ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
// continuação...
HISTÓRIA SEM AGÁ
Nos finais de 2004 surgiu nos quiosques de
todo o país o primeiro volume de uma obra “monumental”, com uma encadernação de
boa qualidade, que por sinal suportava o dobro das páginas, e com um título
sugestivo: «História das Freguesias e Concelhos de Portugal». A iniciativa
deve-se ao Jornal de Notícias. A introdução ficou a cargo do professor José
Hermano Saraiva, especialista na divulgação, divagando sobre quase todas as
coisas relativas à ciência histórica mas, para mim, pouco credível como
historiador. Foram responsáveis pelo texto: Hélder Bastos e Marta Freitas (edição); Ana Ferreira, Liliana Marques,
Margarida Santos, Maria José Brites, Natércia Ribeiro, Rita Machado, e Sónia
Resende. O Doutor Saraiva vai colher diversas informações a Alexandre Herculano
e a Gama Barros, entre outros, historiadores do século XIX, investigadores
sérios, mas em alguns passos já corrigidos. Apoderando-se do enorme
conhecimento daqueles sábios logo aí debita o seu saber enciclopédico, fruto de
muitas leituras, mas de pouca pesquisa.
O autor e as autoras do texto servem-se do
manancial bibliográfico ao seu dispor, mais comercial do que científico, para
ao longo de mais de duas mil páginas tentarem colocar no papel a história de
todos os nossos concelhos e freguesias. Quanto a mim falharam esse propósito. E
mais: dos milhares de lugares que compõem as freguesias nada se diz! Isso implicaria
com certeza mais trabalho e mais tempo.
Em Abril de 2005 foi posto à venda o
vigésimo e último volume. Eu comprei-os todos – para alguma coisa hão-de servir.
Como não posso pronunciar-me sobre todos os concelhos, pelo menos vou referir-me
àquele que melhor conheço: Melgaço. Escrever em termos históricos sobre ele não
é fácil, e sei do que estou a falar, pois ando quase há vinte anos a estudá-lo;
e, por isso, as senhoras e senhores do JN escreveram meia dúzia de banalidades,
e pasme-se: nem o somatório das áreas das freguesias coincide com a área total!
Quanto à geografia começaram por afirmar que se trata de um concelho
montanhoso, sendo a realidade algo diferente, pois 33% é zona baixa, perto do
rio Minho, onde se produz o famoso alvarinho. Dizem também que é uma região
agrícola – ainda estão nos anos sessenta do século XX; hoje é vinícola (até espumante se produz em Melgaço, e bagaceira alvarinha,
além de excelentes brancos e tintos),
industrial (não conhecem Penso, certamente – e o
turismo?) e de serviços e comércio (ainda há pouco tempo abriu as portas em Melgaço uma grande
superfície), além de se produzir fumeiro e presunto
(todos os anos há na sede do concelho
uma festa promocional a esses produtos), a
atividade da pesca – quem não ouviu falar nas lampreias, salmão, sáveis, e
trutas, do rio Minho e seus afluentes (embora
em nossos dias em pequena quantidade, por causa das barragens galegas)?
Mencionam o topónimo Melgaço, baseados em
atoardas antigas, como tendo origem nas palavras mellicaceus (terra abundante em mel) e
Melgaecus. Santa ignorância! Se as senhoras e os senhores do Jornal de Notícias
soubessem que Melgaço teve apenas oito freguesias até à reforma administrativa
de 1855 e que o mel que aí se produz tem origem nas freguesias anexadas nessa
altura, as chamadas freguesias do monte, não escreveriam disparates. Quanto ao
segundo termo, Melgaecus, existiu de facto um guerreiro com esse nome, mas nada
prova que dele tenha derivado o nome Melgaço; o mais provável é ter origem no
deus fenício Melkart, divindade que os fenícios adoravam perto dos rios, nos
morros, mais ou menos a cem metros de altitude em relação ao nível do mar, o
que corresponde exatamente à sede do concelho, no local onde se ergueu séculos
depois a torre de menagem e se construiu o castelo. Hoje está provado que esse
povo asiático andou pelo Alto Minho e aqui deixou a sua influência. É uma
questão de tempo; os arqueólogos irão certamente descobrir isso mesmo. Não nos
esqueçamos que Málaga deriva de Melkart.
Quanto às freguesias, que horror! Metem
tudo no mesmo saco, não tendo em conta que Castro Laboreiro foi um concelho até
Outubro de 1855, que Fiães e Paderne foram coutos, governados pelos monges dos
respetivos mosteiros, que Alvaredo, Cousso, Cubalhão, Gave, Lamas de Mouro,
Parada do Monte e Penso pertenciam ao extinto concelho de Valadares. As freguesias
que constituíam o concelho de Melgaço até meados do século XIX foram as
seguintes: Chaviães, Cristóval, Paços, Prado, Remoães, Rouças, São Paio e Vila
(Santa Maria da Porta).
Também falam dum hipotético castelo
fundado pelos mouros no século IX, destruído pelos cristãos aquando da reconquista.
E as provas, onde estão? Dizem que «a
ocupação humana do território de Melgaço é bastante remota», e apresentam como
exemplo dólmenes e pinturas rupestres de Castro Laboreiro! Sabem do que falam?!
Se lessem a História de Portugal dirigida pelo Professor João Medina, ou a
História de Portugal coordenada pelo Professor José Matoso, entre outras, logo
aprenderiam que no território primitivo de Melgaço existem indícios de vida
desde pelo menos há oitenta mil anos! Castro Laboreiro deve ter sido habitado
muito mais tarde, quando algumas tribos europeias para lá fugiram, escorraçadas
por tribos mais poderosas e aguerridas. Por essa razão é que por lá se vêem
loiros e morenos, significando isso que as origens dessas etnias são
diferentes.
Quanto ao foral atribuído a Melgaço pelo
nosso primeiro rei não andam bem informados as senhoras e os senhores do Jornal
de Notícias. Desconhecem obviamente que a data de 1181, na leitura de Alexandre
Herculano, foi posteriormente retificada para 1183, ou mesmo para depois deste
ano, tendo em conta que algumas assinaturas inseridas no documento são de
pessoas que apenas tomaram posse dos respetivos cargos após esta última data (consultem Rui Pinto de Azevedo - «Documentos Medievais
Portugueses», volume I – 475, e vejam se não tenho razão).
E por que dizem que Afonso Henriques «doou a Melgaço a aldeia de Chaviães»,
quando no foral se pode ler que ele doou a metade, porque a outra metade, não
sendo reguenga, isto é, propriedade do rei, não a podia doar? Apresentam D.
Pedro Pires, prior do mosteiro de Longos Vales, como o empreiteiro do castelo
Melgaço. Erro grosseiro: esse abade apenas custeou alguns lanços de muro, ou
muralha, por contrapartidas várias que o rei lhe concedeu. Melgaço não
esqueceria, contudo, esse religioso: hoje existe na vila, na zona histórica, a
Viela D. Pedro Pires.
*
O padre Manuel António Bernardo “Pintor”,
nascido em Castro Laboreiro a 21/12/1911 e falecido em 1996, pároco de Riba de
Mouro, Monção, durante muitos anos, estudioso da história do Alto Minho, deixou
gravado no seu livro Melgaço Medieval:
«Vem uma pessoa por esse Portugal acima,
chega ao Minho onde a pátria tem as raízes, vê seus panoramas, admira suas
belezas, ouve duas coisas, toma nota desta ou daquela tradição, vai por aí
abaixo, lê umas linhas da Corografia
Portuguesa, do padre Carvalho da Costa, ou algumas páginas do Portugal Antigo e Moderno, de Pinho
Leal, e vá de traçar a história desta ou daquela terra. Para fazer disto não
precisamos que venha ninguém de fora. Também há em nossa terra e sobejam.
Escrever história é qualquer coisa de difícil quando se queira fazê-lo com o
devido critério de responsabilidade.»
Quem não estará de acordo com aquela
asserção? Na página 86, volume 10, da sobredita História das Freguesias e
Concelhos de Portugal, os “historiadores” do JN escreveram: «Num cerco que durou dois meses,
notabilizou-se a melgacense Inês Negra, que venceu em duelo uma mulher sua
conterrânea, a renegada, partidária de Castela. Com a vitória de Inês Negra, os
castelhanos abandonaram Melgaço…» Nunca tantas asneiras foram escritas em
tão poucas palavras! Não leram com certeza Fernão Lopes, nascido por volta de
1380, nem sequer Duarte Nunes de Leão, nascido muitos anos depois, no século
XVI; se o tivessem feito não exibiriam em público estes disparates. Em primeiro
lugar os cronistas, na sua «Crónica de D. João I», dizem-nos claramente que o
rei se apoderou do castelo de Melgaço em 1388 pelas armas, depois de um cerco
constante e exaustivo. Mencionam de leve, e certamente para tomarem fôlego a
fim de escreverem o que era essencial, que duas mulheres, uma do arraial e a
outra de dentro das muralhas, num dos intervalos das renhidas lutas, andaram
aos cabelos e na peleja, ou escaramuça, entre elas, ganhou a do arraial. Não
revelam seus nomes, nem sequer dizem que essas mulheres tiveram a mínima
importância na conquista da praça de guerra. Nestas batalhas da idade média
existe sempre uma estória de mulheres: em Monção é a Deuladeu Martins, em
Aljubarrota é a padeira, etc. Será que tiveram existência real, física, essas
criaturas? Quanto à Inês Negra sou da opinião de que na verdade não existiu.
Vejamos: o arraial era composto pelos militares, pelas mulheres que tratavam da
roupa, pelos cozinheiros ou cozinheiras, pelos carregadores, por algumas esposas
dos soldados, pelas rameiras…, enfim, por um número incalculável de gente, que
depois da vitória, caso se verificasse, saqueavam as vilas e as cidades
impiedosamente. Que aí aparecesse uma Joana D’Arc disposta a lutar contra o
usurpador castelhano, tudo bem; mas nessa altura o sexo feminino não desempenhava
esse papel – a guerra era exclusivamente para os homens. E os defensores da
praça, os sitiados, abririam uma das portas do castelo para deixarem sair por
ela uma mulher a fim de ir lutar com a sua inimiga?! E no caso de perder, eles,
defensores da praça, pegavam na trouxa e punham-se a andar para o reino de Castela?
Balelas! Tudo isso não passa de uma lenda, patriótica, muito bem escrita pelo
conde de Sabugosa no seu livro Neves de
Antanho, no qual atribui a uma, a do arraial, o nome de Inês e à outra, por
desprezo, chama-lhe “arrenegada”.
Na referida página 86, volume 10,
escreveram: «… durante as invasões
francesas, quando Junot invadiu Portugal pelo norte, Melgaço foi a primeira
praça de armas a revoltar-se e a aclamar o príncipe regente D. João VI, em 1808.»
Quem distraidamente ler isto vai pensar logo: «a vila de Melgaço foi ocupada pelos franceses.» Os ditos nunca
puseram os pés em Melgaço, embora andassem por lá perto, na outra margem do rio,
isto é, na Galiza. Os pseudo historiadores do JN antes de escreverem deveriam ter
lido Melgaço e as Invasões Francesas,
do melgacense Dr. Augusto César Esteves. Aí se diz que - neste concelho raiano -
nenhum soldado francês meteu a sua bota, sobretudo porque o rio Minho, com
muito mais caudal do que agora, o impediu. Podiam ter atravessado no pequeno rio
Trancoso, em São Gregório, mas que importância estratégica tinha para o
exército francês o nosso território? Tratava-se na altura de uma vila rural,
estagnada, sob o domínio espiritual da igreja católica, sem quaisquer ambições,
sem defesa militar. Os napoleónicos, caso o desejassem, ter-se-iam apoderado de
Melgaço sem gastarem uma única bala. Se eles soubessem que no mosteiro de Fiães
havia bom presunto, certamente que dariam lá um pulo para o comer! As
autoridades melgacenses, caso do juíz de fora, entre outros, e alguns
patriotas, logo que se aperceberam que o perigo tinha passado, mandaram tocar
os sinos e puseram a bandeira nacional no castelo, gritando a plenos pulmões
contra a presença do exército francês em Portugal. Duvido que os invasores
tenham tomado conhecimento do facto! Se os ingleses não tivessem vindo
ajudar-nos, por interesse deles obviamente, ainda hoje Portugal continental
estaria nas mãos dos francos.
Artigo publicado no Fronteira Notícias n.º 11, de 9/5/2005, e
número 12, de 10/6/2005.
// continua...
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