quarta-feira, 18 de março de 2020

LINA - FILHA DE PÃ
(romance)
 
Por Joaquim A. Rocha


 
Capítulo XIII
(continuação)

     À sua espera estava o carcereiro. Um homem ainda novo, alto, elegante, com cara de boa pessoa. Era a primeira vez que recebia presos acusados de um crime de sangue. Os prisioneiros que habitavam naquele momento a cadeia tinham cometido pequenos delitos, muitos deles relacionados com a partilha da água para rega. Outros estavam ali por terem andado à zaragata nos serões, cuja causa principal consistia na disputa das raparigas solteiras: os da freguesia não admitiam que viessem rapazes de outra freguesia roubar-lhes as moças! Consideravam-nas sua propriedade! Depois de umas palavras mais azedas, agressivas, impróprias, vinha a paulada. O jogo de pau ali não era praticado desportivamente, como noutros sítios, mas sim para bater no adversário, no rival. Por vezes um dos contendores ficava deveras magoado e daí a prisão de quem o pusera naquele estado.    

     O carcereiro encaminhou Filipe para a sua cela; pelo caminho foi-lhe dando a conhecer algumas das regras a que estaria sujeito doravante, todas elas muito simples. «Erguer às sete da manhã» - dizia-lhe ele. «Almoço às oito e jantar às 12 horas; a ceia é sempre às dezoito e trinta

     O desgraçado quase que nem o ouvia! Desejava encontrar um colchão, mesmo duro, para se estender e ficar ali eternamente, ou pelo menos até que o chifrudo o levasse para a grande fogueira! Não estava interessado em conversar fosse com quem fosse – nem sequer com a Lina. Aliás, não podia apresentar-se assim, naquele estado miserável, porco, imundo, à sua amada, àquela a quem nada escondera, nada ocultara! Eram feitos da mesma massa, corria-lhes nas veias sangue de Satanás… Na prisão teria de tomar banho pelo menos duas vezes por semana e cortar a barba. Não levantaria problemas a ninguém, mas deixassem-no em paz e sossego. Nunca antes pensara na parca, mas agora desejava-a como o náufrago deseja encontrar a tábua de salvação. «Ainda acabo por me suicidar» - remoía ele, desiludido da vida, zangado com ele próprio.

 

- Senhor Carcereiro: faça-me um grande favor - dispense-me das refeições.

- Senhor Filipe, o que me pede é ilegal. O senhor quer morrer à fome? Afaste essa ideia. Ainda vai viver muitos anos, o tempo é o melhor remédio para esquecer. Ninguém é perfeito, e o diabo anda sempre à nossa volta na tentativa de nos pregar algumas partidas. O senhor caiu na ratoeira.

- Ao que eu cheguei, senhor Carcereiro, ao que eu cheguei!    
 
     A Lina teve de ficar mais um dia na “jaula” da Guarda Nacional Republicana porque as celas das mulheres, na cadeia comarcã, tinham de ser limpas e desinfetadas como deve ser; até iam ser pintadas, ou caiadas, segundo constava, porque na cela que lhe estava destinada morrera há pouco tempo uma prisioneira com a tísica. Ainda não tinham sido acionados esses tratamentos por causa do dinheiro: as verbas para esse fim eram diminutas, quase ridículas, muitas vezes até nem chegavam para comprar lençóis ou cobertores para a cama dos reclusos!



     Ela já não podia ver a cara dos soldados da Guarda Nacional Republicana. Ganhara-lhes um ódio tremendo. «Se pudesse matava-os a todos» - resmungava, esmagando os dentes uns contra os outros. Naquele momento a sua situação era pouco mais do que desesperada. Dali iria para a cadeia concelhia e depois partiria para um estabelecimento prisional da cidade, para o meio de outras mulheres criminosas, quiçá piores do que ela. Pensava constantemente no erro que cometera. «Se calhar apressei o casamento» - concluía. «Fui imprudente e apressada, deveria ter esperado mais tempo

     Finalmente chegou o momento:

 

- Lina: prepara-te para a mudança. Daqui a meia hora pomo-nos a caminho.         

 

     Ela nem sequer se deu ao trabalho de abrir a boca. Estava farta de estar ali. Na cadeia sempre teria mais espaço e estaria próxima do homem que atualmente amava, ou fingia amar. Fora um cobarde ter confessado, mas as provas eram demasiado evidentes. Já sabia que o corpo de D. Emília fora autopsiado. A ciência evoluíra nos últimos anos e ela não se apercebera desse enorme avanço. «Havia outras maneiras de a matar, sem as autoridades darem por isso. Por exemplo: exagerar nos temperos – no sal, na pimenta, etc.» - dizia ela para os seus botões. Agora era tarde demais.  

 

     Passavam uns minutos das seis da tarde quando o guarda da República a foi chamar:

 

- Vá, vamos embora. Podes pôr este xaile pelos ombros, alguém o trouxe para ti. Pelos vistos ainda existe alguém no concelho que gosta de patifes e assassinos!

 

      Abriram-lhe a porta da improvisada cela. Saiu apressadamente daquele espaço exíguo, um verdadeiro tugúrio, e colocou sobre os ombros o tal xaile. Tinha de se preservar, adquirir novas energias, ainda não se dava por vencida.

     Como era mulher, não lhe colocaram algemas nos pulsos. Saíram porta fora, duas praças, e ela no meio. Algumas pessoas curiosas olhavam para aquele quadro humano, inusitado, absurdo. Como já era depois das aulas, algumas crianças da escola apareceram para acompanharem aquela marcha especial. A Lina já granjeara, no concelho e arredores, imensa fama. As crianças desejavam viver também aquela aventura, para no dia seguinte a contarem aos seus colegas de turma.

     O trio cortou pela Rua do Rio Morto, passou a Loja Moderna, e estava quase a atingir a capela do Santo Jesus quando a Lina, num lapso de segundo, se baixou, recolhendo do chão um punhado de areia que por ali existia, atirando com ela aos olhos dos guardas. Estes, colhidos de surpresa, num desespero total, humano, não conseguindo ver quase nada, levaram a mão direita ao bolso, procurando o lenço, a fim de retirarem dos olhos aquela incómoda areia.

 

     A filha mais nova de Pã soubera aproveitar bem esse momento: fugira por detrás da capelinha e saltara para os campos, já com os pés de milho mais altos do que ela, infiltrando-se pelo meio, permitindo-lhe assim a fuga. Quando os guardas se conseguiram libertar daquele pesadelo, já a Lina estava longe. Por outro lado, aproximava-se a noite e assim a perseguição tornar-se-ia praticamente impossível.

  

- Ó Pedro, a malandra tramou-nos! E agora?

- Tem artes do diabo, o raio da mulher. Quero aqui prometer uma coisa: não descansarei enquanto não a apanhar.

- Eu prometo o mesmo; para nós foi uma humilhação – aquele estupor gozou a ambos. Quando a apanhar nem sei o que lhe faça! O bonito vai ser quando informarmos o nosso comandante do sucedido – ainda nos transfere.

- Deixa-me ser eu a falar, sou mais calmo do que tu. Pode ser que ele compreenda. Não estamos a lidar com uma fulana qualquer, mas sim com um génio do mal, saído das profundezas do inferno!

- Diz-lhe que se tivéssemos uma viatura tudo seria diferente; levar os presos a pé pode acontecer isto a qualquer um, por melhor guarda que seja.  

 

     Os seus olhos estavam vermelhos por causa da areia e de tanto os terem esfregado; eu até penso, caro leitor, que ambos choraram de raiva!

      Dali a uns minutos estavam no quartel. O comandante já tinha ido cear. Como quase todos os guardas tinham as esposas na terra de nascimento, e pelo menos um deles era solteiro, fizeram um acordo com um restaurante modesto, na zona histórica da Vila, a fim de lhes servirem todas as refeições, pagando um preço relativamente barato. A proprietária do pequeno restaurante cozinhava razoavelmente bem, o arroz aparecia na travessa com uma cor bonita, apaladado, por causa dos temperos e do colorau, a carne e o peixe normalmente eram assados no forno a lenha, com muita salsa, cebola e louro, dando-lhes um aspeto e cheiro agradáveis. A comida era quase sempre acompanhada por salada de alface e tomate, com rodelas de cebola crua pelo meio. O vinho saía da pipa a borbulhar, aquele tinto da cor do sangue, com um sabor irresistível. Quase sempre pediam mais uma caneca para dividir por todos. Essas extravagâncias eram pagas à parte.

              

- Vamos também nós cear, e à mesa falamos – propôs um deles.

- Temos de ter cuidado com os outros comensais – nada podem saber.

- Esqueces-te de que as crianças da escola viram tudo; a estas horas não deve haver ninguém na Vila que não conheça o sucedido.                  

- No entanto – contrapõe o outro – temos de sustentar a nossa versão.

 

     Conversaram algum tempo sobre a maneira de comunicar ao comandante o que acontecera. Nada de mentiras, mas teriam de dramatizar o caso, a fim de o 1.º cabo, comandante do posto, não os castigar.

      Pediram licença e sentaram-se à mesa. Os seus lugares estavam sempre reservados pois, mesmo que não comparecessem, teriam de pagar na mesma. O superior, já bem bebido, perguntou-lhes:

 

- Então o basculho, já está na cadeia?

- Meu comandante, temos uma má notícia a dar-lhe: o estafermo fugiu!

 

     Contou o evento tal como tinham combinado, sem subterfúgios, sem acrescentar nem diminuir absolutamente nada. O comandante ouviu, ouviu, e o seu rosto ia-se alterando à medida que os minutos passavam; no final da narrativa explodiu:

 

- Seus incompetentes: até uma galdéria qualquer vos foge! Que raio de guardas vós sois? E por que não andam atrás dela? Vêm encher a pança, como se nada se passara, e ela a rir-se de todos nós a esta hora. Como castigo, o nosso tenente não os devia deixar alimentar-se durante uns dias, para diminuírem essa barriga. E até os devia transferir para as ilhas, ou mesmo para as colónias! Vão ter de ma trazer de volta, seus medricas, depois trato eu dela, nunca mais ficará com vontade de fugir.

    

     Passado pouco tempo já estavam todos a rir; a pinga era puxada, a ceia fora muito boa, a Lina que se lixasse. De manhã iriam à sua procura. O delegado do Procurador da República é que ficaria furioso com a notícia. Porém, uma coisa era certa: onde quer que ela estivesse seria apanhada. Mesmo que fosse para a Galiza não obteria grande êxito, pois as autoridades galegas colaboravam, tudo fariam para a engaiolar. // continua…


 

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