LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
// continuação…
XXXVI
Não busques, se não queres encontrar.
- Gostaria de saber se mora aqui no Porrinho um senhor chamado Olavo Augusto Meliças; é português, natural de Cendre.
- Não sei, é melhor perguntar ali na venda, o senhor Manolo conhece toda a gente.
- Senhor Manolo, por
acaso conhece…
- O Meliças vive fora
da povoação, trabalha na quinta de Don José Hernandez.
- Como chego lá?
- Tens coche?
- Não, vim de
camioneta.
- Ainda é longe. A pé
levas duas ou três horas.
- O pior é que é quase
noite.
- O melhor que tens a
fazer é comer e dormir na pousada e de manhã cedo arrancas.
- Ele costuma aparecer
por aqui?
- Costumava. Merca tudo
na minha loja, pero agora manda aqui um filho.
- Que idade tem esse
rapaz?
- O Agostinho terá
dezasseis, dezassete anos. Até se parece um pouco contigo. É moreno como tu,
cabelos negros, até pareceis irmãos!
- O senhor Meliças tem
mais filhos, além desse?
- Mais um rapaz, Pepe,
e duas chicas: a Clara e a Josefa, por sinal mui guapas.
- Eu sou filho dele,
mas não é por isso que estou aqui, venho avisá-lo de que o pai está doente e
vai ser internado num asilo, ele tem estado na minha casa, mas agora vou para o
serviço militar.
- Bem me parecia que
havia aí parentesco, pero não sabia que ele deixara filhos em Portugal.
- Somos dois, o meu pai
viveu cinco anos com a minha mãe; depois casou com esta senhora galega.
- Com Mariquita. Não
sei se fez bem, que esta trata-o mui mal, segundo dizem.
- Quando viveu com a
minha mãe era muito novo, depois os pais meteram-lhe na cabeça que não devia
casar com ela; enfim, águas passadas.
- Vai-te então; a
pousada é logo ali na outra rua, tive muito gosto em conhecer-te.
- Obrigado pela
informação senhor Manolo, que Deus lhe pague.
- É aqui que mora o senhor Olavo Meliças?
- E que lhe queres?! - Eu venho da parte do
pai dele, o senhor Agostinho Meliças.
- Que se passa com Agostinho?
- É aqui que mora o senhor Olavo Meliças?
- E que lhe queres?!
- Que se passa com Agostinho?
- Bem, ele está doente…
- E como descobriste
onde moramos?
- Foi o próprio senhor
Agostinho que me disse, ele recebeu uma carta sua e do seu marido…
- Uma carta?
- Sim, de há dez anos,
vocês prometiam ir a Cendre visitá-lo.
- Já me tinha
esquecido. Vou chamá-lo. Olavo! Tens aqui um chico que te quer falar.
- Que me quer?
- Vem aqui
perguntar-lhe.
- Que me queres?
- É acerca de seu pai,
ele está doente, quase que não pode andar, e eu vou levá-lo para o asilo.
- Para o asilo?
- Sim, mas ele não quer
ir, diz que aquele lugar é como uma prisão, gostava mais de vir viver convosco.
- Agora que está velho
e doente é que quer vir para minha casa! E a minha mãe, como está?
- A sua mãe já morreu,
faz dois anos; sofreu muito por você não estar ao lado dela na hora da morte.
- Como sabes tudo isso?
- O senhor Agostinho
mora na minha casa, andava a mendigar pelas ruas.
- Na tua casa?!
- Sim, mas agora tenho
de ir para o serviço militar, a minha mãe não pode tomar conta dele, nós somos
pobres, e ela tem de sair de casa para ganhar o sustento.
- E metes em casa um
velho sem te ser nada?!
- Ele ainda é meu
parente.
- Teu parente?
- Sim, mas eu não venho
de tão longe para falar de mim, queria que me dissesse se o vai buscar.
- Papá, quem é este
rapaz?
- É da minha terra, de
Cendre, traz-me a notícia de que teu avô paterno está doente.
- E a avó?
- Morreu.
- Coitada! Nem sequer
cheguei a conhecê-la; que pena eu tenho dela.
- Nunca quiseram lá ir
visitá-la!
- Não diga isso, papá;
sabe bem que não tínhamos dinheiro para os transportes.
- Iam de comboio até à
Frieira, que fica barato, depois iam a pé, olha que eu palmilhei muita légua a
pé.
- Papá, este rapaz
parece-se com o Agostinho!
- Há muita gente
parecida. Como se chamam os teus pais?
- Eu não tenho pai!
- Não tens pai? Então
como nasceste?!
- Nasci duma mulher,
como nascem todas as crianças.
- E como se chama a tua
mãe, posso saber?
- A minha mãe não é
para aqui chamada; eu apenas quero saber se vai buscar o meu…
- O teu quê?
- O seu pai.
- Claro. Se o velho não
quer ir para o asilo trazemo-lo para aqui; uma malga de caldo haverá sempre. Tu
quedas em minha casa esta noite e de madrugada partimos.
- Posso ir também,
papá?
- É melhor não, as
terras têm de ser trabalhadas, além disso não temos duros em demasia. Quando te
der jeito prepara no quarto do Agostinho uma enxerga para o teu avô.
- Como te chamas?
- Chamo-me Cândido.
- Que fazes? És camponês?
- Não; tenho uma pequena oficina de sapateiro.
- Como te chamas?
- Chamo-me Cândido.
- Que fazes? És camponês?
- Não; tenho uma pequena oficina de sapateiro.
- Tua?
- Sim; o meu patrão
emigrou para França e então eu fiquei a trabalhar por conta própria.
- Ganhas bem?
- Nem por isso; vai
dando para o dia-a-dia, os clientes não podem pagar muito, não têm dinheiro. Portugal
é um país de gente pobre. E tu, como te chamas? És a Clara ou a Josefa?
- Sou a Clara, tenho
dezoito anos de idade, e trabalho nos campos, como vês.
- Podias ir para a
vila, ou para a cidade, aprendias uma profissão, costureira, por exemplo.
- A minha mãe não me
deixa sair daqui; diz que nas cidades as chicas se perdem!
- Umas sim, outras não.
E a tua irmã, a Josefa, onde está?
- Anda nas regas, ela e
o Agostinho; só regressam à noite.
- Tu és muito bonita,
Clara.
- Não me digas isso; eu
julgo-me feia, mais bonita do que eu é Josefa.
- Que idade tem ela?
- Vai fazer vinte anos;
já tem noivo, é um jovem carabineiro.
- Então quando se casar
vai para a cidade.
- Vai para Tui, uma
cidade mui bonita, por acaso.
- Tu qualquer dia
também arranjas noivo.
- Sou nova; daqui a uns
anos. E tu tens namorada?
- Tive; trocou-me por
outro, por um emigrante.
- Nunca faria essa
maldade ao meu namorado;
- Ela lá teve as suas
razões; sabes que ainda não fiz o serviço militar, vou andar por lá três anos,
terei – quase de certeza absoluta – de ir combater em África: Angola,
Moçambique ou Guiné, posso levar um tiro, morrer ou ficar ferido, quem sabe?
- Mesmo assim, se era
tua noiva, se gostava de ti, não deveria ter feito isso! Nós, as mulheres, não
somos todas iguais.
- Tens razão; quando se
gosta a sério não se pratica um ato dessa natureza.
- Não vais esquecê-la
tão cedo.
- Enquanto viver não a
esquecerei, a mágoa que sinto é muito grande.
- Coitado! Mesmo sem a
conhecer, já sinto por essa rapariga raiva. Olha: já vem ali Josefa e
Agostinho, vou-tos apresentar. Este aqui é um rapaz português, da terra do
nosso pai, seu nome é Cândido.
- Que veio aqui buscar?
- Veio avisar-nos de
que o avô Agostinho está doente, o pai vai amanhã buscá-lo. Não é parecido com
este?
- Muito semelhante.
Ponham-se à beira um do outro. Assim! Meu Deus, que semelhança! Até nos olhos!
- Isso não quer dizer
nada; há imensas pessoas parecidas.
- Venham cear. Tu, Clara,
trata da mesa.
- Está bem, mãe.
Cândido: vem comigo, ajudas-me.
- Com todo o gosto; já
estou habituado.
- Nunca mais nos vamos
a ver.
- Provavelmente não; só
se eu vier cá visitar o avô.
- O meu avô?
- Sim, quem havia de
ser?
- Como disseste o avô!
- Chamo-lhe assim
porque gosto dele e é velho.
- Ah!
- Tu nem sequer o
conheces, Clara.
- É verdade; há tantos
anos que ando a pedir ao papá para lá me levar e ele foi sempre adiando.
- Agora já o vais ter
aqui à tua beira.
- Que pena a avó ter
morrido. Como era ela?
- Eu não sei se a conheci,
não me lembro; saí de Cendre com seis anos de idade. O teu avô mostrou-me uma
fotografia dela quando era nova; não era nada feia, tu pareces-te um pouco com
ela.
- Achas?
- Muito parecida!
- Não sei porquê, mas
parece-me que já te conheço há muito tempo, que crescemos juntos, ao pé de ti
não me sinto inibida!
- Eu também me sinto
bem a teu lado; sou normalmente acanhado com as raparigas, mas contigo não!
- Meninos: vão-se
deitar que amanhã temos de partir cedo. Tu, Cândido, acompanha Dona Mariquita,
que ela te diz qual é o teu quarto.
- Então adeus a todos,
tive muito gosto em conhecê-los.
- Nós também; aparece
um dia por cá, serás sempre bem recebido.
- Obrigado, Agostinho.
Desejo-te felicidades Josefa, e a ti também Clara.
- Que Deus te proteja
se fores à guerra, eu vou rezar muito por ti.
- Nunca te esquecerei
Clara.
- Então rapariga, a
chorar? Parece que te estás a despedir de um irmão!
- Não sei o que se
passa, mãe; estou com tanta pena do Cândido se ir embora!
// continua…
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