LINA - FILHA DE PÃ
romance
Por Joaquim A Rocha
15.º Capítulo
Na
Vila as coisas estavam feias: o carcereiro fora transferido para outra cadeia
do distrito. Acusaram-no de negligência. Bem tentara defender-se, mas os seus
argumentos caíam todos por terra perante a realidade: a prisioneira circulara à
vontade na prisão, durante a noite, e ele nunca se apercebera disso – não havia
desculpa para tremenda falha. Não fora expulso apenas por uma razão: aquela
cadeia não estava preparada para receber criminosos daquele gabarito – o juiz
não decidira correctamente quando a mandara para ali. Por isso, houve uma atenuante;
a qual, somada a um pedido, foi o que lhe valeu.
A GNR local recebera mais um guarda como
reforço: alto, jovem, ainda não completara trinta anos de idade, com uma
vontade férrea de mostrar serviço. Mal soubera do caso Lina, prontificou-se a
ajudar à sua detenção:
- Meu comandante:
conte comigo; nem que vá ao inferno capturá-la!
- Espero que não
seja necessário ir tão longe, Mâncio; mas que ela é um demónio, ou está a ser instruída
por ele, isso é um facto. Temos de ter alguma prudência, estamos a lidar com
uma gaja sagaz, hábil, capaz de ludibriar o mais esperto. A Polícia Judiciária
ofereceu-se para ajudar a deter a assassina, mas nós ainda não aceitamos essa
oferta, vamos ver se somos capazes de remediar com a prata da casa.
**
O tal Mâncio, acompanhado pelo experiente
Roberto, partiu para a montanha. Era a primeira vez que palmilhava aqueles lugares.
Ao fim de umas horas diz para o companheiro:
- Caramba! Isto
não é para iniciados; já estou cansado de tanto andar pelos montes, os pés já
me doem. Devíamos ter calçado apropriado.
- Querias botinhas
de veludo, hem! Pensavas que era canja, não? Isto é trabalho duro, estafante, e
não só: também é perigoso. Aquela mulher pode montar-nos uma armadilha qualquer
– é capaz de tudo, o depravado diabrete! Temos que estar atentos ao menor
perigo.
Duas semanas já tinham decorrido desde a evasão.
O cabo da GNR já se convencera de que o seu pessoal não estava à altura daquela
tarefa – iria transmitir isso aos seus superiores, a fim de estes pedirem
auxílio à Polícia Judiciária; bem lhe custava, pois aguardava para breve uma
promoção, e por causa deste fracasso não a receberia tão cedo.
Aconteceu, porém, o inesperado: dois
caçadores deslocaram-se, nas suas andanças, para os lados onde se instalara
provisoriamente a Lina. Habituados a olhar por entre o matagal e árvores,
depressa se aperceberam que ali havia alguém, talvez outro caçador. Para sua surpresa
avistaram um indivíduo do sexo feminino.
- Ó Zé Manuel,
estás a ver ali uma mulher?! Que andará a fazer sozinha por aqui? Deve ser
xexé!
- Espera lá: não
será a famosa evadida? Aquela que envenenou a brasileira?
- É possível, é;
vamos avisar a GNR. Talvez nos dêem alvíssaras.
- Estás a
brincar.
Subiram à estrada, meteram-se no carro e
arrancaram para a Vila. Entraram no posto e contaram o caso ao comandante. Este
tratou de tudo: chamou duas praças e ordenou-lhes:
- Atentem naquilo
que vos digo: já sei onde se abriga o monstro. Vão os dois capturá-la. Logo que
cheguem aqui os vossos colegas, já vocês devem estar de volta com ela. Despachem-se.
Explicou-lhes o local onde a Lina se
escondia, o que deviam fazer para chegar perto dela, sem ela se aperceber.
- Desta vez não
admito nenhuma falha – esta noite a degenerada criatura já vai dormir no calabouço,
ou eu não me chame Bernabé.
A emboscada
correu bem: a Lina não sonhava sequer que dois soldados da GNR lhe estavam a
apontar toda a artilharia que com eles carregavam. Comia tranquilamente um
frango que horas antes roubara numa localidade próxima. Algumas pessoas já se
tinham apercebido que ela andava por aquelas bandas, mas não a denunciavam com
receio de represálias. Que interessava àquela gente que a Lina tivesse
envenenado a mulher do patrão? Não havia sequer ainda cinco anos que o Pires Carqueja
espancara, com o cabo da sachola, o Manuel do Reguengo! Mortes aconteciam a qualquer
momento: por doença, por desastre, por violência. Mais uma, menos uma, que
importava?!
Aproximaram-se pé ante pé. Desta vez a satânica
mulher foi mesmo surpreendida: o deus Pã não a protegera.
- Em nome da lei,
considera-te presa – gritaram-lhe os dois
guardas.
Ao
ouvir aquela voz, deu um pulo! «Que diacho»
- resmungou ela - «O chifrudo não me
preveniu. Disse que me defendia dos humanos, mas afinal não passou de uma falsa
promessa!» Olhou para todos os lados, mas chegou à conclusão que não valia
a pena fugir. Eles estavam ali, com as suas armas apontadas, e não hesitariam
em descarregar sobre o seu frágil corpo meia dúzia de balas, um carregador
inteiro. Ironizou:
- Pelo menos,
avisassem! Aparecer assim, em casa dos outros, à bruta, sem bater à porta, sem
nenhuma consideração por uma senhora de bem, revela falta de educação. Os
vossos pais não vos ensinaram que o respeitinho é muito bonito?
- Goza, goza! Troça
de nós à vontade! Desta vez não escapas – juro-o pela alma de meu pai que Deus
lá tem.
- O teu pai deve
estar no Purgatório, à espera do barquete que o levará para a sua morada
infernal. Mas já que estão aqui, descansem um pouco e ajudem-me a comer o resto
do frango, não há pressa.
- É preciso ter
lata! – diz o guarda mais jovem, que até
ali estivera calado.
- E não vos
ofereço vinho, porque a pipa está vazia…
- Vamos embora!
Chega de conversa.
A Lina verificou que estava perante dois
homens decididos a cumprir o seu dever. No entanto, ainda tentou outro dos seus
trunfos. Começou a coçar as pernas, dizendo: «malditas formigas, subiram pelas pernas acima!» E, com as mãos,
subia mais a saia, mostrando as coxas, como fizera quando era ainda uma
rapariguinha. Os homens começaram a ficar excitados. Que diabo: estavam ali só
os três, podiam aproveitar – ninguém iria saber.
- Não me digam
que estão a olhar para as minhas pernas?! São bonitas, não são? Querem sexo?
Façam com as vossas mulheres, eu não ando aqui a dá-la a todos. Abro uma
excepção se não me prenderem.
E
deitou-se. Olharam um para o outro e acenaram com a cabeça, piscando o olho. O
código era facilmente decifrável: fariam amor com ela e depois levá-la-iam
presa na mesma. O mais velho tira as calças e baixa-se. O outro ficava atento e
à espreita – não fosse o anjo mau tecê-las.
Logo que o guarda se aproxima do corpo da
mulher, esta, num salto de ginasta olímpica, espeta-lhe com o joelho nas partes
mais sensíveis. Este grita com dores. Ela aproveita a confusão e tenta fugir. O
outro guarda aponta-lhe a pistola à cabeça e grita:
- Nem te passe
pela mente escapar! Estoiro-te com os miolos – eu fui um dos melhores
atiradores da Companhia; abato um melro à distância de cem metros, não tenhas quaisquer
ilusões.
Ela estacou. Rodopiou sobre si, como um
pião, olhando para o guarda com ganas de o trucidar. Ele olhou-a nos olhos
fixamente. Então Lina compreendeu que ele não hesitaria um segundo. Matá-la-ia
como se fosse um cão raivoso. O melhor era entregar-se. Foi o que fez.
- Podem levar-me
para a enxovia; não vos levantarei mais problemas. Já me diverti bastante por
hoje.
E
riu-se, com sarcasmo. Entretanto o outro agente recuperava, embora lentamente. Dirige-se
à agressora aos berros:
- Filha da puta,
cabra: ainda hoje te estoiro com esses miolos nojentos. Nunca mais te atrevas a
fazer coisa semelhante: – já me gozaste, já me humilhaste, agora também me
bates?! Seu coiro! Pega de merda!
O homem vociferou, praguejou, até libertar
toda a bílis do seu corpo. Vira-se para o companheiro e solicita-lhe:
- Obriga-a a
caminhar à nossa frente; desta vez vai pelo seu próprio pé, acabaram-se as
bestas de carga.
Ele fora um dos que carregaram com ela do
rio até à estrada. Sentia-se dorido por dentro e por fora. O seu ódio àquela
fera humana aumentava de dia para dia. Apetecia-lhe esmigalhar aquela cabeça, como
se faz a uma cobra, apertar-lhe o pescoço, deitá-la a um poço fundo agarrada a
uma enorme pedra. Subiam-lhe ao cérebro mil ideias para a torturar, mas estava
acompanhado por o camarada e nada podia fazer. Se estivesse sozinho a Lina já
era seu troféu de caça!
Demoraram quase três horas para chegar à
cadeia. O novo carcereiro veio à porta de entrada, olhou demoradamente para a
prisioneira, e disse, dirigindo-se aos soldados da GNR:
- Fiquem
sossegados: desta vez não fugirá. Eu já sei o que lhe vou fazer.
- Tenha cuidado!
Ela tem um pacto com o diabo!
- Pacto, ou seja
o que for, vão descansados: para grandes males, grandes remédios.
O guarda prisional não queria, nem podia,
cometer o mesmo erro do antecessor; por isso, chamara um serralheiro e
encomendara-lhe uma corrente de ferro, que nem Hércules, Golias, ou o cabeludo Sansão
conseguiriam quebrar. À noite, quando a Lina entrava na cela, agarrava-lhe uma
perna à tal corrente e assim podia ir dormir descansado.
**
O julgamento apressou-se, tendo em conta
as duas fugas da demoníaca mulher. A acusação e a defesa finalmente
entenderam-se, falaram com o juiz, e este marcou o dia do julgamento.
Naquele dia o tribunal estava completamente
cheio – toda a gente da Vila e arredores queria assistir. Começaram a surgir
apostas: «Eu digo que ela vai apanhar
vinte anos de prisão.» E ele? – perguntavam. «Ele apanha metade desse castigo.» Havia quem apostasse em vinte e
cinco anos para ela e quinze para ele. Enfim, cada cabeça sua sentença, mas
numa coisa estavam todos de acordo: a pena seria pesada.
O juiz pediu silêncio e iniciou o
julgamento. Ouviram-se algumas testemunhas – vizinhos de Filipe – as quais
disseram que ele sempre fora um bom vizinho, um comerciante honesto, que
tratara bem a sua esposa; até ficaram muito admirados com o sucedido – nunca
esperariam isso de uma pessoa assim, tão bem comportada.
Quanto à criada, não podiam dizer bem nem mal,
pois ela estava quase sempre em casa, a cumprir o seu dever, não era de Lamas
Santas, por isso não tinha por lá grandes amizades. Muitos deles nem sequer
sabiam daquela história da suposta paridura. Na freguesia toda a gente vivia
para trabalhar, não se metiam na vida dos outros.
Os advogados pleitearam, agarraram-se com
unhas e dentes aos seus débeis argumentos, defenderam e atacaram com garra e
convicção.
- Senhor Doutor
Juiz: peço para essa mulher a pena máxima!
- Meritíssimo
Juiz: tenha piedade dessa mulher; já se arrependeu do seu vil, hediondo crime,
merece uma nova oportunidade.
O juiz escutou-os a todos, com atenção,
com paciência. Não podia decidir sem uma grande ponderação. Estava perante um
caso grave, pouco comum por aquelas paragens. Provavelmente só dali a muitas
dezenas de anos é que outro crime daquele teor se daria.
Num dos intervalos da sessão, o advogado de
defesa foi falar com os réus. Dirigiu-se primeiro a ela e perguntou-lhe:
- Senhora Lina:
está interessada, antes da sentença, em falar ao Senhor Doutor Juiz? É um
direito que lhe assiste, se o quiser usar diga-me. Mas por favor: não agrave a
situação.
Olhou para o seu amado, este fez-lhe um
sinal afirmativo com a cabeça, e ela diz então ao causídico:
- Aceito a
sugestão: direi duas coisas acertadas ao juiz. E enquanto estiver a falar não
quero que me interrompam.
Lembrou-se do tempo em que fora amante de
outro magistrado. Já tinha passado um ror de anos! Que período aquele: amásia
do juiz e esposa do coitado do Mário! A sua morte, a do marido improvisado, não
lhe provocara qualquer dor – era menos um escolho no seu caminho. Quanto ao
juiz, isso era outra coisa: gostara mesmo dele; dera-lhe tudo, entregara-se de
corpo e alma àquele homem, sem pedir nada em troca. Ele partira e nunca mais soubera
nada dele. Deixara uma filha, que ela, Lina, quase sem dar por isso, desprezara
ao longo destes anos todos. Nem sequer sabia onde ela parava; mas era melhor assim.
Ninguém se orgulharia de ter uma mãe perversa e cruel. O seu destino fora
traçado desde o primeiro dia em que nascera. «Nasceste num dia de trovoada» - tinham-lhe contado anos depois.
Agora estava a relacionar as coisas – o chifrudo, com cascos de bode, era o
próprio diabo, que se metera nela, que a possuía! Aproveitara-se daquele infernal
tempo, provavelmente provocado pelas forças do mal, e ali estava, obrigando-a a
fazer coisas que ela, por si só, por sua iniciativa, nunca teria coragem, ou
ousadia, de levar a cabo. «Maldito demo»
- murmurou.
O Juiz entrou de novo na sala e reabriu a
sessão. O advogado de defesa aproximou-se dele e informou-o de que a ré estava
interessada em fazer uma breve comunicação ao Tribunal.
- Senhor Doutor
Advogado: diga-lhe que já a chamo, a fim de ela se pronunciar.
Depois de ouvir mais umas quantas
testemunhas, aquelas que faltavam, o Juiz manda levantar a ré e pergunta-lhe:
- Senhora Lina:
levante-se e diga de sua justiça.
Esta ergueu-se, com exagerada lentidão,
olhou para os presentes com descaramento e desprezo, com cara luciferina, olhos
penetrantes, ameaçadores, e depois virou-se para o juiz:
- Senhor Doutor
Juiz: sei que me vai condenar, mesmo sem provas concludentes. Não me importo.
Quando nascemos ninguém nos diz o que vai ser a nossa vida – uns vão vivê-la de
uma maneira, outros de maneira parecida, mas não igual. Aparentemente são muito
semelhantes, por isso, quando aparece uma pessoa como eu, tão diferente dos restantes,
tomam-nos por bichos exóticos, raros, perseguem-nos como se fôramos autênticas
feras. Já fiz muito bem e igualmente fiz mal. A culpa não me cabe completamente,
sou um mero produto da sociedade e das circunstâncias. Alguém se serviu de mim,
quando ainda era adolescente, e logo que saciado rejeitou-me, dando-me a comer
aos famintos, às ratazanas. Deixou-me uma criança nos braços, a mim, que também
era praticamente criança! Provocou o meu casamento com um desgraçado, que não
tinha onde cair morto, um pobre de Cristo. E para quê? Para que o seu nome não
fosse manchado por uma catraia, uma reles criada de servir. Depois foi-se
embora, como um cobarde, como um piloto que abandona o leme, ficando o barco à
deriva, à mercê do vendaval. É fácil julgar os outros, condená-los, mas que
sabem os juízes, transformados em carrascos, da vida de quem nasceu humilde e
desamparado? Foram criados em berços de ouro, habituados a ter tudo, a
satisfazerem-lhe todos os caprichos, esquecendo os outros, os escravos, aqueles
que vivem apenas para os servir.
Eu não sabia nada disto, naquela hora em que
entreguei o meu corpo, o meu coração, tudo aquilo que eu possuía, àquele homem.
Se voltasse atrás, faria a mesmíssima coisa, pois quando se ama de verdade,
nada se deve negar ao nosso amado. Sofri, e sofro, como mulher e como mãe: fiz
asneiras e agora estou a pagá-las. E os que atiraram comigo para a berma, para
o lixo, para a cloaca, esses não serão castigados? Talvez esperem que seja um
deus qualquer a aplicar a justiça, a chamada justiça divina. Não! O céu não
será para os justos, mas sim para os ricos, para aqueles que, com dinheiro, com
ouro, compram as consciências de alguns padres, dos bispos e cardeais.
Eu, com os meus poderes, poderia, se quisesse,
fazer-lhe mal, muito mal. Bastava eu desejá-lo e o Senhor Doutor Juiz iria
bater com a cabeça no tecto desta sala; mas para quê? Isso não mudaria o mundo.
Outro viria ocupar o seu lugar. E assim sucessivamente…
E num gesto teatral ergueu os braços ao
alto e proclamou:
- Pai, que
navegas entre as nuvens, se me estás a ouvir responde à minha pergunta: que
devo fazer? Transmite um sinal.
A luz
da sala começou a tremelicar, como de repente tivesse havido um tremor de
terra. As pessoas presentes ficaram assustadas, com os cabelos em pé. Não
sabiam o que estava a acontecer. Como a luminosidade se tornou insuficiente, o
ambiente tornou-se quase irreal – já se notavam sombras a moverem-se pelas
paredes. As pessoas levantaram-se abruptamente e começaram a abandonar a sala
do tribunal. Já na rua, comentavam: «Aquela
mulher fala com o diabo! O melhor é pirarmo-nos daqui.»
O juiz não arredou pé. Já ouvira falar de
fenómenos estranhos, sobrenaturais, já lera muitos livros sobre o assunto. A
luz regressou à normalidade. Algumas pessoas, vencendo o medo, repassados de
curiosidade, reentraram na sala. O juiz reiniciou o julgamento. Por volta das
seis horas da tarde deu por terminada a sessão. Disse a todos:
- Minhas senhoras
e meus senhores: dou por encerrada esta sessão; amanhã, às dezasseis horas,
será lida a sentença.
E mais não disse. O laconismo fazia parte
do estilo jurídico. Os advogados podiam, e deviam, ser loquazes, tagarelas;
apresentavam no tribunal os seus argumentos, numa linguagem ora florida, ora
sintética, conforme as conveniências de momento e a sua capacidade oratória. Ao
juiz convinha apresentar-se austero, comedido nas suas palavras, ponderado,
eficaz.
**
A sala do tribunal abriu-se pouco faltava
para as quatro horas da tarde. As pessoas começaram a entrar: duas a duas, com
ordem e respeito. Depois de estar completamente cheia, o empregado do tribunal,
oficial de diligências, diz àqueles que não conseguiram lugar:
- Lamento imenso,
mas não cabe mais ninguém na sala; quando acabar a sessão virei aqui à entrada
ler-vos a sentença.
Ficaram na rua tantas ou mais pessoas do
que da parte de dentro do edifício. Apesar de estarem ansiosos por saberem o
resultado daquele julgamento, aqueles homens e mulheres mantiveram uma atitude
ordeira.
Não demorou mais do que meia hora a
leitura da sentença:
- Lina Cancela,
viúva, de trinta e sete anos, natural de Dernepa, concelho de Melcarte, vai
condenada, pelo crime provado de envenenamento, na pessoa de Emília Tavares,
brasileira, em dezoito anos de prisão maior, celular, e na multa de cinco mil
escudos e nas custas do processo... A pena será cumprida na Penitenciária de
Lisboa.
- Filipe
Janeirinhas, de 49 anos, viúvo, natural de Lamas Santas, concelho de Melcarte,
vai condenado, por cumplicidade com Lina Cancela, no crime provado de
envenenamento, na pessoa de Emília Tavares, brasileira, sua esposa, ocorrido a
25/7/1956, em sete anos de prisão maior, celular, e nas custas do processo... A
pena será cumprida na cadeia do Porto.
À porta
do Tribunal já se encontravam duas carrinhas celulares: uma de Lisboa e outra da
cidade invicta. Guardas armados de metralhadora esperavam os condenados. Eram
indivíduos altos, fortes, com cara de poucos amigos. A sua profissão era perigosíssima,
lidavam com bandidos da pior espécie, por isso não podiam mostrar os dentes em
serviço.
Logo que os criminosos entraram,
encerraram aquelas portas especiais e toca de acelerar as viaturas – havia
muita estrada pela frente.
O povo ainda ficou ali até à noite. Os
comentários choviam de todos os lados: «O
patife também devia ter apanhado dezoitos anos de cadeia – ajudou a matar a
esposa; se ele se opusesse, ainda hoje estaria viva a Dona Emilinha.»
Outro indivíduo, querendo armar em especialista,
rebate aquela tese: «Não estou de acordo
– ela teve a ideia, comprou o raticida, pôs em prática, executou o plano; ele limitou-se
a concordar, quando muito foi conivente.»
Às tantas já ninguém se entendia. O que
lhes valeu foi a aproximação da noite. Retiraram para suas casas, mas essa
história da Lina ainda iria ser contada durante muitos anos.
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