quinta-feira, 12 de março de 2020

LEMBRANÇAS AMARGAS
 
romance
 
Por Joaquim A. Rocha





// continuação…
XXXVI

 
Não busques, se não queres encontrar.

      Eis-me na Galiza. Como veem, a minha timidez, e a minha falta de dinheiro, não me impediram de aqui chegar. Lá diz o ditado: «quem corre por gosto não cansa e quem procura sempre alcança.» É de facto um passo importante na minha vida, pois vou tentar conhecer o meu progenitor e os meus irmãos espanhóis, se os houver. Querem assistir a tudo?
 

- Gostaria de saber se mora aqui no Porrinho um senhor chamado Olavo Augusto Meliças; é português, natural de Cendre.
- Não sei, é melhor perguntar ali na venda, o senhor Manolo conhece toda a gente.
 



- Senhor Manolo, por acaso conhece…

- O Meliças vive fora da povoação, trabalha na quinta de Don José Hernandez.  

- Como chego lá?

- Tens coche?

- Não, vim de camioneta.

- Ainda é longe. A pé levas duas ou três horas.

- O pior é que é quase noite.

- O melhor que tens a fazer é comer e dormir na pousada e de manhã cedo arrancas.

- Ele costuma aparecer por aqui? 

- Costumava. Merca tudo na minha loja, pero agora manda aqui um filho.

- Que idade tem esse rapaz?

- O Agostinho terá dezasseis, dezassete anos. Até se parece um pouco contigo. É moreno como tu, cabelos negros, até pareceis irmãos!

- O senhor Meliças tem mais filhos, além desse?

- Mais um rapaz, Pepe, e duas chicas: a Clara e a Josefa, por sinal mui guapas.

- Eu sou filho dele, mas não é por isso que estou aqui, venho avisá-lo de que o pai está doente e vai ser internado num asilo, ele tem estado na minha casa, mas agora vou para o serviço militar.

- Bem me parecia que havia aí parentesco, pero não sabia que ele deixara filhos em Portugal.

- Somos dois, o meu pai viveu cinco anos com a minha mãe; depois casou com esta senhora galega.

- Com Mariquita. Não sei se fez bem, que esta trata-o mui mal, segundo dizem.

- Quando viveu com a minha mãe era muito novo, depois os pais meteram-lhe na cabeça que não devia casar com ela; enfim, águas passadas.

- Vai-te então; a pousada é logo ali na outra rua, tive muito gosto em conhecer-te.

- Obrigado pela informação senhor Manolo, que Deus lhe pague.  

 


- É aqui que mora o senhor Olavo Meliças?

- E que lhe queres?!- Eu venho da parte do pai dele, o senhor Agostinho Meliças.
 
- Que se passa com Agostinho?


- Bem, ele está doente…

- E como descobriste onde moramos?

- Foi o próprio senhor Agostinho que me disse, ele recebeu uma carta sua e do seu marido…

- Uma carta?

- Sim, de há dez anos, vocês prometiam ir a Cendre visitá-lo.

- Já me tinha esquecido. Vou chamá-lo. Olavo! Tens aqui um chico que te quer falar.

- Que me quer?

- Vem aqui perguntar-lhe.

- Que me queres?

- É acerca de seu pai, ele está doente, quase que não pode andar, e eu vou levá-lo para o asilo.

- Para o asilo?

- Sim, mas ele não quer ir, diz que aquele lugar é como uma prisão, gostava mais de vir viver convosco.

- Agora que está velho e doente é que quer vir para minha casa! E a minha mãe, como está?

- A sua mãe já morreu, faz dois anos; sofreu muito por você não estar ao lado dela na hora da morte.

- Como sabes tudo isso?

- O senhor Agostinho mora na minha casa, andava a mendigar pelas ruas.

- Na tua casa?!

- Sim, mas agora tenho de ir para o serviço militar, a minha mãe não pode tomar conta dele, nós somos pobres, e ela tem de sair de casa para ganhar o sustento.

- E metes em casa um velho sem te ser nada?!

- Ele ainda é meu parente.

- Teu parente?

- Sim, mas eu não venho de tão longe para falar de mim, queria que me dissesse se o vai buscar.

- Papá, quem é este rapaz?

- É da minha terra, de Cendre, traz-me a notícia de que teu avô paterno está doente.

- E a avó?

- Morreu.

- Coitada! Nem sequer cheguei a conhecê-la; que pena eu tenho dela.

- Nunca quiseram lá ir visitá-la!

- Não diga isso, papá; sabe bem que não tínhamos dinheiro para os transportes.

- Iam de comboio até à Frieira, que fica barato, depois iam a pé, olha que eu palmilhei muita légua a pé.

- Papá, este rapaz parece-se com o Agostinho!

- Há muita gente parecida. Como se chamam os teus pais?

- Eu não tenho pai!

- Não tens pai? Então como nasceste?!

- Nasci duma mulher, como nascem todas as crianças.

- E como se chama a tua mãe, posso saber?

- A minha mãe não é para aqui chamada; eu apenas quero saber se vai buscar o meu…

- O teu quê?

- O seu pai. 

- Claro. Se o velho não quer ir para o asilo trazemo-lo para aqui; uma malga de caldo haverá sempre. Tu quedas em minha casa esta noite e de madrugada partimos.

- Posso ir também, papá?

- É melhor não, as terras têm de ser trabalhadas, além disso não temos duros em demasia. Quando te der jeito prepara no quarto do Agostinho uma enxerga para o teu avô.    
 
 


- Como te chamas?

- Chamo-me Cândido.

- Que fazes? És camponês?

- Não; tenho uma pequena oficina de sapateiro.

- Tua?

- Sim; o meu patrão emigrou para França e então eu fiquei a trabalhar por conta própria.

- Ganhas bem?

- Nem por isso; vai dando para o dia-a-dia, os clientes não podem pagar muito, não têm dinheiro. Portugal é um país de gente pobre. E tu, como te chamas? És a Clara ou a Josefa?

- Sou a Clara, tenho dezoito anos de idade, e trabalho nos campos, como vês. 

- Podias ir para a vila, ou para a cidade, aprendias uma profissão, costureira, por exemplo.

- A minha mãe não me deixa sair daqui; diz que nas cidades as chicas se perdem!

- Umas sim, outras não. E a tua irmã, a Josefa, onde está?

- Anda nas regas, ela e o Agostinho; só regressam à noite.  

- Tu és muito bonita, Clara.

- Não me digas isso; eu julgo-me feia, mais bonita do que eu é Josefa.

- Que idade tem ela?

- Vai fazer vinte anos; já tem noivo, é um jovem carabineiro.

- Então quando se casar vai para a cidade.

- Vai para Tui, uma cidade mui bonita, por acaso.

- Tu qualquer dia também arranjas noivo.

- Sou nova; daqui a uns anos. E tu tens namorada?

- Tive; trocou-me por outro, por um emigrante.

- Nunca faria essa maldade ao meu namorado;

- Ela lá teve as suas razões; sabes que ainda não fiz o serviço militar, vou andar por lá três anos, terei – quase de certeza absoluta – de ir combater em África: Angola, Moçambique ou Guiné, posso levar um tiro, morrer ou ficar ferido, quem sabe?

- Mesmo assim, se era tua noiva, se gostava de ti, não deveria ter feito isso! Nós, as mulheres, não somos todas iguais.

- Tens razão; quando se gosta a sério não se pratica um ato dessa natureza.

- Não vais esquecê-la tão cedo.

- Enquanto viver não a esquecerei, a mágoa que sinto é muito grande.

- Coitado! Mesmo sem a conhecer, já sinto por essa rapariga raiva. Olha: já vem ali Josefa e Agostinho, vou-tos apresentar. Este aqui é um rapaz português, da terra do nosso pai, seu nome é Cândido.

- Que veio aqui buscar?

- Veio avisar-nos de que o avô Agostinho está doente, o pai vai amanhã buscá-lo. Não é parecido com este?

- Muito semelhante. Ponham-se à beira um do outro. Assim! Meu Deus, que semelhança! Até nos olhos!

- Isso não quer dizer nada; há imensas pessoas parecidas.

- Venham cear. Tu, Clara, trata da mesa.

- Está bem, mãe. Cândido: vem comigo, ajudas-me.

- Com todo o gosto; já estou habituado.

- Nunca mais nos vamos a ver.

- Provavelmente não; só se eu vier cá visitar o avô.          

- O meu avô?

- Sim, quem havia de ser?

- Como disseste o avô!

- Chamo-lhe assim porque gosto dele e é velho.

- Ah!

- Tu nem sequer o conheces, Clara.

- É verdade; há tantos anos que ando a pedir ao papá para lá me levar e ele foi sempre adiando.

- Agora já o vais ter aqui à tua beira.

- Que pena a avó ter morrido. Como era ela?

- Eu não sei se a conheci, não me lembro; saí de Cendre com seis anos de idade. O teu avô mostrou-me uma fotografia dela quando era nova; não era nada feia, tu pareces-te um pouco com ela.

- Achas?

- Muito parecida!

- Não sei porquê, mas parece-me que já te conheço há muito tempo, que crescemos juntos, ao pé de ti não me sinto inibida!

- Eu também me sinto bem a teu lado; sou normalmente acanhado com as raparigas, mas contigo não!

- Meninos: vão-se deitar que amanhã temos de partir cedo. Tu, Cândido, acompanha Dona Mariquita, que ela te diz qual é o teu quarto.

- Então adeus a todos, tive muito gosto em conhecê-los.

- Nós também; aparece um dia por cá, serás sempre bem recebido.

- Obrigado, Agostinho. Desejo-te felicidades Josefa, e a ti também Clara.

- Que Deus te proteja se fores à guerra, eu vou rezar muito por ti.

- Nunca te esquecerei Clara.

- Então rapariga, a chorar? Parece que te estás a despedir de um irmão!

- Não sei o que se passa, mãe; estou com tanta pena do Cândido se ir embora!   
 
// continua…
 


 

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