segunda-feira, 15 de julho de 2019

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha


Belchior Herculano da Rocha (1877-1949)


A PÁGINAS CENTO E OITO

 
     Uma das coisas piores que se pode fazer a um livro é esquecê-lo. «Padre Júlio Vaz Apresenta Mário» não merece essa indiferença e por isso aqui estou eu a lembrá-lo mais uma vez. Na página 108 aparece-nos um artigo escrito pelo “Mário” com o título «Belchior». Acontece que essa figura popular era o pai da minha mãe, ou seja, era meu avô materno. O “Mário” só disse bem dele, no entanto, por desconhecimento, não revelou aos leitores de “A Voz de Melgaço” o essencial dessa personagem e deixou, por isso, a ideia de que o visado tinha sido criado um pouco ao abandono. Não foi assim. Eis como as coisas se passaram:

     Em 1865 foi extinta a delegação da Alfândega de Lindoso e os funcionários que ali trabalhavam tiveram de ser colocados noutras delegações ou na sede, em Valença do Minho. Ao subdiretor, Gaspar de Brito e Rocha, nascido em 1837 na freguesia de Giela, Arcos de Valdevez, colocaram-no na delegação de Melgaço. Era solteiro, e assim ficou até ao fim dos seus dias. Aqui, na nossa terra, trabalhou muitos anos, pois faleceu a 2/8/1882, e como homem solteiro que era procurou a sua cara-metade. Aí por volta de 1872 contratou para o seu serviço doméstico (ele vivia numa casa arrendada) Albina da Conceição Alves, então com apenas vinte anos de idade. Claro que essa intimidade iria ter consequências: em 1876 nascia o Baltazar José e em 1877 nascia o Belchior. Ambos foram expostos! O primeiro em Chaviães, à porta de casa de Albina Clara de Castro, do lugar de Linhar, no dia 22/1/1876. Essa senhora foi a correr entregá-lo ao presidente da Câmara Municipal, Lourenço José Ribeiro de Figueiredo e Castro, que a responsabilizou pela sua criação, visto ela ser ama registada desde 1863, mas primeiro foi batizado pelo padre da vila, tendo como seus padrinhos Caetano Celestino de Sousa, mordomo da igreja, e Maria Benedita Ribeiro, hospitaleira do hospício, mais conhecido por «roda». Foi mantido o nome do escrito que acompanhava a criança: «deve-se chamar Baltazar José». Em 20/7/1879 «sabendo-se quem fosse a mãe, foi-lhe entregue…» Este meu tio-avô faleceu em 1909, com apenas 33 anos de idade, deixando viúva e filhos.
Vendedor de rebuçados (desenho de Manuel Igrejas)
 


     O meu avô Belchior foi exposto em Santo Amaro, Prado, no dia 24/9/1877, à porta da casa de Mariana Gonçalves, casada com José Vestelo. O escrito que acompanhava o bebé dizia assim: «deve chamar-se Melchior – vai por baptizar». O presidente da Câmara, interino, era nessa altura Manuel Joaquim de Sousa e Castro Moraes Sarmento. A criança foi batizada pelo pároco da vila com o nome de Melchior Herculano, não se respeitando, portanto, o que se pedia no papel. Foram seus padrinhos: António Alves, solteiro, sapateiro, da rua Direita, e Carolina da Costa Pinto, solteira, da rua da Calçada. Em 26 de Setembro do mesmo ano foi entregue à ama matriculada no livro a folhas 75, verso, e 76, de nome Francisca Sanches, da Fonte de Alvaredo. No dia 1/10/1879 foi entregue por intimação à mãe «que por ser pobre, e não ter meios alguns, lhe não foram exigidas as despesas». Estas ascendiam a 23.355 réis!

     Não sei como foi a relação deles com a mãe (e com o pai, visto que ela era sua empregada e portanto as crianças conviveram com ele), mas penso que não deve ter sido a melhor, porquanto o Belchior, quando adulto, não gostava de falar dos pais, daí o “Mário” não ter obtido, quando com ele dialogou, as informações que certamente desejaria. O meu avô Belchior casou em 1905 (nesse ano morreria a sua mãe) com Maria Libânia Alves. Deste matrimónio nasceram cinco filhos: Maria Alice, Vitoriano, Maria Leonor, Domingos, e Casimiro Henrique.

     A Albina da Conceição, além do Baltazar e Belchior, ainda teve outro filho de seu patrão, nascido a 8/9/1882, já o pai tinha morrido, a quem puseram o nome de Gaspar, cujo padrinho viria a ser um dos homens importantes da Alfândega de Valença: Tristão de Araújo Abreu Bacelar. Este meu tio-avô morreu com apenas sete anos de idade, a 4/3/1890.

     O “Mário” desconhecia tudo isto; eu levei anos para saber! No século XIX, sobretudo a partir da altura em que a rainha Maria I e o príncipe regente fugiram para o Brasil, o nosso país entrou em profunda crise que durou praticamente todo o século, salvo raros períodos, mais ou menos longos. Essa crise teria forçosamente de refletir-se no comportamento das pessoas. Porque uma coisa é certa: crianças abandonadas pelos pais, enjeitadas, sempre houve e haverá; mas, no século XIX foi demais. Quando há meses estive nos arquivos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a folhear aquelas folhas velhas, nas quais se escreveram coisas incríveis: «abandono o meu filho porque não o posso sustentar»; «tenham pena desta criança, ela não tem culpa dos erros dos pais», etc., tive de conter as lágrimas. Foram milhares e milhares em todo o país. A maioria morreu antes do primeiro ano de vida! Nos meios pequenos, como Melgaço, as coisas não foram tão negras para as crianças, mas mesmo assim mais de metade delas não chegaram à idade adulta. Geralmente as pessoas da freguesia sabiam quem eram os pais, simplesmente a lei vigente não lhe permitia revelar o seu nome!

     Aquela história dos limões também carece de uma explicação: o Notícias de Melgaço n.º 17, de 22/6/1923, apresenta um diálogo de tipo vicentino entre duas mulheres, Maria e Micas, tentando a primeira convencer a segunda de que devia plantar um limoeiro para evitar no futuro comprar tão caro os limões do Belchior, cujo preço era de 40 réis. O “Mário” tinha então dez anos de idade; por conseguinte, só mais tarde é que ele ouviria falar nesse assunto. Além disso, pelo que me disseram os mais velhos, o meu avô Belchior nunca vendeu limões; o que vendia, isso sim, era refrescos – de limão, com sabor a rebuçado e com sabor a café. Normalmente tinha a sua banca junto do chafariz, que se encontrava precisamente no Largo do Chafariz, já desaparecido. Vendia também rebuçados e doces feitos por ele próprio, e além disso, e o “Mário” esqueceu esta faceta, cozinhava, e bem, segundo dizem, aquando das grandes caçadas que então se realizavam.

     Resumindo: o meu avô Belchior foi exposto, sim, mas entregue à sua mãe tinha ele dois anos de idade. Usou o apelido Rocha, do pai, Gaspar de Brito e Rocha, funcionário da Alfândega. Outra coisa: a Conservatória do Registo Civil só passou a existir depois de ter vingado a República; antes era a igreja católica, através dos seus párocos, que se encarregava dos assentos de batismo, casamento e óbito.

 

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1064, de 1 e 15/1/1997.

1 comentário:

  1. Dizem que morremos 2 vezes ,a primeira fisicamente a segunda quando somos completamente esquecidos, quando não temos ninguém que tenha recordações da nossa caminhada nesta terra.A sua obra faz com que aqueles que já partiram não sejam esquecidos!

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