MELGAÇO: Padres, Monges e Frades
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Luís Filipe |
// continuação...
No livro
do Dr. Augusto César Esteves – “Melgaço, Sentinela do Alto Minho”, II parte,
Melgaço e as Lutas Civis, 1820-1910 – 1.º volume, páginas 134 e 135, podemos
ler um ofício enviado pelo Governador Civil do distrito, Oliveira Pimentel, com
data de 13/2/1836, ao administrador do concelho de Melgaço, António Máximo
Gomes de Abreu: «Sendo certo que nos tempos
calamitosos do governo usurpador alguns eclesiásticos, fiéis defensores daquela
infame causa, abusaram do púlpito e do confessionário, semeando entre os povos
ideias perniciosas e falsas contra o sistema, que felizmente nos rege,
maculando o sagrado do seu magistério com as erradas máximas, que acreditavam
entre os ignorantes, e vertendo entre toda a família portuguesa o fel
pestilento das discórdias e prevenções danosas, que rasgaram o seio da pátria,
e a levaram à borda do abismo em que seus degenerados filhos atentaram
sepulta-la; tendo chegado o tempo em que tais embustes podem ser exercidos por
alguns que ainda mostram depravados sentimentos de desafeição ao governo
legítimo; e convindo que o primeiro eclesiástico que sair da órbita de suas
pias e religiosas obrigações, aconselhando no confessionário, ou publicando do
púlpito, doutrinas falsas e opostas ao respeito devido à Rainha e à Carta, seja
severa e prontamente punido com todo o peso das leis, ordeno a V. S.ª que ponha
em prática todo o seu costumado zelo e interesse pela causa da pátria, para que
o primeiro abuso seja imediatamente castigado, designando pessoas zelosas e de
merecido conceito para que espalhadas pelas freguesias do concelho que V. S.ª
administra possam obter quaisquer informações sobre a conduta dos sacerdotes
que confessam, avisando-me de toda a ocorrência extraordinária e fazendo prender
em flagrante aquele padre que, surdo ao seu dever e à lei, comete o horroroso
atentado de louvar um sistema odioso, ou de insinuar quaisquer ideias que lhe
possam ser favoráveis e fazer alguma impressão entre os povos ignorantes.»
*
«O ministério
do duque da Terceira, no poder desde 20 de abril, procurou garantir o exercício
dos respetivos direitos a toda a gente, e em todos os campos; mas o clero
abusava muito da faculdade de chamar os fiéis por meio dos sinos para
assistirem aos atos do culto. E como na altura houve sérias reclamações por os
sacristães exorbitarem no uso do badalo, em agosto de 1836 foi legalmente
regulado em poucos e sábios artigos o toque dos sinos» (obra citada, p. 136)
*
Lê-se no Jornal de Melgaço n.º 1308, de
17/10/1920: «Realizou-se na penúltima semana a carreja do senhor padre, como aqui
usa dizer-se. Consiste essa carreja na condução da lenha para a porta da casa
do pároco, lenha que lhe é oferecida pelos seus paroquianos. Assisti este ano a
essa carreja, que eu nunca tinha visto, e fiquei deveras encantado. Vêm os
carros em cordão até perto da portada paroquial, produzindo uma verdadeira
música no seu cantar, música talvez de oitenta instrumentos, tal era o número
dos carros. Vão entrando com mudança de andamento (relentando) e depois tudo trabalha ativamente. Desatam uns, outros atiram para a
meda encastelada a lenha que doze pulsantes homens vão cuidadosamente
assentando, os primeiros vão entrando para a sala onde os aguarda mesa lauta, e
vão comendo para deixar canto aos restantes que depois vão entrando e comendo
em grupos, visto não caberem ao mesmo tempo na sala. Apesar de não ter sido o
ano abundante em vinho, aquela mesa não se ressente dessa falta, vendo girar
constantemente as malgas cheias dessa deliciosa bebida que nós hoje tomamos
como remédio. Ao fim, o pároco distribui por toda aquela gente cigarros em
abundância, e depois de um agradecimento recíproco, aquela gente retira,
enquanto o seu pároco da janela contempla a meda, vendo nela quanto carinho lhe
dedicam os seus paroquianos.» – Parada do Monte, 15/8/1920, correspondente.
*
Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 22, de 21/7/1929, página 5, um artigo
curioso de Carlos de Castro: «O raiar de uma nova aurora. // Se por um
lado temos homens de uma admirável transcendência, infelizmente a filosofia da
Enciclopédia e os vastos compêndios da Biblioteca Geral Alemã, vieram paralisar
os espíritos e desdenhosamente maltratar a ciência. A essa tempestade não
escapou o nosso Portugal, pois nas universidades, como nas escolas primárias,
ora víamos o mais frio indiferentismo, ora o mais rígido ateísmo. // Antero de
Quental, a vítima mais ilustre e simultaneamente a mais miseranda de todas
essas correntes, era por isso mesmo um enigma. As ideias macabras vindas da
Alemanha, dos grossos compêndios de Haeckel (Ernst Haeckel; alemão –
16/2/1834-9/8/1919), Darwin, Kant, etc., de mistura com as vindas de França –
Voltaire, Rennan, Rousseau, Diderot – fizeram desse vulto um cético (elas eram tantas)! Sim, as ideias
propaladas por esses corifeus (de
todas as cores) eram baixas, e tão baixas, que Antero não pôde encostar
tranquilamente a sua cabeça macerada por criminosos estudos, na mão de Deus, na
sua mão direita. // Por fim, a morte estiolou essa vigorosa mentalidade, que
pedia luz, para ver qual dessas correntes era a mais límpida, a mais clara… //
Raros, muito raros, eram aqueles pedantes que tinham uma ideia clara sobre a
religião. Os sábios, porém, de caráter, trilhavam serenamente o caminho traçado
pelo nazareno: de cento e cinquenta sábios do século XIX cem eram católicos,
vinte e cinco acreditavam na existência de Deus, e sobre os outros nada se sabe
por falta de documentos comprovativos. // Sim, não nos iludamos; a religião
teve a seu lado vultos como Pasteur, que não se envergonhava de se incorporar
nas procissões religiosas e de rezar publicamente o seu terço. // Se fosse a
manifestar os nobres sentimentos desses vultos… Para outra ocasião. // À
tempestade sucedeu a bonança e foi então que Olle Laprune (Léon Ollé-Laprune – francês;
25/7/1839/13/2/1898) exclamou: - “O pensamento moderno volta a Cristo e Cristo
vai retomar o império.” // Maritain (Jacques
Maritain – francês; 18/11/1882/28/4/1973) exclama: - “A elite pensante orienta-se, mais
nitidamente do que em nenhum outro momento, desde há dois séculos, para o
cristianismo.” // Como os preâmbulos já são longos, vamos provar
historicamente, e já é tempo, a tese que para tal fim propus…» // Nota: segue-se um longo poema de António Correia de Oliveira, com o
título “Verbo ser e verbo amar”.
Pode
ler-se no Notícias de Melgaço n.º 25, de 11/8/1929, um artigo pseudocientífico,
assinado por Atanásio (desconhece-se o nome verdadeiro, mas tudo leva a crer
tratar-se do padre Justino Domingues – 1912/2004 – o qual era conhecido no
Seminário de Braga por Santo Atanásio): «O Homem e a Besta: consanguíneos? –
Todo o ser vivo nasceu de outro ser vivo, e toda a célula deriva de outra
célula – eis dois adágios ditados pela razão, e pela experiência, e que
constituem o princípio basilar das ciências biológicas e a lei fundamental que
rege o mundo dos seres vivos. // A matéria eterna, que os transformistas
inventaram para base congénere do seu sistema, é um absurdo. Pois concebe-se lá
que a matéria, que a experiência nos mostra que é contingente, mutável e
finita, seja eterna, quando por outro lado a razão nos diz que o ente eterno é
por definição mutável, absoluto, independente, necessário por natureza e
infinito em perfeição? // É uma contradição nos termos e uma irredutibilidade
nos conceitos. // Demais, restringindo o âmbito desta vastíssima questão, e
concentrando a nossa atenção somente no problema da origem do homem, se este
derivou da evolução de uma espécie inferior, do macaco por exemplo, para
falarmos só do animal que mais se aproxima da espécie humana, onde estão as
inúmeras formas intermédias por que o corpo do homem havia necessariamente de
passar na sua evolução gradual para atingir o estado em que desde há muito
cristalizou? Nem ao menos se encontra no estado de fósseis? // A paleontologia
nas suas pesquisas porfiadas, em todas as escavações que tem levado a efeito
nas diferentes camadas geológicas, não encontrou ainda esqueleto algum que
pertencesse a qualquer desses tipos intermédios. Tem encontrado inúmeros
esqueletos humanos, asininos, etc., mas que fácil é reconhecer como tais. //
Pouco mais acrescentarei ao que fica dito, pois não tenho a pretensão de versar
adequadamente, nos estreitos limites de um artigo, suma questão vastíssima,
como é a origem da vida e a origem do mesmo homem. Bastará resumir o que tantos
naturalistas celebérrimos, e tantos filósofos de grande renome, têm ensinado em
todos os tempos. Mostra-nos efetivamente a anatomia e a fisiologia que o homem
[…] e só ele caminha, só dele é própria a posição vertical, ao passo que o
macaco é trejador [trejeitador?] e a sua posição habitual é a oblíqua: que o
homem e o macaco se desenvolvem por modo diverso e até contrário; que só o
homem é dotado de linguagem articulada, que só ele é capaz de exprimir por mil
modos graciosos os seus pensamentos e sentimentos, enquanto que o macaco só
sabe dar guinchos. // Mostra-nos ainda a observação científica que o homem é
dotado de inteligência racional, que lhe permite conhecer as coisas de sua
natureza espirituais, as coisas abstratas e transcendentes; que só ele possui
uma vontade espiritual que tem por objeto próprio o bem honesto – faculdades
estas que o tornam um ser essencialmente religioso, capaz de moralidade e de um
incessante progresso, enquanto que o [dito] macaco só conhece coisas materiais
e concretas e por um modo também material e concreto, que é incapaz de
verdadeiro progresso e continuará a fazer as mesmas coisas que fazia e do mesmo
modo por que as fazia há milhões de anos. // Ora, seres separados entre si por
diferenças tão radicais e profundas, evidentemente que não podem ter uma origem
comum. Logo, nenhum macaco (e a fertiori?) nenhum sapo, ou nenhuma lesma, são
irmãos do homem, quer no corpo, quer no espírito. Se alguém pretender sustentar
que descende da preguiça, ou do crocodilo, que tem dentes quase até ao
estômago, ou ainda de alguma víbora – e pode ter razões para assim pensar –
isso é lá com ele. // Pela minha parte, só tenho a dizer que o homem foi criado
imediatamente por Deus, como refere o livro do Génesis, e a Igreja tem ensinado
em todos os tempos, e que esta doutrina longe de ser contestada, ou seriamente
posta em dúvida, antes é confirmada pelo bom senso, pela sã filosofia e pela
verdadeira ciência.» ATANÁSIO.
Comentário: é compreensível esta
maneira de pensar, pois trata-se, salvo erro, do jovem Justino Domingues,
natural de Parada do Monte, freguesia do concelho de Melgaço, na altura
seminarista. Depois de 1929 muitas descobertas importantes foram feitas pela
arqueologia e por outras ciências. Quase toda a gente no século XXI aceita que
o ser humano descende de um animal que habitava na floresta, trepava às árvores
com facilidade. Um acidente natural obrigou-o a procurar outro habitat e
caminhando, pouco a pouco, foi adquirindo a forma que agora tem. Levou muito
tempo para isso acontecer, mas aconteceu. A fala também surgiu por necessidade,
nada acontece por acaso. Atanásio tinha razão: o ser humano não descende do
animal chamado macaco, mas sim de um seu parente afastado, cujo nome nós
desconhecemos. Na floresta ainda hoje vivem “índios”, a quem consideramos seres
humanos. Que semelhança têm eles connosco? Imensas, mas também possuem
bastantes diferenças. Logo, se tivesse sido um deus a criar o homem e a mulher,
tê-los-ia criado todos iguais, o que não aconteceu: uns são brancos, outros
negros, outros amarelos, outros vermelhos. Vivendo nós num planeta tão pequeno
justificar-se-ia esta variedade de cores? E porque é que algumas “raças”
aderiram à chamada civilização e outras mantiveram-se – e mantêm-se parte deles
- na selva, sem o mínimo de progresso e de conforto. Existem tribos em África,
por exemplo na Guiné-Bissau, cujas habitações são palhotas, sem luz, sem água
canalizada, etc. São humanos, sem quaisquer dúvidas, mas fora do tempo e do
espaço.
Lê-se
no Notícias de Melgaço n.º 126, de 5/10/1931: Com a
devida vénia transcrevemos do nosso prezado colega “O Exército” o seguinte: «Uma receita
abandonada. Parece que não é sem razão que o tesouro português apela com frequência
para os contribuintes, a todos exigindo sacrifícios, que nem sempre estarão de
harmonia com os rendimentos dos tributários. Mas é necessário que assim seja,
as finanças assim o exigem, e a hora é de sacrifícios para todos, dizem, e
nessa conformidade não há que regatear o dinheiro destinado a custear as
despesas públicas. Mas se a hora é realmente de sacrifício geral, se todos têm
de contribuir com a sua cota parte, mais ou menos em harmonia com os rendimentos
da natureza do seu ofício, não poupando o rico, nem o remediado, nem o pobre,
antes abrangendo comerciantes, industriais e agricultores de todas as
categorias, entrando inclusivamente no ordenado do proletário, funcionários,
civis e militares de todas as categorias e situações em que se encontram (ao serviço e reformados) e estes que atinge uma cifra que muito fica aquém do
suficiente para viver modestissimamente, é de inteira justiça que nenhuma
classe, que nenhum cidadão que beneficie das leis da nossa terra, deixe de
contribuir com o seu quinhão. Temos perguntado imensas vezes, a sós com o nosso
raciocínio, qual a razão por que as igrejas não pagam contribuição industrial e
os padres não são abrangidos no imposto de trabalho! Francamente, sinceramente,
não descortinamos o motivo que leva o Estado a abandonar esta receita que devia
ser importante, concorrendo assim para minorar as agruras do tesouro português.
É uma exceção injusta, que não se compreende, e uma proteção que bem modesta e
defende as demais pessoas que vão arrancar aos seus magros recursos a verba
necessária para contribuir para as despesas do país. Em toda a parte onde se
exerça uma profissão, se não estamos em erro, surge imediatamente o fisco a pôr
uma chancela, e a reclamar a percentagem que ao Estado cabe; e ninguém será
capaz de negar que a igreja não seja um estabelecimento onde se ganha dinheiro
e que o padre não ocupa aquele lugar apenas com o fim de materialmente governar
a sua vida, como proletário da fé… Não exageramos, nem fazemos chantagem. As
igrejas e o padre só não deveriam ser abrangidos pelas contribuições se a sua
missão, como nos tempos primitivos, fosse apenas impulsionada pelo ideal, como
o são hoje as diferentes escolas filosóficas e revolucionárias, onde, em vez de
ganhar, se gasta. Mas já vão longe esses tempos. São muitos os séculos que
rolaram após a transformação do templo da fé… em oficina de operário. Não será
empresa fácil o destacarmos atualmente um padre que o seja, pela pureza da sua
alma, animado apenas pela intenção de levar as almas para o reino do Senhor… Há
muitos anos que essa pátria ideal se encerrou hermeticamente às ambições dos
sagrados ministros da religião católica. Na igreja ganha-se dinheiro, muito
dinheiro, com a grande vantagem de não se tornar necessário empate de capital,
sujeito a oscilações, desvalorização, quebras, etc. E não é aceitável, não é
justo, não é equitativo, nem humano, que enquanto todos nós temos de pagar em
relação a nossos lucros e ordenados, muitas vezes hipotéticos, suas
reverendíssimas fiquem isentos desse dever cívico, rebolando-se de gozo. Que,
de resto, é talvez razoável, a contribuição a que estão obrigados, não para
auxiliar as finanças portuguesas, mas para sustentar e enriquecer, cada vez
mais, o Estado do Vaticano, país do Papa. O Senhor Ministro das Finanças, que
tem demonstrado energia no desempenho da sua missão, procurando justamente
encontrar recursos onde encontre elementos para isso, não reparou ainda
certamente neste grande lapso nacional, de deixar que uma enorme legião de
trabalhadores da igreja, que em grande maioria vivem em larga abastança, não
paguem ao seus país aquilo que lhe devem, deixando, em compensação, escorregar
somas apreciáveis, arrancadas em grande parte à gente humilde da nossa terra,
para o engrandecimento de uma nação que não é a nossa, e que se destina aos
templos do Vaticano e à corte [patriarcal?]. Lamego,
23/8/1931. António Vieira.»
Comentário: é curioso este artigo
escrito por um militar. Ele esqueceu-se contudo de um pormenor essencial: o
grande argumento da igreja católica para não pagar impostos nascia do facto de
os padres não terem ordenado, salário, ou vencimento; o que recebiam, e não era
pouco por vezes, dependendo das freguesias, umas mais ricas do que outras, era tudo
oferecido. A famosa côngrua é a prova disso mesmo: os párocos recebiam milho,
vinho, carne de porco, lenha, etc. Em casa do abade, nada faltava. Havia
exceções. Certas freguesias, sobretudo situadas na serra, tinham dificuldade em
produzir bens, pois o terreno era pobre, ingrato, e pouco dava, apesar do
esforço humano.
*
Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 159, de 31/7/1932: «CARTA DO PARÁ. Lembrando o passado. // Já lá vão quarenta anos quando em quinta-feira d’Ascensão, conjuntamente
com outros colegas de escola, e amigos de infância, pela estrada real afora, de
fatiota nova, alegres e brincalhões, íamos esperar as procissões de Penso, São
Martinho de Alvaredo, Remoães, Paderne, São Paio, Prado e Rouças, que – com os
seus altos e vistosos andares e os seus pendões panejando ao vento – vinham a
caminho da ermida da Senhora da Orada, com a multidão que os acompanhava,
visitar aquela milagrosa imagem, trazer-lhe as suas orações e preces, e
agradecer-lhe os benefícios que a mãe santíssima lhe dispensava durante o
decorrer do ano. // E ao som das bandas de música, que mais entusiasmo nos
despertava, também nos juntávamos à multidão, acompanhando-as até São Benedito.
E assim continuávamos até que do lado sul chegasse a última procissão. Por
último, seguíamos para a igreja matriz da vila, saindo para a Senhora da Orada,
acompanhando a procissão. // Com as procissões de Chaviães, Paços e Fiães,
terminavam os clamores que ali, todos reunidos, poder-se-ia calcular em oito
mil pessoas o número de devotos que naquele dia iam render as suas homenagens à
virgem santíssima da Assumpção. Após os atos religiosos, que constavam de missa
solene, sermão e procissão, o povo, em alegres ajuntamentos, abarracava-se
debaixo dos sombreados do arvoredo e saboreava as boas merendas que para esse
fim tinham sido preparadas, as quais, com a boa pinga, mais alegres tornavam os
forasteiros que – após essa necessária refeição – descia para o arraial, onde
diversas bandas de música executavam o seu variado reportório, em desafio, e
quase sempre terminava em pancadaria. // Nada faltava àquela majestosa
festividade, a primeira nesse género que se realizava anualmente por aquelas
redondezas, onde a crença católica predominava e cada vez mais a região
progredia. // Esses clamores de penitência, diziam os antigos, foram
instituídos no concelho de Melgaço por determinação de autoridade eclesiástica
superior, devido à seca e outros males que em anos muito remotos assolou as
freguesias do concelho tendo, por isso, os párocos, convidado o povo a fazer
penitência à virgem d’Assumpção, com os seus clamores, e invocarem a sua
proteção. // Daí em diante, anualmente, lá iam os clamores àquela ermida fazer
a costumada penitência, até que – [contra] (*) a vontade do povo – há anos
atrás, os párocos dessas freguesias, por quaisquer motivos por nós ignorados,
suspenderam essas procissões, ficando a ermida a ser só visitada pela procissão
da vila, que ainda hoje continua a render-lhe (à virgem) as suas homenagens. //
Quem diria que uma tradição religiosa tão antiga, feita com tanta fé, devoção e
brilhantismo, pela sua originalidade, e que tanto enobrecia o catolicismo,
havia de perder o seu brilho, a sua tradição, em virtude da obstinação dos
padres, não querendo mais acompanhar os clamores à Senhora da Orada. // Foram
eles os únicos causadores de não continuar tão esplendorosa festividade, que o
povo católico solenizava com tanta devoção! E são eles ainda, em parte, os
causadores da descrença que vai lavrando no povo, contra o catolicismo, por
esses factos e outros, [os quais vão contra os
princípios da religião] (**). // Mas se o povo de Melgaço, em questão de
crença, fosse igual ao do Pará, essas procissões continuariam a visitar a
Senhora da Orada, mesmo sem padres, como o povo de Pará fez com a procissão do
círio de Nossa Senhora de Nazaré, quando o arcebispo se negou a mandar padre a
acompanhar a procissão. Entretanto o círio fez-se, mesmo sem padre, porque o
povo assim o quis, e no ano seguinte – e ainda hoje – os padres prestam o seu
concurso, porque notaram que só teriam a perder [se
agissem contra] (***) a vontade do povo, que é soberana. E é justamente
o que deve fazer o povo dessas freguesias, para com este exemplo, chamá-los à
realidade e cumprimento do dever. Mãos à obra, e faça-se restabelecer uma
antiga tradição que tantos e tão grandes benefícios pode trazer à nossa região,
e que tantas saudades temos ao lembrar-nos do passado.» Pará, 12/7/1932 –
Melgacense. /// (*) No Notícias de Melgaço lê-se: «entre». ///
(**) No jornal está assim escrito: «… os quais vão do encontro à religião.» ///
(***) No jornal está escrito: «… só teriam a perder com a vontade do povo…» // continua...
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