ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
romance histórico
Por Joaquim A. Rocha
20.º
Capítulo
BISSAU
A narrativa estava praticamente no
fim. Mas o tema, a guerra colonial, daria ainda pano para mangas, não só a
estes dois amigos, mas também a jornalistas, escritores, sociólogos… Vamos
então aproximar-nos e escutar a conversa dos dois:
- Finalmente em Bissau, amigo Henrique.
Na capital da então província portuguesa da Guiné encontrei pessoas do meu
torrão paterno, que ali viviam havia décadas. Dedicavam-se ao comércio: exploravam
lojas de roupas, bares, restaurantes, cervejarias… Nesses anos, e devido em
parte à guerra colonial, o negócio estava assaz próspero.
- Esses conflitos armados trazem
vantagens para alguns…
- É verdade. Houve muita gente que
medrou à custa do sangue do soldado. Mas, enfim!
Satisfeitíssimas por as ter visitado, logo nesse dia me obrigaram a
prometer-lhes que iria almoçar com elas todos os fins-de-semana enquanto não
embarcasse para a metrópole. Acedi, com relutância, ao convite, mas a minha
ingénita timidez deixar-me-ia ficar mal. Poucas vezes cumpri a minha palavra, e
quando ia arranjava sempre uma desculpa pouco convincente para não ir no
domingo seguinte. Preferia comer, quando tinha uma folga, e duas notas de vinte
mil réis no bolso, naqueles restaurantes modestos: um bife com batatas fritas e
uma garrafinha de vinho verde de sete decilitros e meio, só para mim!
- E conseguia bebê-la toda? – pergunta Henrique, pasmado, mas com um
sorriso zombeteiro nos lábios.
- Até a escorropichava! Que é isso, em
África? Com aquele calor não havia líquido que chegasse.
Tirei, como tinha planeado, a carta para condutores profissionais (pesados e ligeiros), dei uns chutos na
bola, apenas futebol de salão, muito em voga na altura, dando direito a taça no
final do torneio, e fui aguardando pacientemente, como um eremita, que a roda
do tempo rodasse e cumprisse a sua obrigação.
Certo dia recebi uma série de epístolas, já atrasadas, entre as quais uma
da madrinha Fernanda.
- Já sei que ma vai ler – diz Henrique, satisfeito, e já familiarizado
com as cartas da mocinha.
- Acertaste. Ouve, então:
Querido afilhado
Faço votos para que ao
receber esta esteja com boa disposição e saúde; são esses os meus sinceros
desejos.
Compreendo o seu estado de ânimo
ao ver aproximar-se o natal e estar longe da família, por isso perdoo-lhe tudo
o que me disse; realmente eu, pode crer, não posso guardar rancor a ninguém, só
se me ofendem muito, essa pessoa para mim é-me indiferente, mas a si como podia
ficar zangada? Quando lhe escrevi, para ser franca, tinha uma ideia que o meu
afilhado me responderia.
Aí deve estar um tempo formidável;
aqui está um frio de rachar, nem calcula; os montes estão brancos em virtude da
neve que caiu, parece-se com a Suíça, só que nesse país pode-se esquiar e aqui
não, apesar de a neve atingir muitos centímetros de altura; não solidifica e as
pessoas ao andarem enterram os pés. A neve é muito bonita, de uma maviosa
beleza, e hoje então os montes estão completamente brancos, vejo-os da minha
janela, até apetece sonhar, mas é fria e causa-me arrepios pelo corpo todo.
Espero que tivesse passado, na
companhia de todos os seus colegas, um natal muito feliz, eu passei-o bem; só
que nesse dia não fui ao baile que aqui houve. Na passagem do ano, sim: voltei
para casa às quatro da manhã, quase mesmo no fim. Acompanharam-me familiares e
só dancei com rapazes da minha confiança. Tenho quase a certeza que vocês
também o tiveram, pois aqueles que daí já voltaram disseram-me que no fim do
ano faziam um baile. Por isso é que estou a falar-lhe no assunto. Também desde
o Carnaval passado que não ia, não é
que não os haja, mas não sou muito amante deles – prefiro o cinema.
Tenha muito cuidado, pois disseram-me
que as coisas aí, e em Angola e Moçambique estão a correr mal, peço a Deus que
tudo acabe depressa e que não lhe aconteça nada de grave.
Vou terminar, embora tenha imensas coisas
para lhe dizer, mas tenho uma forte dor de cabeça, até parece que não posso com
ela.
Receba abraços muito apertados da
madrinha amiga, e nada de zangas, entendido?
Fernanda
*
- Cada vez me convenço mais de que essa
rapariga fazia projetos a seu respeito. Que lhe escreveu, se é que posso saber,
que a magoou tanto?
- Bem, passou-me pela cabeça acabar com
este pseudo namoro. Estava a tornar-se perigosa, ou seja, era a mais culta, das
mais bonitas (pelo menos na fotografia) e as suas cartas
estavam a tornar-se necessárias, algo que se espera com ansiedade. Não podia,
nem queria, avançar mais – tinha de tomar uma decisão.
- Compreendo. Mas não pensa que estava
a ser cobarde? Se começou a gostar dela e ela não estava comprometida com outro,
qual a razão desse sentimento negativo? Temia que quando ela o visse em pessoa
ficasse desiludida?
- Se me prometeres que não contas a
ninguém eu revelo-te um segredo que tenho guardado religiosamente. Prometes?
- Prometo solenemente… Se quiser, até vou
buscar a bíblia para jurar sobre ela – diz
o rapaz, fazendo um gesto teatral.
- Amigo Henrique: não encaras nada com
seriedade. Apesar disso, e porque trago este peso há muitos anos, vou confiar
em ti. Eis a confissão: a fotografia que mandei à Fernanda tinha-a pedido a um camarada
amigo, daqueles que mais pareciam atores dos anos quarenta e cinquenta, como Cari
Grant, Charlton Heston, Paul Newman… daí ela estar tão interessada. Se lhe
tivesse enviado uma foto das minhas provavelmente deixaria de me escrever!
- Cândido, Cândido! Isso não se faz; é
indigno da sua pessoa. E também fez isso com as outras madrinhas? Olhe que desceu
muito na minha consideração, praticou um acto muito vil e desumano.
- Não fiz isso com mais nenhuma, e olha
que sofri muito por ter feito essa canalhice; os remorsos têm-me perseguido
pela vida fora. Ela não o merecia. Penso até que era delas todas a mais
sincera, a mais empenhada em ajudar-me a passar aqueles maus momentos.
Portei-me como um vilão.
- Valha ao menos o seu arrependimento…
- admitiu Henrique, compreensivo.
*
A história estava quase no seu
final. Cândido encontrava-se em Bissau à espera que a Companhia regressasse de
Contuboel para embarcarem rumo a Portugal. Mas ouçamos a sua conversa com Henrique.
- Caro amigo: episódios dignos de
registo, alguns mesmo insólitos, aconteceram na capital da Guiné. Logo a seguir
à minha chegada visitei a cidade, que ainda não conhecia (o
Hospital, onde já estivera, ficava nos arredores). As montras, decoradas
com requinte, com arte, iluminadas e recheadas de tudo quanto era bonito, reclamavam
a minha atenção: camisas de seda, colchas de Macau, louças chinesas, com várias
cores, deixavam-me perplexo.
Ficava boquiaberto com tanta coisa bela, apetecível. E pensava nos militares
que se encontravam no mato, na mortífera selva, a matar e a morrer, privados de
tudo aquilo: maldita guerra!
Tão admirado e fascinado andava a
espiolhar as vitrinas que não me apercebi da presença de um poste da iluminação
pública e assim fui contra ele de forma absurda e ridícula. Vi as estrelas
todas do firmamento, e mais veria se as houvesse! «Saloio» - resmunguei, insultando-me a mim próprio.
- Isso acontece… - diz o moço, com comiseração.
- Um dia estava sentado num banco do
jardim, ali perto do Palácio do Governador, lendo uma revista, quando se
aproxima uma mulata. Mete conversa: «Preciso
urgentemente de dinheiro, não te apetece?» Como era uma mulher nova, na
casa dos trinta anos, fui. Descemos uma rua de terra batida e ladeada por ramagens.
Pelo caminho foi-me dizendo que vivia com um cabo-verdiano: «O meu homem trabalha nas docas, só vem à noitinha.»
Ao fundo da rua avistavam-se dezenas de barracas, como as que agora se
vêem um pouco por todo o lado, neste país de brandos costumes e um pouco
desleixado. De repente pára e pede-me: «Fica
aqui; quando eu te fizer sinal entras.»
Aguardei pacientemente, já com algum receio, mas eis que depois de uns
minutos de espera ela me avisa por gestos de que posso avançar. Entrei com pés
de lã e qual não foi o meu espanto ao ver junto da cama da jovem mulher um
bercinho com um bebé lá dentro. Choramingava. Pensei: «deve ser por causa da criança, para a alimentar, que ela se anda a prostituir.»
Hesitei. Contudo, e tendo em conta que já ali me encontrava, comecei a
despir-me. Não sei o que se passou comigo. Comecei a suar, um suor frio, afogueado,
e não tive coragem de levar avante a intenção.
Então, tirei do bolso das calças umas moedas e dei-lhas: «Não lhe posso dar mais!»
Retirei-me constrangido, destroçado, com vergonha de mim. O mundo estava
a precisar de uma mudança.
- O Cândido tem um grande coração…
- O meu nome figurava inúmeras vezes na
escala de serviços: sentinelas, guardas, faxinas, tudo! De condução, a minha
especialidade, nada!
Quando me encontrava de guarda ao quartel, sobretudo à noite, com uma
vontade danada de passar pelas brasas, ouvia o ribombar dos canhões, o rebentamento
de minas, os tiroteios mais ou menos duradouros, e apreciava as línguas de fogo
penetrando pelo céu dentro. Que pena sentia dos meus camaradas; como eles
sofriam; e eu, impotente, não os podia sequer confortar com uma palavra amiga.
Fui escalado certo dia para prestar serviço no Hospital Militar e lá,
mais uma vez, tive a perceção correta e profunda do que se passava: quantos
mortos e quantos feridos chegavam a todo o momento! E na metrópole afirmava-se,
cambada de ignorantes, que morria mais gente nas estradas do que na guerra!
Cretinos!
Os helicópteros não tinham um segundo de descanso: chegavam e partiam,
ininterruptamente!
Os estropiados gritavam com desespero, até metiam dó; os mortos, esses,
como que dormitavam silenciosamente. E eu, ali ao lado deles, metralhadora na
mão, apático, como que a vigiá-los! Infelizes criaturas. Seriam depois conduzidos
para a morgue, e aí eram colocados em urnas de chumbo. Oportunamente, a Força
Aérea, ou a Marinha, trasladaria esses cadáveres para a sua terra de nascimento.
- Terrível! Pelo que você passou, amigo
Cândido. Até me arrepio todo.
- É verdade... o que passei! Naquele
estabelecimento hospitalar também se encontravam alguns prisioneiros a receberem
tratamento; entre eles, um cubano, um súbdito de Fidel. Lutara ao lado dos
guerrilheiros do PAIGC e como «quem anda
à chuva molha-se», chegou o seu dia de azar. O rosto denunciava uma
expressão mal contida de resignação e de sofrimento controlado.
Valia-lhe, certamente, ao contrário de mim, a convicção inabalável, o
pensar que estava lutando por uma causa justa, pela libertação de um povo. Eu
esperava ansiosamente, com impaciência, o dia do regresso; ele aguardava com
expectativa e esperança o dia da independência da Guiné-Bissau. Os nossos
olhares cruzaram-se e, por mais incrível que isso te pareça, não o considerei
meu inimigo!
Em Bissau a vida quotidiana decorria normalmente. Muito comércio, vida
noturna, sala de cinema (a única em toda
a colónia), uma filial do Banco Ultramarino.
Sabias, Henrique, que as notas e as moedas lá não eram iguais às da
metrópole e não tinham aceitação noutras partes do país?!
- Não acredito! Isso não faz sentido.
- Podes crer; não minto. E sabes como
os guineenses menos instruídos lhe chamavam? Patacão! «Manga de patacão» significava ter muito dinheiro.
- Com essa designação existiu uma moeda
antiga, do reinado de Dom João III, cujo valor era dez réis – recordou
Henrique, a fim de mostrar os seus conhecimentos históricos e de numismática.
- Por aí podes imaginar como a evolução
se processou nesse território.
- E quando os militares vinham embora,
o que faziam a esse «patacão»?
- Havia sempre alguém – especuladores –,
que o recebia em troca de escudos da metrópole. Por exemplo: davam cinquenta ou
sessenta escudos por cem da Guiné!
- E qual era o seu valor real?
- Não tenho a certeza, mas pelo menos
valia oitenta escudos. Além disso, esse negócio era ilegal. Fazia-se por dois
motivos: o primeiro consistia na rapidez - toma lá dá cá; o segundo motivo
tinha a ver com a ignorância – muitos soldados nunca tinham entrado num Banco,
não sabiam preencher um impresso! Esse dinheiro ainda circulou mesmo depois da
independência!
- Não me diga?! – exclama Henrique.
- É verdade. O PAIGC não tinha na
altura condições para emitir moeda e notas; assim, durante algum tempo, aproveitou
o que existia – claro que apunha nas notas um carimbo da nova República para as
tornar legais.
- Essa não sabia eu; andamos sempre a
aprender. Esse tema daria pano para mangas, mas…
- Sim, esses assuntos terão de ser
tratados com outro tempo, e outro rigor científico.
- Dava uma interessante tese de
licenciatura na área da Economia e Finanças.
- Pode ser que um dia aproveitem a
ideia. Posso continuar a minha história?
- Faça favor…
- Do Portugal europeu iam cantores e
cantoras atuar. Mas não iam ao mato – ficavam-se pela cidade. Eram grupos
jovens, recentemente criados, que desejavam dar-se a conhecer. Num desses
conjuntos cantava o Paulo de Carvalho, agora bem conhecido. Até dava a
impressão de que a colónia não estava em guerra.
Somente os pára-quedistas, fuzileiros, comandos, irmãos inimigos de há
muito, uns julgando-se melhor do que os outros, de vez, em quando, davam um ar
da sua graça: travavam-se de razões e as fascinantes montras dos
estabelecimentos comerciais ficavam reduzidas a cisco, a estilhaços, a fragmentos!
Pareciam verdadeiros adversários! Atuavam como tal. Suponho que essas tropas de
escol, a nata das forças armadas portuguesas, a quinta-essência, queriam
exibir, perante a população civil, a sua capacidade, a sua destreza. Eram os
bons!
Nós, comparados com eles, não passávamos de garotos fardados, gente de
segunda categoria. Eles sim, tinham treinos adequados, comiam bem, envergavam
fardas bem-feitas e de bom tecido, possuíam armamento sofisticado. Eram forças
especiais, tropa rica.
- Ainda hoje deve ser assim – arrisca Henrique.
- E há-de ser sempre enquanto houver
exércitos, julgo eu. Prossigamos: a sua prosápia ganhara notoriedade. Até no
andar e vestir de nós se distinguiam: peito para fora, bem constituídos, davam
logo nas vistas. Nós, mal alimentados, fardas grosseiras, de fabrico duvidoso, esqueléticos
a maior parte, alguns gordos, parecíamos mais uma milícia da segunda guerra
mundial!
- «Carne para canhão», como disseram
aquelas mulheres do Porto! – remata
Henrique, desejando acabar com aquela lenga-lenga.
- O tempo, no seu passo vagaroso, desfalecia.
Aproveitei esses meses de Bissau para visitar os arredores (sítios
havia, porém, onde seria impossível ser bem recebido: por exemplo, nos bairros
degradados, onde o crime e a miséria reinavam), e tirar algumas
fotografias para a posteridade, para mais tarde recordar, como se costuma dizer.
Brinquei, sem qualquer tipo de malícia, com as raparigas de cor: as poucas
brancas que residiam na cidade estavam sob controlo absoluto – quer dos pais,
dos irmãos, dos namorados… Elas também não davam confiança a simples praças –
só de furriel para cima! Ainda tentei catrapiscar uma, mas ela rejeitou com
severidade excessiva a minha humilde corte: «O senhor não tem mais nada para fazer senão andar atrás de mim como um
reles cachorro, um rafeiro? Quer que vá fazer queixa de si ao seu comandante?»
- Era má, a miúda. Como reagiu à
ameaça?
- Fiquei siderado. Se ali houvera um
abismo, um fundo buraco provocado por um meteorito, não hesitaria uma fracção
de segundo que fosse: atirar-me-ia! «Perdoe,
menina» - disse-lhe eu, a gaguejar, com humildade e temeroso.
Compreendi então que nada valia, nem um leve sorriso de uma jovem
branca!
- É óbvio: pertencia a outro estrato
social; «cada macaco no seu galho»!
Se fosse agora, com os seus estudos, o seu emprego, as suas perspetivas futuras…
E vocês estavam lá para os defender… Ingratos! – comenta Henrique, indignado com a atitude da rapariga.
- Nem tanto… Nós fomos defender, penso
eu, a soberania nacional, não as pessoas; mesmo que na Guiné não houvesse um
único branco, um português do continente europeu, nós iríamos… Para Salazar o
mais importante era o Império!
- Depois de Deus – corroborou Henrique.
- Com o divino estava sempre bem, pois
tinha a Igreja de Roma do seu lado, o Cardeal Cerejeira…
- O meu amigo não lhes perdoa!
- Não sou juiz, nem carrasco; apenas
senti na minha pele a diferença entre ser ou não ser pessoa. O regime nunca nos
ligou, tratou-nos como farrapos, como coisas. Que culpa tinha eu de ser pobre e
ser soldado? Não lhes perdoo nem deixo de perdoar: onde estão os meus poderes,
os meus conhecimentos, para os julgar, para os levar ao tribunal da História?
- Há azedume nas suas palavras…
- Não sou rancoroso, meu amigo. Também
não sou santo, nem candidato a tal. Lamento apenas tudo aquilo que vivi e
observei na ex-colónia durante quase dois anos. Há quem afirme que Deus de
Israel, ou dos judeus, quando criou o mundo, estava a pensar em todos os seres
vivos; é assim que consta na Bíblia, no livro dos livros…
- Isso foi há tanto tempo! Já se
esqueceram.
- Terá de ser relembrado.
*
Nesse curto e, simultaneamente, longo espaço de tempo aprendi igualmente
a olhar a paz em tempo de guerra!
Frequentei, com certa regularidade, o mercado, porque gostava de
assistir à chegada daquelas mulheres e homens com uma espécie de cabaças, ou
açafates, à cabeça, transportando mancarra (conhecida
também por alcagoita ou amendoim), mandioca, ananás, batata-doce, bananas,
laranjas, cocos, manga, e outros frutos da Guiné.
Maçãs, peras, dióspiros, nêsperas, ameixas, cerejas, pêssegos, nozes, figos,
etc., parece-me que não havia por esses lados – nunca vi. Julgo que as árvores que
os produzem não se adaptam ao clima: quente e húmido.
Vendia-se também panos garridos, estatuetas, peles de jiboia…, um pouco
de tudo!
Aquele movimento constante, o cenário, os cheiros, atraíam-me, fascinavam-me!
As mil cores, a linguagem variegada, as jovens mulheres carregadas de roncos,
ou seja, pulseiras, e outros objetos decorativos, feitos por elas próprias, ou
por artesãos, artistas negros, guineenses, tornavam aquele local diferente de
tudo que tinha visto até então.
Sabes que na Guiné se usava muito
a expressão: «manga de ronco, pessoal»!
- Manga não é um fruto?
- Sim; mas pelo facto de existir em
grande quantidade, tornou-se sinónimo de «muito».
Quase todas as etnias, sobretudo as mais próximas da capital,
seguramente teriam, ali no mercado, um seu representante.
A África, apesar de ser um continente onde a guerra, a doença e a fome
coabitam, encanta o homem europeu. Ainda hoje, passados tantos anos, sinto uma
grande nostalgia, algo indecifrável, um não sei quê.
- Saudade não é?!
- Tenho a certeza que não! O que lá
passei, o que lá sofri e vi sofrer, não é passível desse estreme e melancólico sentimento.
- Gostaria de lá voltar?
- Não! Nem que me dessem uma fortuna.
Isso teria um efeito nefasto na minha vida, era o mesmo que destruir a minha
memória. Contudo, guardo algumas recordações. Por exemplo: as mulheres, a tomar
banho nos tanques e rios. Corpos nus, isentas de preconceitos, mas prenhes de
pudor; os homens que sorriam e as crianças que brincavam, sãs, ignorando o
perigo que à sua volta existia e a miséria e o terror que com elas se mesclavam;
as bajudas, ingénuas, mostrando embevecidas (e deixando mexer) os seus rijos
seios. A noite africana, com o seu mistério e o seu encantamento; os braços de
mar, ladeados por selvas espessas e infindas; os pantanais, mais traiçoeiros do
que Judas bíblico; as clareiras (geometricamente
circulares); os estranhos animais e as árvores gigantescas, as frutas
(bananas
enormes, de uma cor entre o vermelho e o roxo, e sabor delicioso). Tudo! Que pena
não haver paz em África. Todos ganhariam. Nesse continente maravilhoso e
potencialmente rico poderiam coexistir milhões e milhões de seres humanos:
brancos, negros, mestiços… Que importa a cor da pele? Sem guerra, sem doenças,
a África, pode ser um paraíso. «Ó povos
de África: atirai fora as armas, os ódios, e abraçai-vos fraternalmente.»
- Não vai ser fácil alcançar-se esse
desiderato… Você mesmo me disse que os negros são belicosos, pouco amantes da harmonia,
da concórdia. Mas passemos a outro assunto: a sua madrinha Fernanda, rompeu com
ela?
- Não se pode acabar assim, do pé para
a mão, com uma situação destas. Ainda nos continuamos a escrever por mais algum
tempo. As nossas cartas já não eram bem de madrinha para afilhado, exagerava as
minhas emoções na esperança de que ela me deixasse de escrever; mas não, parece
que até estava a gostar, tornou-se um desafio assaz perigoso.
- E como acabou?
- Decidi-me depois da carta que te vou
ler:
Cândido
Saúde e boa disposição; são esses os meus sinceros desejos. Recebi a
sua carta com a qual fiquei bastante admirada (não
era para menos!) Realmente não penso
que seja má ideia arranjar trabalho na Guiné, e isso de se querer casar e
depois levar para aí a esposa também está certo, não concebo o casamento em que
o marido tem de estar separado da mulher, ora como me pergunta se eu não me
importava de ir viver, depois de casada, para África, a vida aí dá uma grande cambalhota e não se pode dizer «desta água não beberei».
O casamento, penso, é o acto mais
importante que uma pessoa pratica, para isso deve refletir muito e ambos se
devem conhecer perfeitamente, ora eu não o conheço senão por cartas, não quer
dizer que seja mau rapaz, não sinta por si um profundo carinho, mas não o
conheço pessoalmente, para mim representa muito mais o espírito da pessoa do
que o físico.
Ambos somos ainda novos, temos muitos anos
à nossa frente, devemos encontrar-nos, conhecermo-nos melhor, e depois tomar a
decisão que os nossos corações acharem a mais acertada. Acha bem?
Receba muitos abraços da
Fernanda
- A partir daqui abriu uma brecha na
muralha, rompeu o dique, adquiriu o estatuto de namorada - sentencia Henrique, de semblante carregado. - Não se portou bem,
meu caro. Se não tencionava casar com ela, porque fez nascer e alimentou esse
romance, tipo Simão e Teresa? Não seria obrigado a isso. Não me diga que o fez
como teste, para verificar se as suas cartas surtiam efeito nos frágeis corações
das jovens mulheres. Esse comportamento é mesmo de macho latino; queria ser um
colecionador de almas femininas!
- Disse-to há pouco: a nossa situação, quase
tudo justificava; eu apenas me aproveitei de um pequenito dom, que era o de
saber escrever razoavelmente. Outros aproveitam-se do físico. De qualquer modo,
jamais lhes toquei; nem sequer cheguei a conhecê-las fisicamente. Se mal lhes
fiz, esse mal foi passageiro, efémero. Muitas delas, ou todas, já estarão
casadas agora. Tenho remorsos, mas o meu crime não é assim tão grande, tão
escabroso.
- Está redondamente enganado, meu caro
Cândido; os crimes de coração, sentimentais, não têm tamanho, não se podem
medir, e jamais se perdoam. Você desencadeou nelas uma onda de expectativas,
uma maré de sonhos, uma primavera de emoções, uma fogueira que jamais se extinguirá.
- Podes ter razão, mas exageras. Achas,
meu amigo, que podia casar com elas todas?! Em relação à Fernanda, quando
cheguei a Lisboa ainda lhe escrevi uma longa carta; carta essa que não fiz
seguir – tive medo das consequências!
- Ainda conserva essa missiva?
- Sim. Guardei-a e de vez, em quando,
volto a lê-la.
- Se a tiver consigo quer ter a bondade
de ma ler?
- Não a tenho aqui comigo, mas no
próximo encontro trago-a.
*
Passaram-se uns dias. Cândido não
esqueceu a promessa que fizera. Naquela tarde dirigiu-se ao Café, ao encontro
habitual. Henrique já lá estava, sentado, talvez meditando na vida. Quando viu
o amigo, perguntou-lhe:
- Não se esqueceu da carta, pois não?!
- De maneira nenhuma. O prometido é
devido. Escuta:
Fernanda
Nem sei como começar esta
carta. Sinto imensos remorsos por ter criado em ti a ilusão do amor, esse
sentimento tão nobre. Peço-te que me desculpes, se puderes; perdoa a este ser
que não soube respeitar uma jovem sublime, grandiosa… Tudo que te fiz, merece
castigo, reprovação. Até a fotografia que te enviei não me pertence, mas sim a
um camarada meu da mesma Companhia. Sou um tipo banal, sem o mínimo de interesse.
Tive receio que não
respondesses depois de veres a minha cara – daí ter feito isso! Sou um monstro
sem escrúpulos, nunca poderei aspirar a ti, apesar de todo este arrependimento
sincero. Jamais te esquecerei e podes crer que idolatrarei sempre a tua
memória; serás uma espécie de santa de altar para mim. Se fosse poeta cantar-te-ia em magoados versos.
Mas não: sou apenas um rude camponês da palavra.
Desejo que encontres o homem
ideal, que mereça o teu carinho e saiba respeitar-te com dignidade. Eu não me
casarei; arrastarei a minha existência, tentando penitenciar-me do abominável
pecado que cometi em relação à tua doce pessoa. Mesmo que contigo eventualmente
viesse um dia a casar formaríamos um lar sob o signo da desconfiança. Tu verias
em mim o outro, e eu próprio considerar-me-ia a segunda escolha! Teria toda a
vida ciúmes de um homem retrato!
O matrimónio tem de nascer
de um acto espontâneo, sem sombras, sem mágoas; o nosso, caso acontecesse, era
o produto de uma fraude, de uma brincadeira de péssimo gosto. Em dias de mau
humor atiraríamos, um ao outro, as pedras que guardáramos ciosamente no
recôndito baú.
Adeus meu anjo, que os deuses e os
fados te sejam favoráveis, e que o teu caminhar pela vida se revista de suaves
contornos, e que as penas que vieres a sofrer sejam plumas de avezinha, sem
peso e sem dor.
Cândido
- Comovente. Devia tê-la feito seguir,
ela perdoar-lhe-ia de certeza. Enfim, talvez o destino assim o tivesse determinado.
Uma das coisas de que ainda não falou,
não sei se voluntariamente, se por esquecimento, foi do papel que desempenharam
o Movimento Nacional Feminino e a Cruz Vermelha Portuguesa. Pensa que foram
importantes para vocês?
- Essas duas instituições tinham
caráter distinto, embora na ocasião não as distinguíssemos muito bem. O MNF foi
criado pelas mulheres salazaristas para apoiarem o regime, mediante uma
propaganda assanhada e cínica, mas por vezes bem-sucedida. Este movimento
extinguir-se-ia logo que a guerra, ou o regime, terminassem. E foi assim, como
bem sabes, que aconteceu. Quanto à Cruz Vermelha é totalmente diferente.
Trata-se de uma instituição planetária, cujos membros, médicos e enfermeiros, sobretudo,
procuram socorrer os feridos aquando das sucessivas guerras que vão surgindo
por esse mundo fora. Que desejávamos nós, soldados, dessa gente? Apenas uma
coisa: que nos apoiassem materialmente, isto é, que nos mandassem aquilo que
nós lhe pedíamos.
- Que lhes solicitavam, concretamente?
- Falo pela minha pessoa: revistas,
livros de estudo, um calção de banho, um álbum para colocar as fotografias que
me iam oferecendo, uma pastinha para pôr as cartas. Bagatelas, mas que para mim
seriam importantíssimas, visto que não tinha dinheiro para as comprar e, mesmo
que o tivesse, no mato não existia estabelecimento onde adquiri-las.
- E recebeu tudo aquilo que solicitou
ao M.N.F. e à Cruz Vermelha?
- Não brinques comigo! As revistas que eu
recebia eram usadas, já tinham sido lidas e relidas, desatualizadíssimas, sem
qualquer interesse; os calções de banho não mos mandaram, alegando ultrapassar
a sua capacidade financeira; a pasta para cartas enviaram-na, mas era de
plástico reles – nem sequer cinco tostões valia; o álbum, pequenino e ruim!
Quanto aos livros de estudo, ouve esta:
«Soldado de Portugal – Sobre o seu
pedido de livros de estudo enviado a esta Comissão, vimos informá-lo que terá
que se dirigir à Comissão Provincial do
M.N.F. em Bissau, pois é essa Secção que faz a distribuição destes livros na
Guiné. Para facilitar os serviços e ter os livros com mais brevidade, deverá
pedir ao seu Comandante uma declaração comprovando a necessidade do seu pedido.
/ Com os nossos melhores cumprimentos. / POR DEUS E PELA PÁTRIA.
Achas, meu caro amigo, que uma resposta destas merece algum comentário?
Para cúmulo do disparate, em todas as cartas constava o aviso: «Este Serviço encerra durante os meses de
Agosto e Setembro para férias, e Novembro e Dezembro para tratar do Natal do Soldado.»
Já reparaste na hipocrisia deste aviso? E se nós, soldados, também encerrássemos
para férias? E o natal, que natal?! Suponho, não tenho bem a certeza, que nessa
noite andava eu aos tiros na mata! O mais certo era fazerem a festinha num
quartel da capital, com a tropa de elite, onde a televisão do regime e alguns
jornalistas divulgariam para todo o país a cerimónia natalícia.
- Diz-se que o M.N.F. destinava as
verbas recolhidas em nome dos soldados a outros fins, em proveito próprio. Que
pensa acerca disso?
- Não sei; não tenho elementos
suficientes que me permitam chegar a essa conclusão. Mas olha que se isso corresponder
à verdade não vi até hoje ninguém, nenhum governo democrático, condenar esse
vergonhoso acto. Será que não passou de um boato?! A Cruz Vermelha Portuguesa
sempre teve uma boa reputação, pese embora a sua ausência no interior da mata
africana. Talvez tenham estado em Angola e Moçambique; na Guiné-Bissau… não me
apercebi da sua presença – e se ela era necessária!
- Provavelmente não teriam quadros
suficientes, enfermeiros, médicos, maqueiros, ou quem sabe, o exército não lhe
tivesse solicitado ajuda…
- São pormenores que eu desconheço.
Apenas me limito a contar-te aquilo que eu próprio vi. Os historiadores terão de
investigar muito, colher imensa informação, para depois esclarecerem o público
em geral.
A minha narrativa está quase no fim, tens tido muita paciência e denodo
até agora; se me permites vou dar as últimas pinceladas a ver se isto termina
com chave de ouro.
- Só lhe quero pedir, antes de
prosseguir o seu interessante relato, que me elucide sobre eventuais traumas
que os militares trouxeram de África. O que é que o Cândido pensa acerca disso?
- Já esperava essa pergunta. É comum e
vulgar ouvir-se dizer que os soldados que participaram na guerra colonial
ficaram com imensos traumas, com problemas nervosos; traumas, esses, que os
acompanharão toda a vida.
Em parte pode-se considerar verdade; no entanto, isso não significa de
maneira nenhuma que todos os ex-combatentes tenham vindo doentes de África, ou
que sejam potenciais doentes por essa causa. Contam-se por vezes histórias
disparatadas acerca do nosso equilíbrio mental: saltamos da cama quando ouvimos
o rebentamento dos foguetes, qualquer pequerrucho ruído nos faz atirar para o
chão… Disparates! Teremos de separar as águas; e das duas, uma: ou o soldado
psicologicamente era forte, e resistiu; ou, então, sendo fraco, não se aguentou
nas canetas! Se esta última hipótese se verificou, só lhe restava, e resta, o
tratamento médico adequado. Terá de consultar psicólogos, psiquiatras,
quaisquer especialistas que o ajudem a superar a crise, a terrível doença.
Porque, meu amigo, doentes do sistema nervoso sempre houve e haverá, e não é
preciso ir combater nesta ou naquela guerra para se sofrer desse mal. Quantas
pessoas estão internadas no Hospital Júlio de Matos, e noutros, vulgarmente
conhecidos por loucos, malucos, ou tarados, que nunca participaram num conflito
armado?
- No entanto... – tenta defender-se Henrique.
- Claro que devido à tensão a que fomos
submetidos, aos padecimentos sofridos, à angústia, ao medo permanente, à
descaraterização da personalidade, ao vexame, admite-se que tenhamos sido
bastante afetados. Não obstante tudo isso, convenhamos que o sistema
neurológico do ser humano é por demais complexo para indivíduos sem
conhecimentos científicos no âmbito da psiquiatria estarem a especular, como se
fossem homens doutos nesse domínio. Contentemo-nos com esta simples conclusão:
há doentes que contraíram a doença na guerra colonial e outros que a obtiveram
noutro lado qualquer e por outras razões. Uns não são mais enfermos do que os
outros; contudo, poderemos e deveremos interrogar-nos sobre se aqueles que
adquiriram as suas maleitas na Guiné, Angola e Moçambique, as teriam arranjado
se lá não tivessem ido.
- Essa resposta, só os médicos a
poderão dar…
- Nem os médicos! Meu caro: felizmente
nunca tive problemas de maior no que diz respeito ao foro psicológico e
psiquiátrico; trouxe, porém, da Guiné, uma doença do aparelho digestivo e menos
quatro dentes. Herdei também um grande ódio às guerras e muita raiva àqueles
que as fomentam – e nós sabemos quem eles são, não sabemos?
- Se sabemos! E quanto ao alcoolismo?
- Bem, quanto a esse ponto, vício
provocado pelos traumas, de acordo com a voz do povo, tenho a dizer o seguinte:
Portugal foi desde tempos imemoriais berço de um grande número de borrachos;
isso, nada tem a ver, quanto a mim, com a guerra, antes dela já existia grande
consumo, é mais uma questão de educação, formação, costumes antigos e arreigados.
Nos meios rurais, onde se colhe em abundância o fruto da videira, o sumo da
uva, bebe-se, desde tenra idade, vinho e aguardente em consideráveis
quantidades, isso não é segredo para ninguém. No princípio deste século XX
ainda se dava, nas festas escolares, bebidas alcoólicas aos alunos, juntamente
com figos secos!
Os traumas, meu amigo, acompanharam sempre o homem ao longo da sua já
cansada existência: são o medo do futuro, a insegurança, a não afirmação, a ambição
desmedida, o excesso ou falta de neurónios, as causas principais desses males.
Teremos de viver, por mais que isso nos custe, com eles.
- O Cândido argumenta filosoficamente
mas, a crer no que dizem por aí, o caso é deveras assustador: há muita, muita
gente, doente. Sem contar com os estropiados!
- As consequências de uma guerra são
sempre terríveis e imprevisíveis; no entanto, há muito patife que ganha com
elas! Depois, é nas guerras que se podem experimentar os novos aviões de
combate, fazem-se explodir bombas de grande potência, ensaiam-se táticas
modernas, enfim – põe-se em prática estudos e teorias bélicas, renovam-se os
arsenais.
- Até há quem afirme que é graças a
elas que a ciência avança! Não lhe parece, isso, algo absurdo?
- A guerra já é, em si, completamente
absurda; o ser humano devia tudo fazer para as evitar. Homens matando homens!
Que crueldade. O cúmulo da aberração. Quanto ao avanço da ciência… julgo que
não é necessário que existam conflitos para ela se desenvolver. Tem o seu
caminho, a sua estrada, que percorre diariamente. Mas deixemos este assunto,
pois sempre que o abordo causa-me arrepios na espinha, apetece-me bater nesses malandros
que passam o seu tempo a conceber novas armas para destruírem vidas e bens.
- Estou plenamente de acordo consigo; a
inteligência desses génios dever-se-ia concentrar na ciência do bem e não na
ciência do mal – remata Henrique, dando
ênfase às suas palavras.
- Finalmente apareceram os meus
camaradas da Companhia, que se encontravam aquartelados em Contuboel e
arredores. Trocamos alguns abraços, havia meses que não nos víamos, a amizade
perdurava. Brevemente teríamos dois anos de campanha. Informaram-me que partiríamos
dentro de quinze dias, no navio Uíge, o mesmo que nos levara para a Guiné-Bissau.
Agora só farra. Tudo tinha terminado. Parecia mentira! A guerra fora um mau
sonho, um pesadelo.
Deixámos, eu e o colega Vinhais, o aquartelamento onde nos encontrávamos
e fomos para junto da nossa Companhia, para um quartel mesmo junto ao Cais de
Bissau. E sabes quem lá estava?
- Como posso saber?!
- O famoso Marco Paulo! Soldado raso,
como eu! Estava constantemente a treinar a voz, sobretudo no balneário, mas
confesso-te uma coisa: não gostava de o ouvir. Chegou a cantar nalgumas festas
em Bissau.
- Marco Paulo! Quem diria! Pensava que
era mais novo, e que possuía mais habilitações literárias. Eu não desgosto dele
– penso que canta bem. Claro, não é de todas as canções... E o tal oficial,
incomodou-o de novo?!
- Não te esqueceste do biltre! O tal
alferes, nascido algures em uma tremenda noite de trovoada, tão forte que nem
Santa Bárbara lhe pôde valer, olhou-me com azedume, com frieza, com
hostilidade, com asco até, mas eu fiz de conta que não era comigo. Dentro de
pouco tempo deixaria de sentir a sua presença demoníaca. Em compensação, o
alferes Briosa abraçou-me, disse-me que sentira saudades; que me desejava sorte
na vida. E deu-me um bom conselho: «Estuda,
estuda muito, que vais longe!»
O capitão mandou reunir a
Companhia e distribuiu louvores e medalhas a todos – a recompensa!
- Medalhas essas que se têm vendido na
feira da ladra!
- Julgo que sim; a minha medalha continua
em meu poder. Não é que tenha por ela uma grande estima, mas não gosto de me
desfazer daquilo que me oferecem.
Além disso, entregou a cada soldado uma caneta de tinta permanente,
marca de prestígio, com alguma qualidade, e quinhentos escudos «para comprarem prendas para a família».
Disse-nos que o nosso coronel, comandante do Batalhão, se orgulhava muito de
nós, que podíamos voltar de cabeça erguida, tínhamos cumprido a nossa comissão
com brio e honra: «O Comandante Militar
atesta o seu apreço ao soldado condutor-auto, Cândido Alves, pelos serviços
prestados à Pátria na Província da Guiné.»
- Palavras ocas!
- Soam a tal… Antes de deixarmos
Bissau, rumo ao nosso muito amado país, ainda apanhei um valente susto: corriam
rumores de que um determinado quartel, bem perto da capital, estava a ser
atacado ferozmente pelo inimigo. O capitão, segundo constava, armado em
cavaleiro medieval, qual Lançarote ou Galaaz, não em busca do santo Graal, mas
talvez buscando frutuosas glórias, tinha-se oferecido, juntamente com toda a Companhia,
para ajudar a defender essa unidade. Medroso e prudente como era, suei frio.
Havia meses que não punha os pés no matagal e além disso já me encontrava
apenas a uns escassos dias do embarque. Só me faltava esta! Que mais me poderia
acontecer? «Que fossem os novos» -
monologuei, egoisticamente.
Não sei explicar a razão, o certo é que não chegamos a ir.
- Atoarda?!
- Talvez, quem o sabe?! Estivemos mais
tempo à espera do barco do que o previsto, mas eis que um belo dia, um dia que
vale por uma vida, um anjo chamado Uíge surge aos nossos olhos imponente e
majestoso, soberbo, altivo! Caramba! O que passáramos estava passado! O futuro
residia ali, a dois passos de nós!
As dificuldades vindouras seriam sempre insignificantes comparadas com
aquelas que protagonizáramos – adeus Guiné-Bissau!
*
A viagem de regresso decorreu sem incidentes: a bem dizer ninguém
enjoou, a comida a bordo soube melhor, cantou-se, bailou-se.
O oceano atlântico reconciliara-se connosco! Alguns colegas não voltaram
vivos, é certo, mas nós tentámos esquecer, minimizar, essas contrariedades; que
diabo, estávamos ali, dentro de um navio que nos levava para junto dos
familiares, da nossa terra, dos nossos sonhos…
Em Lisboa, junto ao cais, encontravam-se centenas e centenas de pessoas
à espera. Há quantas horas estariam ali, com a lágrima no canto do olho,
ansiosas por abraçar o seu ente querido: «Mãe,
minha querida mãe!»; «Meu filho, meu
adorado filho; pensei nunca mais abraçar-te!»; «Oh! meu irmão, que saudades!» // «Querida esposa, como é bom voltar a ver-te.»
Depois cada um seguia para o quartel fazer o espólio, despir a farda e
vestir a roupa civil. O futuro começava ali…
FIM
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