quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha




// continuação...


 HISTÓRIA SEM AGÁ

  

     Nos finais de 2004 surgiu nos quiosques de todo o país o primeiro volume de uma obra “monumental”, com uma encadernação de boa qualidade, que por sinal suportava o dobro das páginas, e com um título sugestivo: «História das Freguesias e Concelhos de Portugal». A iniciativa deve-se ao Jornal de Notícias. A introdução ficou a cargo do professor José Hermano Saraiva, especialista na divulgação, divagando sobre quase todas as coisas relativas à ciência histórica mas, para mim, pouco credível como historiador. Foram responsáveis pelo texto: Hélder Bastos e Marta Freitas (edição); Ana Ferreira, Liliana Marques, Margarida Santos, Maria José Brites, Natércia Ribeiro, Rita Machado, e Sónia Resende. O Doutor Saraiva vai colher diversas informações a Alexandre Herculano e a Gama Barros, entre outros, historiadores do século XIX, investigadores sérios, mas em alguns passos já corrigidos. Apoderando-se do enorme conhecimento daqueles sábios logo aí debita o seu saber enciclopédico, fruto de muitas leituras, mas de pouca pesquisa.

     O autor e as autoras do texto servem-se do manancial bibliográfico ao seu dispor, mais comercial do que científico, para ao longo de mais de duas mil páginas tentarem colocar no papel a história de todos os nossos concelhos e freguesias. Quanto a mim falharam esse propósito. E mais: dos milhares de lugares que compõem as freguesias nada se diz! Isso implicaria com certeza mais trabalho e mais tempo.

     Em Abril de 2005 foi posto à venda o vigésimo e último volume. Eu comprei-os todos – para alguma coisa hão-de servir. Como não posso pronunciar-me sobre todos os concelhos, pelo menos vou referir-me àquele que melhor conheço: Melgaço. Escrever em termos históricos sobre ele não é fácil, e sei do que estou a falar, pois ando quase há vinte anos a estudá-lo; e, por isso, as senhoras e senhores do JN escreveram meia dúzia de banalidades, e pasme-se: nem o somatório das áreas das freguesias coincide com a área total! Quanto à geografia começaram por afirmar que se trata de um concelho montanhoso, sendo a realidade algo diferente, pois 33% é zona baixa, perto do rio Minho, onde se produz o famoso alvarinho. Dizem também que é uma região agrícola – ainda estão nos anos sessenta do século XX; hoje é vinícola (até espumante se produz em Melgaço, e bagaceira alvarinha, além de excelentes brancos e tintos), industrial (não conhecem Penso, certamente – e o turismo?) e de serviços e comércio (ainda há pouco tempo abriu as portas em Melgaço uma grande superfície), além de se produzir fumeiro e presunto (todos os anos há na sede do concelho uma festa promocional a esses produtos), a atividade da pesca – quem não ouviu falar nas lampreias, salmão, sáveis, e trutas, do rio Minho e seus afluentes (embora em nossos dias em pequena quantidade, por causa das barragens galegas)?

     Mencionam o topónimo Melgaço, baseados em atoardas antigas, como tendo origem nas palavras mellicaceus (terra abundante em mel) e Melgaecus. Santa ignorância! Se as senhoras e os senhores do Jornal de Notícias soubessem que Melgaço teve apenas oito freguesias até à reforma administrativa de 1855 e que o mel que aí se produz tem origem nas freguesias anexadas nessa altura, as chamadas freguesias do monte, não escreveriam disparates. Quanto ao segundo termo, Melgaecus, existiu de facto um guerreiro com esse nome, mas nada prova que dele tenha derivado o nome Melgaço; o mais provável é ter origem no deus fenício Melkart, divindade que os fenícios adoravam perto dos rios, nos morros, mais ou menos a cem metros de altitude em relação ao nível do mar, o que corresponde exatamente à sede do concelho, no local onde se ergueu séculos depois a torre de menagem e se construiu o castelo. Hoje está provado que esse povo asiático andou pelo Alto Minho e aqui deixou a sua influência. É uma questão de tempo; os arqueólogos irão certamente descobrir isso mesmo. Não nos esqueçamos que Málaga deriva de Melkart.

     Quanto às freguesias, que horror! Metem tudo no mesmo saco, não tendo em conta que Castro Laboreiro foi um concelho até Outubro de 1855, que Fiães e Paderne foram coutos, governados pelos monges dos respetivos mosteiros, que Alvaredo, Cousso, Cubalhão, Gave, Lamas de Mouro, Parada do Monte e Penso pertenciam ao extinto concelho de Valadares. As freguesias que constituíam o concelho de Melgaço até meados do século XIX foram as seguintes: Chaviães, Cristóval, Paços, Prado, Remoães, Rouças, São Paio e Vila (Santa Maria da Porta).

     Também falam dum hipotético castelo fundado pelos mouros no século IX, destruído pelos cristãos aquando da reconquista. E as provas, onde estão? Dizem que «a ocupação humana do território de Melgaço é bastante remota», e apresentam como exemplo dólmenes e pinturas rupestres de Castro Laboreiro! Sabem do que falam?! Se lessem a História de Portugal dirigida pelo Professor João Medina, ou a História de Portugal coordenada pelo Professor José Matoso, entre outras, logo aprenderiam que no território primitivo de Melgaço existem indícios de vida desde pelo menos há oitenta mil anos! Castro Laboreiro deve ter sido habitado muito mais tarde, quando algumas tribos europeias para lá fugiram, escorraçadas por tribos mais poderosas e aguerridas. Por essa razão é que por lá se vêem loiros e morenos, significando isso que as origens dessas etnias são diferentes.

     Quanto ao foral atribuído a Melgaço pelo nosso primeiro rei não andam bem informados as senhoras e os senhores do Jornal de Notícias. Desconhecem obviamente que a data de 1181, na leitura de Alexandre Herculano, foi posteriormente retificada para 1183, ou mesmo para depois deste ano, tendo em conta que algumas assinaturas inseridas no documento são de pessoas que apenas tomaram posse dos respetivos cargos após esta última data (consultem Rui Pinto de Azevedo - «Documentos Medievais Portugueses», volume I – 475, e vejam se não tenho razão).

     E por que dizem que Afonso Henriques «doou a Melgaço a aldeia de Chaviães», quando no foral se pode ler que ele doou a metade, porque a outra metade, não sendo reguenga, isto é, propriedade do rei, não a podia doar? Apresentam D. Pedro Pires, prior do mosteiro de Longos Vales, como o empreiteiro do castelo Melgaço. Erro grosseiro: esse abade apenas custeou alguns lanços de muro, ou muralha, por contrapartidas várias que o rei lhe concedeu. Melgaço não esqueceria, contudo, esse religioso: hoje existe na vila, na zona histórica, a Viela D. Pedro Pires.

 

*

 

     O padre Manuel António Bernardo “Pintor”, nascido em Castro Laboreiro a 21/12/1911 e falecido em 1996, pároco de Riba de Mouro, Monção, durante muitos anos, estudioso da história do Alto Minho, deixou gravado no seu livro Melgaço Medieval: «Vem uma pessoa por esse Portugal acima, chega ao Minho onde a pátria tem as raízes, vê seus panoramas, admira suas belezas, ouve duas coisas, toma nota desta ou daquela tradição, vai por aí abaixo, lê umas linhas da Corografia Portuguesa, do padre Carvalho da Costa, ou algumas páginas do Portugal Antigo e Moderno, de Pinho Leal, e vá de traçar a história desta ou daquela terra. Para fazer disto não precisamos que venha ninguém de fora. Também há em nossa terra e sobejam. Escrever história é qualquer coisa de difícil quando se queira fazê-lo com o devido critério de responsabilidade      

     Quem não estará de acordo com aquela asserção? Na página 86, volume 10, da sobredita História das Freguesias e Concelhos de Portugal, os “historiadores” do JN escreveram: «Num cerco que durou dois meses, notabilizou-se a melgacense Inês Negra, que venceu em duelo uma mulher sua conterrânea, a renegada, partidária de Castela. Com a vitória de Inês Negra, os castelhanos abandonaram Melgaço…» Nunca tantas asneiras foram escritas em tão poucas palavras! Não leram com certeza Fernão Lopes, nascido por volta de 1380, nem sequer Duarte Nunes de Leão, nascido muitos anos depois, no século XVI; se o tivessem feito não exibiriam em público estes disparates. Em primeiro lugar os cronistas, na sua «Crónica de D. João I», dizem-nos claramente que o rei se apoderou do castelo de Melgaço em 1388 pelas armas, depois de um cerco constante e exaustivo. Mencionam de leve, e certamente para tomarem fôlego a fim de escreverem o que era essencial, que duas mulheres, uma do arraial e a outra de dentro das muralhas, num dos intervalos das renhidas lutas, andaram aos cabelos e na peleja, ou escaramuça, entre elas, ganhou a do arraial. Não revelam seus nomes, nem sequer dizem que essas mulheres tiveram a mínima importância na conquista da praça de guerra. Nestas batalhas da idade média existe sempre uma estória de mulheres: em Monção é a Deuladeu Martins, em Aljubarrota é a padeira, etc. Será que tiveram existência real, física, essas criaturas? Quanto à Inês Negra sou da opinião de que na verdade não existiu. Vejamos: o arraial era composto pelos militares, pelas mulheres que tratavam da roupa, pelos cozinheiros ou cozinheiras, pelos carregadores, por algumas esposas dos soldados, pelas rameiras…, enfim, por um número incalculável de gente, que depois da vitória, caso se verificasse, saqueavam as vilas e as cidades impiedosamente. Que aí aparecesse uma Joana D’Arc disposta a lutar contra o usurpador castelhano, tudo bem; mas nessa altura o sexo feminino não desempenhava esse papel – a guerra era exclusivamente para os homens. E os defensores da praça, os sitiados, abririam uma das portas do castelo para deixarem sair por ela uma mulher a fim de ir lutar com a sua inimiga?! E no caso de perder, eles, defensores da praça, pegavam na trouxa e punham-se a andar para o reino de Castela? Balelas! Tudo isso não passa de uma lenda, patriótica, muito bem escrita pelo conde de Sabugosa no seu livro Neves de Antanho, no qual atribui a uma, a do arraial, o nome de Inês e à outra, por desprezo, chama-lhe “arrenegada”.

     Na referida página 86, volume 10, escreveram: «… durante as invasões francesas, quando Junot invadiu Portugal pelo norte, Melgaço foi a primeira praça de armas a revoltar-se e a aclamar o príncipe regente D. João VI, em 1808.» Quem distraidamente ler isto vai pensar logo: «a vila de Melgaço foi ocupada pelos franceses.» Os ditos nunca puseram os pés em Melgaço, embora andassem por lá perto, na outra margem do rio, isto é, na Galiza. Os pseudo historiadores do JN antes de escreverem deveriam ter lido Melgaço e as Invasões Francesas, do melgacense Dr. Augusto César Esteves. Aí se diz que - neste concelho raiano - nenhum soldado francês meteu a sua bota, sobretudo porque o rio Minho, com muito mais caudal do que agora, o impediu. Podiam ter atravessado no pequeno rio Trancoso, em São Gregório, mas que importância estratégica tinha para o exército francês o nosso território? Tratava-se na altura de uma vila rural, estagnada, sob o domínio espiritual da igreja católica, sem quaisquer ambições, sem defesa militar. Os napoleónicos, caso o desejassem, ter-se-iam apoderado de Melgaço sem gastarem uma única bala. Se eles soubessem que no mosteiro de Fiães havia bom presunto, certamente que dariam lá um pulo para o comer! As autoridades melgacenses, caso do juíz de fora, entre outros, e alguns patriotas, logo que se aperceberam que o perigo tinha passado, mandaram tocar os sinos e puseram a bandeira nacional no castelo, gritando a plenos pulmões contra a presença do exército francês em Portugal. Duvido que os invasores tenham tomado conhecimento do facto! Se os ingleses não tivessem vindo ajudar-nos, por interesse deles obviamente, ainda hoje Portugal continental estaria nas mãos dos francos.                    

 

     Artigo publicado no Fronteira Notícias n.º 11, de 9/5/2005, e número 12, de 10/6/2005.

// continua...

Sem comentários:

Enviar um comentário