VÁRIOS
Por Joaquim A. Rocha
MARINHO,
Abílio José. // Natural de Celorico de Basto. // Foi fiscal na empresa das
Águas Minerais do Peso, Vidago, Melgaço & Pedras Salgadas. // Casou com Irene
dos Prazeres, natural de Melgaço. // Em 1935 trabalhava em Luanda. // Era
casado e com geração (Notícias de Melgaço n.º 295, de
22/12/1935). // Lê-se no Notícias de Melgaço
citado:
«Carta
de Luanda. Senhor Diretor do jornal Notícias de Melgaço –> se a carta, que
segue, lhe parecer digna de publicidade, à falta de assunto de melhor
interesse, e lhe possa evitar o dispêndio de uns momentos de trabalho para
preenchimento do seu conceituado jornal, muito gostaria que o fizesse, como
única afirmação de que em todos os cantos do mundo há filhos de Portugal que
lhe interessava a vida da sua pátria. Pois outro valor não tem a carta que vou
escrever, após a leitura dos três números do jornal a que nela me refiro.
AUSENTE DA PÁTRIA. Depois de um dia de intenso trabalho, a mistura de
contrariedades, que mais endurecem a missão que desempenho, maldizendo a sorte
que o destino me reservou, regresso a casa cheio de nostalgia e, a passos
lentos, faço o trajeto que me separa do escritório à casa onde resido, pisando o
escabroso calcetamento das ruas da cidade, que roe as solas dos sapatos, como
traça corta lã; vou desfolhando da memória as páginas de uma história que só de
longe, a longe, me mostram trechos coloridos, mas sempre envoltos em sombras a
abalarem-lhe o brilho que se perde a curta distância. // O relembrar o passado,
e pensar no futuro tão incerto, torna-me tedioso, macambúzio, produto de uma
neurastenia que este clima inóspito reserva aos seus hóspedes com que não
deseja familiariedade. E, então, uma ideia me acode à mente como único lenitivo
para o desfalecimento que estas agitações nervosas me causam. “Se eu
encontrasse alguém da minha terra com quem falasse”!... Não é possível
realizá-la; a distância é tamanha, e os atrativos tão poucos, que só forçados,
os meus patrícios, roubariam uns anos da sua vida, que pertence à sua terra
natal, para os deixarem nesta terra que nos recebe como enteados, armando-nos
ciladas em todas as esquinas, como fazem agora os etíopes aos italianos para os
expulsarem do seu território. // E, assim, passo o trajeto taciturno, só
sentindo um pouco de alívio ao chegar a casa, quando ao meu encontro vêm a
mulher e os filhos em saudação familiar. Mas este alívio é apenas um impulso do
sol que apanhou o fraco de uma nuvem e a rompeu para se mostrar, e se esconde
de repente como criança a jogar às escondidas. // A mulher retira-se, vai
cuidar do amanho da casa; as crianças vão jogar a macaca, saltar a corda, e eu
vejo-me de novo caído na solidão, entregue ao pensamento que me mortificou
durante todo o trajeto. Porém, há sempre um dia que a providência nos reserva
para nos dar força e coragem, para resistirmos às agruras com que a vida nos
brinda. O meu dia também chegou – foi ontem. // Entro em casa, recebo as boas
tardes da mulher, os costumados beijos da petizada, que em seguida desliza em
correrias pela varanda fora ao encontro de outros que os esperam à porta e os
vão recebendo de mãos dadas para entrarem no jogo da roda. A mulher, ao
contrário dos outros dias, fica junto de mim, sem se preocupar com os arranjos
da casa. Estranheza minha, que me arranca esta pergunta: - “Não tens hoje que
fazer”?! – “Tenho sim, mas também te vou dar entretenimento para ti”. Puxando
uma gaveta de uma velha mesa, tosca, feita de caixotes, estilo de mobília cá do
burgo, presenteia-me com três exemplares do semanário Notícias de Melgaço, que
um amigo, oriundo dessa encantadora vila minhota, fez o favor de me oferecer.
Os meus olhos ficam inertes por um momento, fixos no cabeçalho que encima o
semanário melgacense, para em seguida o percorrer do primeiro ao último
extremo, ávido das suas notícias. // É o mensageiro que me vai falar da terra
que me acolheu durante quatro anos, das pessoas com quem convivi, dos
acontecimentos, das oscilações da sua vida, etc. // 1.ª parte – Um artigo de
fundo intitulado “O FASCISMO NO MUNDO”. Revela a fé do seu autor no triunfo dos
povos, nas novas ideias que defende com entusiasmo, eloquência; é um artigo
onde se aprende, lendo com gosto. // Outra notícia: - “ É encontrada carbonizada
à porta da sua residência, pelo Dinis do Lau, a tia Maria do Coto.” Conheço a
vítima e o pouco feliz descobridor de tão triste achado macabro. Triste
notícia, mas nem por isso desanimo. Fala-se de nomes que conheço. // Mais
abaixo o falecimento do pai do senhor José Figueiroa; sinto-me pesaroso; é o
nome de um amigo com quem sempre mantive as melhores relações, amigo que nunca
mais posso esquecer, que está de luto pela perda de um dos seus entes mais
queridos, seu pai. Os meus pêsames sinceros e um grande abraço ao senhor José
Figueiroa.
desenho de Manuel Igrejas |
Outra local – Típica – Elegante. – As tradicionais festas e
danças pelos aquistas e povo da terra! Um relâmpago de alegria me passa pela
memória, vendo passar na minha frente corpos que se requebram em todos os sentidos,
lábios que se riem, olhos fulgurantes que pedem … Am… (já fora dos meus
anos),
mas nem por isso esta notícia deixa de me deleitar. De repente sou invadido por
uma melancolia que me deixa desfalecido; lembro que estou longe, lembro o tempo
que vai e não volta, e quedo-me um pouco na leitura, a tomar fôlego para
recomeçar. // Como tristezas não é alimento para quem deseja viver, depressa
pus de parte tal aperitivo – recomecei a leitura. // Nós, quando estamos
ausentes da pátria, somos mais patriotas; já o diziam os grandes poetas antigos
nos seus versos, não é nova a afirmação. E, assim, gostamos de tudo quanto for
patriotismo. // Esbarro com um artigo da autoria do senhor José Maria de Sousa,
que não tenho a honra de conhecer, mas noto que é de um patriotismo digno de
admiração – enche-me a alma. O senhor Sousa atira-se aos contrabandistas, que
abundam naquela terra como aqui (…), e dá-lhes a eles e (…) que com eles
partilham do tráfico, uma carga de antipatriotas que os deixa (…). É assim
mesmo, senhor Sousa; só falta de patriotismo nos pode levar a valorizar o
artigo estrangeiro e a desvalorizar o nosso! Mas…, senhor Sousa! Eu não o
conheço, mas como sei que você é comerciante, dê-me licença que lhe ofereça um
conselho: - “é melhor outro que não tenha negócio a assinar esses artigos,
porque assim podem-lhe tomar o seu patriotismo pelo daquele sargento que depois
de cinco anos de licenciado pediu de novo a sua reintegração no exército, após
terminada a grande guerra, e quando os camaradas lhe perguntaram os motivos que
o apaixonaram outra vez pelas armas e pela farda, batia com as mãos ambas na
barriga, e dizia muito pesaroso: - “É que eu, [caros camaradas] via a pátria em
perigo!” É claro, você tem muita razão, mas isto aqui para nós, que ninguém nos
ouve: - esse povo do Peso é um má-língua, eu conheço-o… // Angola, Luanda,
Outubro de 1935.»
Pai de Maria Orminda dos Prazeres, nascida
no Porto a 16/7/1927. Esta criança esteve em Melgaço, em casa da sua avó
materna, residente na freguesia de Remoães, e concorreu mais tarde para
telefonista dos CTT, tendo sido admitida. Estagiou seis meses na Batalha… (ver blogue de Ilídio de Sousa de 20/7/2019 - Melgaço, do Monte à Ribeira).
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Nota: diz-se que a curiosidade aguça o engenho. É verdade. Eu li no blogue do meu amigo e conterrâneo Ilídio de Sousa algo sobre o senhor Abílio José Marinho e quis saber mais sobre esse homem que trabalhou durante quatro anos nas Termas do Peso. A sua carta, escrita em Luanda, no tempo do corporativismo, vem desmitificar, deitar por terra, algumas ideias feitas sobre a vida dos europeus em terras africanas. Os negros, salvo raras exceções, não queriam os brancos no seu território. Eu, que estive dois anos na Guiné-Bissau, senti isso mesmo. Nós éramos para eles os ocupantes, invasores, inimigos. Depois da independência das colónias as coisas parece que estão a melhorar, mas ninguém se iluda: a África é dos africanos negros. Tudo farão para serem eles a mandar, apesar das suas fragilidades óbvias. O tempo, esse dragão faminto, está, assim o penso, a seu favor.
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