MELGAÇO: Padres, Monges e Frades.
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Luís Filipe G. Pinto Rodrigues |
Introdução
Todas as religiões nascem, vivem, e
morrem, tal qual como qualquer ser vivo. A razão principal de isso acontecer, é
porque foram forjadas pela espécie humana, que tudo cria e tudo destrói. Acontece
que o cristianismo, ao longo de centenas de anos, tem passado por crises
tremendas, mas a sua resiliência é forte, e vai sobrevivendo, embora com muitas
dificuldades. Hoje, século XXI, esta religião, designada por cristianismo, com mais de dois mil anos de existência, está impressionantemente
ramificada. No seu seio coabitam os católicos (franciscanos, dominicanos,
carmelitas, jesuítas, etc.), os protestantes, os ortodoxos, os mórmons, testemunhas de
Jeová, etc.
Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 13, de
19/5/1929, escrito por um senhor que assina Carlos de Castro: «Perdão, leitores, mas quando vejo certa
gentalha avançar orgulhosamente na questão religiosa, sinto umas certas
irritações nervosas… Essa canalha só fazia uma linda figura em uma sapataria
[oficina de consertos], mas nunca numa questão de tanta dificuldade. Muitos só
discutem do que menos sabem. É de ver as asneiras horripilantes proferidas por
quem devia ter mais juízo na pobre bolinha…»
Comentário:
esse senhor Carlos de Castro pode ter razão, mas se todos discutissem apenas
sobre aquilo que julgam saber, os discursos, as conversas, os famosos serões,
reduzir-se-iam a quase nada, pois o domínio de uma ciência, de uma arte, etc.,
não está na posse de todos. Não é por acaso que uma grande parte dos
portugueses fala quase toda a semana de desporto, sobretudo de futebol. Como
substituir esse tema? A equipa A ganha? Os adeptos da equipa adversária logo
dizem que a equipa de arbitragem os roubou. Em lugar de discutirem futebol
poderiam discutir religião. Mas como começar? Vamos pôr em causa o deus dos
cristãos? Dos muçulmanos? O deus dos israelitas? Não! Deixá-los estar
sossegados. No entanto, os doutores da igreja católica escreveram imensas
páginas sobre o assunto. Não eram “gentalha”; eram sábios e santos. Tratam os
deuses por tu. Nós, os pigmeus, não devemos falar sobre temas que estão acima
do nosso ínfimo saber; o caminho para o conhecimento do divino terá de ser
percorrido caminhando sobre o tapete vermelho estendido pelas diversas igrejas.
Somente o bispo, o cardeal, o papa, e quejandos, poderão, depois de muito
estudo, iniciar a sua longa, ou curta, caminhada para o céu. Os outros, a
maioria, irão, depois da sua morte terrestre, para um sítio chamado purgatório,
onde esperarão pelo juízo final. Enfim, teorias mais ou menos bem elaboradas,
as quais se espalharam por todo o planeta, sobrevivendo a diversas crises ao
longo dos séculos, sobretudo a algumas guerras religiosas. ***
O tal senhor, Carlos de Castro, continua a
especular sobre assuntos religiosos. Leia-se o Notícias de Melgaço n.º 19, de
30/6/1929: «O raiar de uma nova aurora. No
estado caótico do labirinto social cruzam-se (e triste é dize-lo) as mais
perniciosas ideias. A liberdade, essa estrela rutilante proclamada pelos corifeus
da Revolução o astro ídolo é uma utopia, uma quimera… A sociedade atual
debate-se, talvez no último arranco para o Cristianismo… Pobre povo! És a
eterna criança. Quantas vezes, és levado, a pontapés, por esses bandidos que,
criminosamente, se dizem filantropos. Voltaire, o patriarca da incredulidade,
dizia: “o povo, é preciso levá-lo a pontapés; e é o que eu faço.” Uma lógica
irracional, esses corifeus do ateísmo, atiram para o mundo com essas funestas
ideias, que vêm destruir o que há de mais sagrado no organismo social. Quanto
há a fazer! Eles, eles mesmo por Voltaire clamam: “Ai de nós se o povo chega a
raciocinar.” Rousseau, esse terrível demagogo, diz: “Não olho nenhum dos meus
livros sem tremer; em vez de instruir, corrompo; em vez de alimentar, enveneno,
mas perde-me a paixão e com todas as minhas belas páginas não passo de um
celerado!” Em Portugal, nesta linda varanda da Europa, também houve desses
homens, que abalaram a pobre sociedade; mas, numa hora feliz, a quase
totalidade morreu nos braços da Religião Católica. Não, não é Renau (!) que
fará o elogio fúnebre da Religião Cristã, mas há de ser Cristo o seu
panegirista. Admirando esse regresso a Roma e à religião das grandes sumidades
mundiais (e é a quase totalidade) que eu quero saudar com milhões de vivos e
biliões de mortos a Cristo Rei. – Viva Cristo Rei.» ***
A religião, do meu ponto de vista, não é
arte, nem ciência; é uma crença, onde a imaginação predomina. Também é um
grande negócio, sustentando milhões de seres humanos ao longo dos milénios.
A igreja católica já
tem muitos séculos de vida, mas no sítio chamado Melgaço deve-se ter instalado,
salvo erro, na segunda metade da Idade Média. Lê-se em “As Freguesias do
Concelho de Melgaço nas Memórias Paroquiais de 1758”, página 521: «A
organização do território em paróquias, um processo iniciado por São Martinho
de Dume – século VI – e consolidado por São Frutuoso – século VII – foi
decisivo. A rede de igrejas e povoados estabelecida nestes dois séculos teve em
conta o legado romano e persistiu até aos séculos XI/XII, até porque a
influência islâmica no Alto Minho foi nula…» // Como o país designado Portugal
surgiu no século XII, e Melgaço já dele faz parte, será a partir desse século
XII que eu incluirei os padres que aí exerceram a sua atividade. No entanto,
temos de ter em conta que primeiro surgiram os mosteiros, antes da
nacionalidade, mas até esses, o de Fiães e o de Paderne, foram construídos em
terrenos pertencentes ao condado portucalense e mais tarde ao termo de Valadares,
com o estatuto de coutos, estes com os seus imensos privilégios. Diz-se que os seus
abades eram senhores poderosos, com muita autoridade, seja na área da justiça,
seja no espiritual. Somente no século XIX, devido a uma grande reforma
administrativa, é que essas duas freguesias (Paderne e Fiães) passaram a pertencer ao termo de Melgaço, aumentando o pequeno
concelho, de apenas oito freguesias, para dezoito. Quanto ao convento dos
franciscanos, dedicado à Senhora da Conceição, sito no lugar das Carvalhiças,
SMP, esse foi fundado já no século XVIII, a pedido de alguns melgacenses. Todos
eles, os que se encontravam ativos, foram encerrados a 30/5/1834, por um
decreto de Joaquim António de Aguiar (conhecido por Mata Frades), assinado pela rainha D. Maria II.
As freguesias, ao longo dos anos, tiveram
de se ir organizando, construíram-se igrejas e capelas, alojamento para os
sacerdotes, enfim, criou-se o mínimo de condições para que os religiosos
conseguissem sobreviver e trabalhar no seu múnus com alguma dignidade. A
côngrua (imposto que, por meio de contribuição ou
derrama paroquial, se dava a curas e párocos para viverem, nas freguesias onde
não havia os dízimos eclesiásticos) ia
dando para o dia-a-dia, mas nas freguesias mais pobres os párocos passavam algumas
necessidades, valendo-se quantas vezes do recurso a uma horta, que cultivavam, ou
alguém por eles, para compensarem a falta de dinheiro a fim de comprarem certos
produtos. É certo que os paroquianos davam aquilo que podiam, mas sendo gente
pobre não lhes era possível ajudar mais.
A maior parte dos sacerdotes até meados do
século XX provinham dos meios rurais. Os seus pais desejavam que alguns dos seus
rapazes fugissem ao trabalho duro e ingrato da agricultura; com algum esforço, vendendo,
se fosse necessário, um campito, lá conseguiam que eles ingressassem no
seminário. Ali teriam alimentação, estudavam, e se conseguissem terminar o
curso, eram normalmente colocados em uma freguesia como párocos. Aqueles que
abandonavam a carreira eclesiástica sempre teriam hipótese de arranjar um
emprego em um qualquer ministério do Estado, na banca, nos seguros, etc…
Lê-se no Diário do Minho de 23/10/2019, na
sua folha “Cultura”, escrito pelo padre Silva Araújo: «a primeira vez que entrei no Seminário de Nossa Senhora da Conceição (seminário menor) foi em agosto de
1947, quando fui fazer o exame de admissão. Acompanhou-me um seminarista mais
velho, o Francisco Dias de Azevedo, que veio a ser pároco de Balasar. Vivia em
Oliveira Santa Maria, arciprestado de Vila Nova de Famalicão, e era irmão de um
companheiro de trabalho do meu pai. Daí o meu pai ter-lhe pedido que me
preparasse para o referido exame. Diversas vezes fui, a pé, de Gondar a
Oliveira Santa Maria, para receber explicações. Aprovado no exame, orientado
pelo Francisco Dias de Azevedo, fiz o requerimento para admissão ao Seminário.»
Entrou no seminário a 14/10/1947,
acompanhado de um atestado do pároco da sua freguesia natal e também um
atestado médico. «Éramos 168; neste
número incluídos os repetentes, e fomos distribuídos por três turmas.» Candidatos
a padre, havia oito do concelho de Melgaço. De Monção, eram doze. Diz-nos ele:
«Trouxe comigo uma mala de madeira, que
me acompanhou durante toda a vida de seminarista e guardo religiosamente na
casa que foi dos meus pais, em Gondar. Tinha ido com meu pai comprá-la a (…)
Famalicão, à feira de São Miguel (…) à vinda, já noite, só tivemos transporte
até à Santana (…) Viemos a pé para Gondar. O meu pai, com a mala às costas.»
Essa mala serviu para ele levar o enxoval. Confessa: «foi custosa a entrada no seminário e a despedida do meu pai; como tinha
sido custosa, em casa, a despedida da mãe e das quatro irmãs.» Queixa-se: «Era uma sala frigidíssima, com o chão em
cimento, onde não havia tapetes (…), que foi utilizada por muitos de nós como
dormitório...» Mais à frente: «recordo-me
de uma valente bofetada que me deu o padre Ferreira da Silva por ter, à
merenda, pegado em dois trigos…» E ainda: «um dos males que me recordo era realmente o dos acusa pilatos; meninos
que (talvez para serem
agradáveis ao prefeito) denunciavam os companheiros; se os prefeitos lhes davam
ouvidos ou não, não sei.» E queixa-se outra
vez: «A quem se enganasse nas contas, ou
pretendesse comprar algo de que, em seu entender, não precisava, além de
recusar o fornecimento dos objetos o padre Job não se dispensava de, conforme a
pedagogia do tempo, distribuir uns sopapos, ou mandar a caderneta pelo ar.»
Quanto ao refeitório: «a meio da mesa
sentava-se o trinchante (…) que distribuía a comida; como tinha o poder de
deitar mais ou menos sopa, ou distribuir os melhores bocados, e porque nem
sempre agia com imparcialidade, era alguém para quem se olhava com certo temor,
sobretudo quem era mais pequeno, como era o meu caso.»
À refeição, o silêncio era sagrado, salvo
raras exceções; antes dela, rezava-se. A merenda, constava apenas de um pão,
como na tropa. «Papel higiénico era coisa
que não existia nas instalações sanitárias», conta-nos ele. Desabafa: «Tomávamos banho uma vez por semana, em um
balneário situado debaixo do topo sul do salão de estudo.»
No Diário
do Minho de quarta-feira, 20/11/2019, página V, o padre Silva Araújo afirma: «Também havia professores que nem sempre
tratavam os alunos com o devido respeito.» // No dito número do jornal,
página III, lê-se: «Este (padre Manuel Ferreira) ao referir o texto bíblico que
fala da criação da mulher a partir de uma costela do homem, exclamava: - “daqui se conclui que foi a mulher que saiu
do homem e não o homem que saiu da mulher.” // No Diário do Minho de
quarta-feira, 30/10/2019, página III, o referido sacerdote lembra: «Alguns dos professores nem sempre
manifestavam o devido respeito pelos alunos, ridicularizando-os quando, nas
chamadas, não respondiam com acerto.» // Na mesma página do dito jornal,
fala-nos de um padre poeta, engraçado, mordaz. Chamava-se Manuel José Lopes,
mas usava o pseudónimo de Manuel Dume. Um dia foi acusado pelo padre Manuel
Faria Borda «de ter copiado uma das
músicas das suas peças de teatro…» Respondeu-lhe à letra: «o c… piar é uma desgraça/que acontece a toda
a gente/quando o c… pia, que faça/cada um por ser prudente.»
A questão dos padres que se apaixonaram
por raparigas e nelas geraram filhos, isso, quanto a mim, não é nada que cause
espanto, pois um padre é um homem, com desejos, com necessidades, com paixões.
É certo que juraram perante os livros sagrados, o seu Deus, os seus superiores,
a lei canónica, que se manteriam castos. Na altura, com vinte e poucos anos de
idade, sem experiências mundanas, na idade da ilusão, tudo se promete; o pior é
quando um moço, bem-falante, bem vestido, comparado com a maior parte dos
habitantes locais, se apresenta perante um conjunto de pessoas, entre elas
raparigas bonitas e casadoiras, desejosas de serem beijadas, abraçadas por um
jovem da idade delas. A maioria dos padres resiste a essa tentação, agarra-se à
sua fé, teme o castigo divino, pede a todos os santos que o protejam, mas há
sempre uma minoria que se deixa levar pelo desejo. A consequência surge-nos à
vista: a rapariga fica grávida, vai ser mamã… Os vizinhos logo perguntam: - quem é o pai? As reações variam: uns
acham normal, é mais um miúdo, ou miúda, filho, ou filha, de pai incógnito;
outros, os mais beatos, ficam irritados, para eles esta situação é insuportável,
pois os padres são ministros de Cristo, têm de ser exemplares, não devem
cometer pecados dessa gravidade. O grande argumento do Papa e seus conselheiros
para não deixarem casar os sacerdotes é o seguinte: os religiosos, sendo
solteiros, com autonomia, sem responsabilidades familiares, podem dedicar aos
crentes vinte e quatro horas por dia; se fossem casados, com filhos, esse tempo
seria inevitavelmente dividido, repartido entre crentes e família, logo a
eficácia, a prontidão, seria por vezes nula. Decidir sempre foi difícil. Neste
caso concreto, o que se ganharia de um lado, perder-se-ia por outro. Quanto a
mim, embora leigo nestas matérias da religiosidade, a solução, ou parte dela,
seria encontrada através de seminários para raparigas, e o casamento de todos
aqueles religiosos que o quisessem realizar. Se algumas mulheres estudassem
para “madres” (padres do sexo feminino), o número de religiosos aumentaria exponencialmente, e as
crianças que nascessem de “madres” ou padres, seriam legitimadas, teriam um
lar, seriam como outras quaisquer crianças. Desapareceria o ferrete: «és filho de um padre», como se isso seja
algum crime hediondo. Enfim, as coisas vistas por este prisma parecem
relativamente fáceis, mas a Igreja Católica, como acima se disse, tem muitos
séculos de existência, tem as suas leis, elaboradas por grandes pensadores, os
seus princípios, e não vai ser fácil introduzir novos conceitos, novos rumos, a
uma instituição conservadora por natureza. O risco é sempre relativo, mas
existe. As mudanças são quase sempre dolorosas.
Neste livro não constarão todos os padres,
frades, monges, que exerceram a sua atividade em Melgaço, fossem ou não
naturais do concelho. Não foi uma deliberação fácil de tomar: o motivo
principal é eu não ter tempo para encontrá-los a todos. Investigo há cerca de
quarenta anos, tenho editado alguns trabalhos, uns mais elaborados, outros mais
ligeiros, mas a investigação é morosa e cara. Os monges de Fiães e de Paderne
que me perdoem, mas não vão aqui figurar na sua totalidade. Outros
investigadores poderão prosseguir neste caminho agora iniciado. Algumas pessoas
poderão interrogar-se: - que raio de
interesse tem o assunto deste livro? Bem, o livro é composto por pequenas
biografias de padres, monges e frades, homens religiosos que batizavam,
casavam, confessavam os crentes, acompanhavam funerais, doutrinavam crianças,
jovens e adultos, a fim de se tornarem bons cristãos, intervinham, e intervêm,
na vida quotidiana da comunidade. Nem todos foram, ou são, exemplos de virtude,
alguns erraram, como todos nós; mas o seu papel na sociedade não é de somenos.
Ajudaram a criar um modelo de sociedade, para o bem e para o mal. Quase que a
ninguém, nem mesmo aos incréus, passará pela cabeça um dia ver uma freguesia,
sobretudo no norte e centro de Portugal, sem um pároco. É certo, que hoje em
dia existem milhares de religiões espalhadas por todo o planeta, a oferta
religiosa é enorme, mas o catolicismo ganhou raízes, adaptou-se à maneira de
viver e sentir das populações, já faz parte do tecido social, construindo pontes
entre o humano e o divino, embora este, para alguns, emane do primeiro.
Gostaria de ver as biografias mais
desenvolvidas, mas não foi possível; os documentos são escassos, e aqueles que
existem são pouco abundantes em dados biográficos. A imprensa em Melgaço só
surgiu no século XIX, e a maior parte dos jornais dessa altura foram destruídos
ou, pela sua fragilidade, não podem ser consultados. Os arquivos municipais são
recentes, o espaço dos antigos edifícios camarários era por norma exíguo, por
isso, milhares e milhares de documentos foram destruídos pela incúria dos
homens. Enfim, temos de aproveitar o que restou, e conservar os que se vão
produzindo, para que no futuro se possa conhecer o passado. // continua...
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