu quarto?
- Que luxo filha,
que luxo! Nem sei se consigo dormir no meio de tanta coisa boa e bonita. Na prisão…
- Faça por
esquecer esses tempos. Eu também já esqueci os tempos de garota – agora a
realidade é esta: o passado é para deitar para detrás das costas.
- Não é fácil
esquecer, sobretudo quando se sofreu tanto.
- Faça esse
esforço: por mim e pelos seus netos. Promete?
- Vou tentar.
Ainda me resta um bocadinho de alegria no meu peito; com a vossa ajuda ainda
posso voltar a sorrir.
Foram para a sala de jantar. Aquilo não
era uma sala, mas sim um salão! Lisete colocou a mãe a seu lado. Sabia que ela
iria ter dificuldades em servir-se, com tantos talheres, tantos copos, tanta “ferramenta”
à sua volta. Por outro lado, aquela mesa gigantesca amedrontava-a. Antes de se
sentarem agradeceram a Deus aquela fartura, aquele bem-estar. Lisete, vendo a
sua progenitora agitada, diz-lhe:
- Mãe, não se
preocupe: eu estou aqui a seu lado. Como há vários pratos, só se tira um
bocadinho de cada. Primeiro as empregadas, as Marias, como lhe chamam, vão
servir a sopa. Ponha este guardanapo para não se sujar.
- Obrigada,
filha; sem a tua preciosa ajuda perdia-me no meio deste labirinto.
- Daqui a uns
dias já se sentirá à vontade. Os seus netos já nasceram neste ambiente, nós
não; mas aprendemos, nada é impossível de aprender, é uma questão de força de
vontade, de querer.
Lina ouvia falar a filha e ficava contemplativa:
como fora possível aquela criança tão desamparada na infância estar agora ali,
ao lado de um fidalgo, à vontade, como se aquele mundo fosse o dela desde
sempre. E a firmeza e sabedoria como ela se exprimia! Alguém a quisera pôr à prova
no passado; agora, esse ser poderoso, mas desumano, estava a recompensá-la por
tudo aquilo que padecera – era uma espécie de compensação.
À mesa serviam duas empregadas ainda
jovens. As suas fardas, azul e branco, estavam impecáveis. Sorriam para todos, com
aqueles dentes brancos e perfeitos, perguntando amiúde aos comensais: «Vossas Excelências precisam de mais qualquer
coisa?» Sempre solícitas e atentas. Lisete pediu a uma das serviçais:
- Judite: traz
mais água, por favor.
- Sim, minha Senhora.
Dali a pouco já o jarro da água estava na
mesa. Via-se que eram profissionais. Para os quartos havia mais duas jovens e
na cozinha laborava uma excelente cozinheira e uma sua ajudante. Na Quinta
havia o feitor e uma data de trabalhadores rurais.
A Lina gostava de passar o seu tempo na
Quinta: queria ela tratar das galinhas, dos patos, perus, e outra bicharada,
mas a filha dizia-lhe sempre:
- Mãe, não faça
essas coisas. Não vê a quantidade de gente que há para tratar dessas tarefas? A
mãezinha descanse; já trabalhou muito quando era nova.
- Desde os sete
anos; nunca me hei-de esquecer desse tempo. Havia miséria, tínhamos muitas
vezes de repartir uma sardinha por dois, mas ao fim e ao cabo éramos felizes à
nossa maneira. O pior era quando saíamos de casa, sobretudo as raparigas; os
rapazes só abandonavam a casa dos pais para irem cumprir o serviço militar ou
então quando emigravam.
- Por falar
nisso: havemos de escrever aos meus tios para nos virem visitar. Acha bem?
- Não sei se os
meus irmãos me perdoaram, minha filha. Com certeza não vão aceitar o convite.
- Então fazemos
uma coisa: no verão vamos passar uma ou duas semanas às Termas; nessa altura
vamos visitá-los, de surpresa.
- A ti vão
receber de braços abertos; mas quanto a mim tenho imensas dúvidas que isso
venha a acontecer.
- Está combinado.
Vou falar com o Artur acerca do assunto; se ele concordar vamos a Melcarte – já
tenho saudades da nossa terra.
O Senhor Doutor Juiz Conselheiro apareceu,
certo dia, na Mansão. O motorista parou, foi a correr abrir a porta da viatura
ao seu patrão, e depois de tirar as malas de viagem foi arrumar o automóvel na
garagem.
Abraçou a filha com muito carinho, os
netos, cumprimentou o genro com um grande abraço, e depois pôs-se a olhar com
alguma curiosidade para a senhora. Aquela figura não lhe era totalmente
estranha, mas não se lembrava onde a vira antes. Lina olhou também para ele e
conteve-se. Apetecia-lhe abraçá-lo, dizer-lhe que só a ele amara, somente a ele
se entregara sem quaisquer reservas. Lisete, notando o embaraço, diz ao pai:
- Pai, não se
importa de chegar aqui: preciso de falar com o senhor urgentemente.
Pediu desculpa aos outros e deu uns passos
em direcção à filha. Esta, de braço dado com o seu progenitor, retirou-se uns
metros. Pararam. Ela contou-lhe toda a história, sublinhando a mudança radical
de sua mãe.
- Sabe o que
consta na Penitenciária de Lisboa? Que a minha mãe é santa; já lhe atribuíram
alguns milagres! Não é irónico?
- Eu já tive de
aplicar muitas penas ao longo da minha carreira, enviei centenas de seres
humanos para a prisão. E sabes uma coisa? Todos eles reagiram de maneira
diferente! Uns resignaram-se; outros revoltaram-se, jurando vingança, como se
eu tivesse a culpa de eles serem como eram – gente má, sem escrúpulos. O ser
humano é imprevisível. Eu conheci a tua mãe ainda ela era uma adolescente.
Nessa altura não tinha qualquer maldade no seu coração. E eu, leviano, imprudente,
transformei-a noutra pessoa. Não sei como vai ser doravante a nossa relação.
Vou pedir-lhe perdão, que mais poderei fazer?
Lisete chamou a mãe. Lina hesitou, mas por
fim caminhou em direcção aos dois.
- Mãe, peço-lhe
um imenso favor: o meu pai quer pedir-lhe perdão, mas está com receio de que a
senhora não lhe perdoe nunca.
- Filha, por
favor, deixa-nos ficar a sós; eu e o teu pai temos muito que conversar.
Lisete afastou-se. Nunca lhe passara pela
cabeça ver um dia os seus pais juntos. O mais certo era não se entenderem.
Esperaria com paciência o desfecho daquele diálogo.
O Juiz olhou de novo para a Lina e
disse-lhe:
- Nunca imaginaria,
sequer, voltar a encontrar-te: fosse na Terra, no Céu ou até no Inferno. O destino
prega-nos cada partida!
- Pelos vistos
não gostou muito de me ver por aqui; preferia certamente que já tivesse
morrido.
- Isso não; nunca
desejei a morte a ninguém, muito menos à mãe da nossa filha. Cometi um erro
enorme, e para ele sei que não há perdão. Era novo nessa altura, imaturo, e servi-me
de ti, como se fosses um brinquedo, uma boneca, qualquer coisa que se podia
usar e deitar fora. A minha cegueira, a minha arrogância, impediu-me de reparar
o erro; fugi, como um vil cobarde, e tu ficaste à mercê das circunstâncias, do
mundo implacável.
- E por causa do
Senhor Doutor morreu um jovem inocente.
- Aquele rapaz
com quem te casei?
- Sim, esse;
morreu afogado. Teve que trabalhar para sustentar a nossa filha, pensando que
era dele, e meteu-se no contrabando; um dia a batela tombou e ele, que mal
sabia nadar, afogou-se.
- Pobre rapaz;
mais um crime na minha conta.
- E um mal nunca
vem só: depois disso prejudiquei imensa gente.
- Por minha
causa!
- Sim; eu amava-o
e por si era capaz de tudo – até de matar. Foi o único amor que eu tive até
hoje: nunca mais amei ninguém, apesar de ter dormido com muitos homens.
O Juiz queria falar, mas a garganta não o
permitia – estava sufocado. Por fim conseguiu dizer-lhe:
- Lina: vou
confessar-te um segredo; trago-o comigo há muitos anos, e levá-lo-ia para o
jazigo se tu não aparecesses hoje aqui.
- Um segredo? E
quer revelar-mo?
- Sim, Lina; só a
ti o posso revelar. Eu apaixonei-me por ti. Quando fomos um do outro, eu não vi
em ti a criada, a analfabeta, a camponesa. Não: eu vi em ti a criatura mais
maravilhosa do mundo. Beijei-te com desejo, com paixão, mas também com amor.
- Então por que
fugiu?!
- Preconceitos,
Lina, preconceitos. Se eu tivesse casado contigo todos os meus colegas: juízes,
advogados, delegados do Procurador da República, ter-se-iam rido de mim, considerar-me-iam
um louco, um extravagante, e a minha carreira teria terminado ali.
- Teve vergonha
de mim, apesar de me amar, como eu o amava. E depois casou-se!
- Sim, mas não
por amor. Foi por mero interesse. A minha noiva era rica, filha de gente
importante, o meu estatuto elevou-se.
- Sacrificou o nosso amor aos interesses
materiais.
- Sim, e disso me
arrependo. Fingimos que éramos felizes, mas bem no fundo ambos sabíamos que
isso não correspondia à verdade, pois ela gostava loucamente dum rapaz humilde,
do seu tempo de jovenzinha, e a família nunca permitiu esse namoro. Nasceram
dois filhos do nosso casamento e tentamos dar-lhes uma educação primorosa, com
muito carinho, a fim de eles nunca se aperceberem que os pais não se amavam.
- Uma tragédia! E
agora está viúvo, disse-me a Lisete. Reside com os seus filhos?
- Vivo só. Os
meus filhos estão ambos casados, com cursos superiores, e moram longe de mim,
em Lisboa. Fugi de ti e acabei só, para meu castigo.
Retiraram-se. Ainda tinham muito que
conversar, imensas perguntas a fazer, mas era melhor terminarem por hoje.
Nenhum deles fora violento, não houve qualquer agressividade verbal nas
acusações. Ambos compreendiam agora que as decisões tomadas sem ponderação, sem
respeito pelos outros, desencadeiam reações em cadeia, um nunca acabar de
consequências nefastas. O seu papel agora, tendo em conta a sua idade, seria o
de assegurar que os seus netos não viessem a cometer os mesmos erros. Estariam
os dois atentos.
O Senhor Doutor Juiz Conselheiro passava
agora mais tempo no Solar da filha e do genro. Ia à caça com ele, ali à mata da
Quinta, e traziam quase sempre duas ou três lebres, uns coelhos, umas rolas, perdizes,
e até uma vez conseguiram matar um javali!
- Este bichinho andava-nos
a estragar há muito tempo as nossas sementeiras: a comer o nosso milho, batatas,
etc. Horta e nabal, ficaram de rastos. Agora seremos nós a comê-lo – diz o
engenheiro Artur para o sogro, esfregando as mãos de contente.
- É um grande
bicho, um macho de peso, precisava de muito alimento. Qualquer dia aparecem por
aí os filhotes.
- Estaremos aqui
à espera deles; não lhes daremos tréguas.
Dirigiram-se
para a adega. As pipas de vinho tinto e branco perfilavam-se como soldados na
parada. Pendurados numa trave, com um enorme gancho, aguardando a sua vez de
serem devorados, viam-se alguns presuntos. Havia uma mesa com duas canecas e
algumas malgas. Artur vira-se para o juiz e desafia-o:
- Meu sogro: e se
provássemos um branquinho do ano passado? Temos que encetar a pipa e
aproveitamos agora o ensejo. Temos pão de milho e centeio, presunto e paio. Que
prefere?
- Talvez o
presunto. Tem ótimo aspeto. Quando entrei na adega estava sem apetite, mas
agora…
Logo a seguir apareceu o feitor. Homem de
estatura mediana, de meia-idade, costas largas, bigode retorcido, chapéu na
cabeça, que tirou logo que viu o engenheiro e o juiz.
- Ora vivam, Suas
Senhorias. A petiscar? Como está o vinho? Deve estar excelente, pois o ano correu
de feição.
- Senta-te aqui,
Jeremias; vem provar o presunto. Deste não há à venda nos estabelecimentos
comerciais. E a pinga está de se lhe tirar o chapéu; pergunta aqui ao meu sogro.
- Não podia estar
mais de acordo. Sim senhor: estão todos de parabéns, uma perfeição.
Conversaram de tudo um pouco, até de
política! Veio à baila a primeira República, lembraram Paiva Couceiro «aquele grande homem, antes quebrar que
torcer, mas sonhador». Nenhum deles era contra o corporativismo de Salazar,
mas também não eram a favor. Monárquicos ferrenhos, esperavam pelo regresso da
monarquia a Portugal. O feitor, para lhes agradar, dizia:
- Nós
precisávamos da monarquia, sem ela o país não tem piada nenhuma: deixou de ter
vida, parece adormecido.
- Dizes bem,
Jeremias; até as touradas deixaram de ter brilho! É um país cinzento. As
notícias são censuradas, os espetáculos, os livros, tudo! Só se lê e vê o que
os censores querem! Que raio de país! Connosco não se metem, e ainda bem; nós
também não lhes fazemos oposição. Ainda sonhamos, há uns anos atrás, que o Doutor
Salazar ajudasse os monárquicos a recuperar o regime, mas recuou. Teve medo que
nós o expulsássemos de Portugal, ou o mandássemos de novo dar aulas em Coimbra.
- Suas Senhorias
acham que esta situação vai durar muito tempo?
- Enquanto o Senhor
Doutor Oliveira Salazar viver, dificilmente este regime, nem carne nem peixe,
soçobrará – afirma o magistrado. –
Depois, sem ele ao leme, será problemática a sua existência. Já se perfilam no
palco dois ou três delfins, mas ainda é cedo para dizer quem lhe vai suceder
nas rédeas do poder.
A conversa prolongou-se para além do que
seria de esperar, mas o vinho, pão, o presunto e o paio, não os deixavam
abandonar aquele local, cuja temperatura oscilava entre os vinte e dois e os
vinte e quatro graus, enquanto no exterior rondava os trinta graus.
Lina fazia anos brevemente. A filha queria
fazer-lhe uma surpresa. Contactou o rancho folclórico de Santa Marta, um dos
mais famosos do país, a fim de abrilhantar a festa. Não podia faltar nada. Os
netos andavam eufóricos. Era a primeira vez na sua vida que celebrariam o
aniversário da avó. Que prendas iriam oferecer à mãe da sua mãe? Começaram a
sondá-la, para verem se descobriam os seus gostos. Ela, porém, esquivava-se a
essas frivolidades, dizendo que já estava velhota, agora o que mais desejava
era paz e sossego.
Lisete contactou o pai e falou sobre o
assunto:
- A minha mãe faz
anos o próximo dia vinte e três; estou a pensar dar uma festa aqui na Quinta.
Espero que esteja presente, que acha?
- Não podia
faltar. E estou cem por cento de acordo com esse evento. Sofreu muito e agora
merece que tudo façamos para ela esquecer esse passado terrível. Mas vê lá tu:
não sei o que lhe hei-de oferecer!
- Pai: podia
dar-lhe uma prenda que ela nunca esqueceria.
- Qual, minha
filha?!
- No decorrer da
festa pedia-a em casamento.
O Senhor Doutor Juiz Conselheiro ficou extático,
a olhar para a filha. Todos os dias lhe passava pela cabeça pedir à Lina que
casasse com ele, agora que estava viúvo, sozinho, mas nunca se atrevera.
Conversava com ela, lembravam tempos passados, aqueles maravilhosos dias de
1935 e 1936, depois a gravidez, precipitando a saída dele de Melcarte, mas
quando chegava o momento do pedido, mudava de conversa. Diz à filha:
- Lisete, vou-te
confessar uma coisa: eu sempre gostei da tua mãe! Fugi dela devido a malditos
preconceitos. Agora, depois de lhe ter causado tanto dano, tanto dissabor, não
tenho coragem de lhe solicitar que case comigo. Podia ser mal interpretado,
ouvir da sua boca: «Quer redimir-se do
mal que outrora me causou? Quer comprar a passagem para a eternidade?» E
perguntas do mesmo género.
- Deixe o caso
comigo. Vou falar com ela. Ainda os vou ver de braço dado, rindo, amando-se.
Ambos merecem ser felizes.
Lina conversou com a mãe sobre tão
melindroso assunto. Às tantas pergunta-lhe:
- Aceita? Posso
dar a boa nova ao meu pai?
- Para te ser
sincera, minha querida filha, isso era o que eu mais queria; sempre o amei,
sempre o trouxe no meu pensamento, jamais o esqueci. Porém, hoje somos dois
velhos, muita água passou debaixo das pontes, e não sei se o casamento
resultaria. Ele disse-te que quer casar comigo?
- Repetiu isso
mil vezes; só não teve coragem para lho pedir.
- Então está bem.
Aceito. Mas peço-te: não alardeies por aí essa notícia. Nada de jornais e
revistas. Faremos tudo com discrição, com simplicidade. A nossa idade já não
permite grandes exposições públicas, grandes festas.
Lisete abraçou a mãe com redobrado
carinho. Este sonho de ver os seus pais juntos ia finalmente concretizar-se.
Que enorme felicidade. Logo que teve oportunidade, reuniu com o marido e filhos
e contou-lhes toda a conversa que tivera com a sua mãe. Eles nem queriam
acreditar:
- É verdade?! Mas
isso é fantástico. Temos que comemorar – disseram
todos em uníssono.
Lisete telefonou de imediato a seu pai:
- A minha mãe aceita
casar consigo. Pode comprar a aliança. Vou preparar tudo. Estou tão feliz.
- E eu, minha
adorada filha, e eu.
// continua...
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