ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
// continuação…
UM VERÃO DIFERENTE
Normalmente passo as minhas férias
estivais no Algarve, nas águas tépidas, quase africanas, mas sem iodo, nadando
no atlântico mestiço, como dentro de piscina longa e sem fundo, rogando pragas
aos gatunos e à gente pouco asseada que infestam esses espaços tão belos que a
mãe natureza, assaz generosa, dotou, como se de filha única se tratasse.
Isso é o passado. No ano de 1997,
desejando a mudança, fui até à Figueira da Foz. Se a desilusão fosse virtude,
eu era o homem mais virtuoso do mundo. Aquela infeliz escolha arrasou o meu
bolso e a minha paciência: dia-sim, dia não, o céu surgia escuro, o frio
brincava infantilmente com o calor, a luz escoava-se, lenta e fugaz, e as
nuvens, ora brancas, ora cinzentas, apareciam e desapareciam, em palco de
mágicos, ou como numa qualquer Grã-Bretanha sem estações! O hotel era deveras
caro e os restaurantes, com pouca clientela, aproveitavam a ocasião para
depenarem os papalvos que, esfomeados, tinham de abarrotar o estômago, para no
dia seguinte irem até à praia gastar as energias e os sonhos de todo um ano.
No ano seguinte, 1998, acontece a Expo.
Não posso negar que o evento superou algumas expectativas. Gastou-se dinheiro
às mãos-cheias; mas valeu a pena, pois o povo encheu a barriguinha de
espetáculos, gozou a fantasia de um carnaval carioca, de uma Ásia em delírio,
de uma África pacífica, virtual, de uma arte esmerada e de uma indústria de
ponta ao serviço do cidadão e jamais contra ele!
Este ano de 1999 soube finalmente
escolher: Moledo. Não sei se fui eu a influenciar a família mais próxima, ou se
me levaram como os deuses levaram Ulisses naqueles tempos em que deuses e
humanos trocavam leitos e figuras. Julho, mês dos dias grandes e de abundante
claridade, quis colaborar connosco: deu-nos um mar calmo, de águas pouco frias,
um ambiente excelente. A habitação não custou os olhos da cara; as refeições,
abundantes e saborosas, justificaram o preço. As sereias vieram ao areal e
cantaram canções lindas, e os tubarões, talvez bem nutridos, não ousaram
atacar-nos! Melgacenses de outrora, e de hoje, gente da minha infância,
quarenta longos anos sem uma única palavra, esquecendo quase que existiram,
ei-los ali, como saídos do limbo, do vácuo, ao meu lado, lembrando episódios,
rindo de cenas armazenadas na memória, como se tudo tivesse acontecido ontem!
António José Domingues, médico pediatra no Porto, crianças jogando no monte de
Prado, executando as ordens do treinador, o popular Germaninho, ingloriamente
afastado deste mundo por estranho acidente, inválido de corpo mas gigante na
inteligência e saber. Seu pai (do Dr. António José), Albertino Domingues, espírito puro e democrático, foi a
bem dizer o segundo presidente da Câmara Municipal de Melgaço após o 25 de
Abril de 1974, depois do Dr. António Durães. A bem dizer, porque não foi
eleito, vivia-se então o período revolucionário. As eleições realizaram-se
posteriormente. A sua mãe, D. Maria Leonor Ribeiro, parente dos meus parentes,
foi amiga da minha falecida mãe, por coincidência com o mesmo nome. A Amélia
Monteiro, que me viu nascer ali nas profundezas de Cevide, que brincou comigo e
me ensinou certamente os caminhos que levavam a São Gregório e ao mundo, que
repartiu comigo rebuçados que seu pai, o único comerciante do lugar, o senhor
Mário, lhe dava para ela entreter os dentes e o tempo, que ali sobrava, é sogra
do Doutor Manuel António Esteves, professor em Braga, e colaborador de A Voz de
Melgaço. Os irmãos dela, António, agricultor, Alzira, proprietária da Pensão
Boavista, e Dr. José Armando, professor do Ensino Secundário no Algarve, são
agora gente crescida na idade e no prestígio. A filha, Dr.ª Adalgisa Monteiro
Coelho, é professora do Secundário. Tudo isto foi maravilhoso, mas como não há bela
sem senão, este estio trouxe-me algumas tristezas: a morte do meu tio Domingos,
filho de Belchior Herculano da Rocha e de Maria Libânia Alves, ocorrida a 8 de
Agosto, uma das minhas preciosas fontes informativas para a feitura do livro
«Frágeis Elos», um homem que amou Melgaço como poucos, que só razões do foro
económico e financeiro obrigaram a deixar a sua terra; no mesmo mês abandona
este mundo a prima afastada, Maria Julieta de Melo, filha de Ilídio Cândido de
Melo e de Olímpia dos Anjos Rodrigues, precisamente com a mesma idade – noventa
anos! O meu tio nascera a 6/7/1909 e a prima Maria Julieta a 11/7/1909.
Nasceram ambos em Julho e faleceram em Agosto! Ainda nesse fatídico mês parte
inesperadamente o nosso amigo Mário Secundino Cerdeira, Marcer, relativamente
novo, um homem ativo, sempre pronto a ajudar os outros, remexendo em papéis
velhos como se fora um académico investigador! Não o era, mas o que sabia – e
era muito – oferecia-o magnanimamente ao seu semelhante, sem nada pedir em
troca. Bem-haja por tudo aquilo que nos legou e esperemos que jamais seja
esquecido, porque o melgacense, de uma maneira geral, tem tendência a olvidar
os seus conterrâneos e a favorecer os de “fora”, como se a prata da casa
valesse menos do que o ferro, forjado ou não, de outras regiões do país!
Não fui a Melgaço; não assisti às festas
da cultura, à ceia medieval, não ouvi a banda da Guarda Nacional Republicana.
Não vi o núcleo museológico da torre de menagem, o centro de estágios do monte
de Prado, o pólo industrial de Penso; por isso, calo-me. Para uns é a melhor
coisa do mundo, para outros, não presta! Agradar a gregos e troianos foi arte
que poucos dominaram ao longo dos séculos. E a arte de criticar também não é
fácil, pois os visados por vezes reagem como negros touros enraivecidos,
achando que o crítico não tem ciência para julgar a obra em questão. Pior do
que tudo isso é o silêncio. Mesmo correndo o risco de ser mal interpretado,
deve-se falar e escrever sobre os factos – mas apenas, e só, no caso de ter
observado com olhos de ver.
Não fui à festa, mas nela participei indiretamente!
A minha filha, Ana Catarina, ganhou o 2.º prémio, em prosa, dos jogos florais.
Ela quis ir recebe-lo, mas as circunstâncias não o permitiram. Vinte e cinco
mil escudos. O dinheiro até dava para as viagens e para duas ou três refeições.
Pelo que me foi dado saber, os textos, quer em prosa, quer em verso, foram
lidos por meia dúzia de pessoas! Continua-se a privilegiar o discurso do
erudito, a selecionar o auditório, em detrimento do lúdico, da imaginação, da
cultura popular. Perdoem-me, mas isso faz-me lembrar o Onassis – enquanto foi
pobre comia erva daninha; mais tarde, já rico, até o caviar enjoava!
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1126, de 1/11/1999.
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