LINA - FILHA DE PÃ
romance
Por Joaquim A. Rocha
legionário |
8.º Capítulo
O tribunal
de Melcarte andava numa azáfama: delegado do Procurador da República,
advogados, copista, oficial de diligências, outros funcionários, todos eles se
movimentavam a fim de preparar o julgamento mais importante desde que havia
tribunal no concelho. Apareceram quatro jornalistas, todos da província do
Minho: de Monção, Valença, Viana do Castelo e Braga; queriam registar tudo para
a posteridade. O “Notícias de Melcarte” abordava o assunto com ironia, o seu redator-chefe
achava graça àquela história, e os leitores já não sabiam se deviam levar a
coisa a sério ou a brincar!
Os dias
foram passando, e por fim marcou-se o dia do julgamento. A sentença foi
relativamente leve para o crime cometido. Dois anos de prisão, com pena suspensa,
e seis meses deportada para fora do concelho. O juiz tivera em conta o facto de
a Lina ter tratado bem a criança, de se ter portado como verdadeira mãe, de não
ter cometido crimes nos últimos três anos, enfim, pesou também o facto de ser
mãe da filha de um magistrado.
Deram-lhe a
possibilidade de escolher a terra para onde iria. Escolheu Monção. Ficava a
pouco mais de vinte quilómetros de Melcarte e lá conhecia algumas pessoas. Não
lhe seria difícil sobreviver.
Até achou piada àquela sentença: iria conhecer
outra gente, teria várias aventuras, arranjaria um novo amante, mais novo e
giro do que o castrejo, já a dar sinais de senilidade, e nada de crianças:
davam muito trabalho e chatice. Não criara, a bem dizer, a dela, quanto mais cuidar
as crianças dos outros. Essa odisseia já passara, agora viriam mais. Ela ainda
se sentia com energia suficiente para enfrentar novos desafios. O demo
pedia-lhe mais acção e ela estava ali para satisfazer os seus desejos e tolices.
Quando
chegou a Monção foi procurar as tais pessoas que ela conhecia. Perguntou-lhes
se podia ficar lá em casa – seria por pouco tempo.
- Ó mulher: nós aqui não temos espaço para ti, a casa
é muito pequena; mas o nosso vizinho, o senhor Acúrsio, ficou viúvo há pouco
tempo e anda à procura de uma criada, vamos lá ter com ele.
- O que é que ele faz? – perguntou a Lina, tentando colher informações que no futuro lhe
poderiam ser preciosas.
- Tem uma oficina de latoeiro, também trata de
canalizações, é funileiro, enfim… tem muito trabalho e agora vive sozinho.
- E os filhos? – pergunta
a recém-chegada cheia de curiosidade.
- O casal teve dois rapazes, mas emigraram ainda novos
para o Brasil e nunca mais deram notícias. Devem ter morrido por lá; dizem que
o Brasil tem um clima muito doentio.
- Vamos então ter com o velho, pode ser que me
contrate.
O senhor
Acúrsio ficou radiante com o aparecimento da Lina. Andava a tomar as refeições
nas tascas, sempre fritos, aquele cheiro a vinho, ele que não era muito de
bebidas, aquele ambiente de gente sem educação, cada palavra sua asneira,
“carvalhos” a torto, e a direito, sempre a cuspir no chão, borrachos e
andrajosos. Precisava de uma mulher em casa, que tratasse da roupa e da comida,
que limpasse tudo. Gostava de asseio. Ele pagar-lhe-ia um ordenado justo, não
poderia dar muito, não era rico, mas a empregada não se arrependeria de trabalhar
para ele.
A Lina
aceitou o emprego. Mas, à medida que o foi conhecendo, a sua simpatia para com ele
foi esmorecendo: muito regrado, beato, não perdia uma missa, rezava antes das
refeições, agradecia ao seu Deus ter-lhe concedido a graça de existir, de poder
usufruir de todas as coisas belas do mundo. Enfim, começara já a preparar o
caminho para o céu; caso lá chegasse, instalar-se-ia sob a colcha divina e ali
permaneceria até à consumação dos tempos!
Não a requestava, não a desejava, nem sequer
reparava nas suas bonitas pernas, nos seus redondinhos seios, como os patrões
anteriores, respeitava-a como se fosse uma autêntica senhora, a ela que já se deitara
com dezenas de homens! Estava em presença de um santo. Às tantas atreveu-se a
perguntar-lhe:
- Senhor Acúrsio: o senhor nunca traiu a sua esposa?
- Que pergunta, Lina, que pergunta! Eu alguma vez iria
fazer uma coisa dessas! O casamento é sagrado; Cristo nunca me perdoaria uma
traição desse tamanho. Entre mim e a Zenilda havia amor, respeito e dedicação.
Eu vivia para ela e ela para mim.
- E agora? Ela já morreu…
- Antes de partir, para ir ter com o Senhor, eu
prometi-lhe que jamais meteria outra mulher na minha enxerga e na minha vida. E
promessas são para cumprir. Esta vida é curta; a outra, a que iremos viver
depois, é longa, eterna, e por isso devemos levar a nossa alma limpa de
pecados.
- E o diabo não o tenta, senhor Acúrsio?
- Como tenta a todos. Belzebu é nosso inimigo, só nos
quer mal. Persegue-nos, e é por isso que nós lhe devemos resistir, praticando o
bem, sendo bons, frequentando a igreja, rezando aos santos, não nos deixando
cair em tentação.
- E o prazer? Não tem desejos carnais?
- Eu já estou velho; a energia que me resta gasto-a em
coisas mais importantes, no trabalho, por exemplo, nem sequer penso nessas
coisas.
- O senhor Acúrsio ainda está para as curvas; vai ver
que ainda arranja uma mulher para lhe aquecer os pés no inverno.
- Cruzes, abrenúncio! Que Deus me proteja.
A conversa
prolongou-se, mas o idoso resistia heroicamente a todas as tentações. A
virtude, para ele, era um bem que não se desbaratava.
Lina chegou
à conclusão que por esse caminho não ia lá. No coração do velho só havia amor,
bondade, compreensão; a sensualidade, o ódio, a inveja, a vil intriga, estavam
ausentes, distantes, daquele ser quase perfeito. O preço que praticava na sua
oficina era diminuto, só ganhando o suficiente para sobreviver; quando aparecia
alguém que era considerado pobre, ele apenas cobrava os custos do material
utilizado – o seu trabalho era gratuito.
«Por enquanto vou-me aguentando por aqui; mas
preciso de arranjar melhor» - diz de si para si a perversa mulher. «Agora tenho de ir a Melcarte, mas se me
apanham vou para a prisão, como fazer?»
De facto, Lina
tinha umas contas a ajustar com a prima do senhor Manuel, e não deixaria por
mãos alheias o castigo. A mulher morava sozinha, era viúva, e seria relativamente
fácil dar-lhe umas cacetadas no lombo. «Não
se rirá de mim por mais tempo» - prometeu a ela própria. O problema residia
agora na maneira de ir à Vila de Melcarte sem levantar quaisquer suspeitas.
Quanto a transporte, estava assegurado: a camioneta vinha todos os dias, de
manhã e de tarde, buscar os passageiros ao comboio. Iria de manhã e viria à
tardinha. O pior é que a conheciam, sobretudo depois do famoso caso do parto
suposto. Pensou maduramente no assunto e encontrou a solução. A Legião Portuguesa
nessa altura ainda era respeitada por muitos portugueses. O regime
corporativista criara essa força miliciana em 1936, e imensos homens – funcionários públicos, artistas-artesãos,
lavradores, operários… – aderiram, vestindo a farda verde, julgando-se mais
importantes do que na realidade eram. Pois bem: um legionário monçanense
andava-se a fazer a ela. Iria pô-lo à prova: conseguia-lhe uma farda, que ela
adaptaria ao seu corpo. Um bigode postiço, o cabelo cortado à rapaz, e ei-la
pronta a passear-se pela sua terra natal sem ser incomodada por ninguém; provavelmente
até iria jantar a uma tasca e não lhe cobrariam um tostão. Um dia encontra-o na
rua e diz-lhe:
- Hipólito, já reparei que te interesso, os teus olhos
não mentem, são um livro aberto, e tu também me interessas, mas primeiro tens de
provar que gostas mesmo de mim, não é só o ir para a cama comigo. Para esse
efeito já tenho o meu patrão.
- Pensava que ele não era teu amante! O santinho, hem!
- Deita-se comigo, mas não faz nada: é um velho eunuco.
Só quer conchego. Coitado! Mal pode com as pernas. Naquele corpo já não circula
a seiva. Tu sim, és novo, forte, um poço de energia… o verdadeiro rei da capoeira;
mas só me terás… quando eu quiser. E para isso tens de me ajudar.
- Em que te posso ser útil?! É só pedires.
- Arranja-me uma farda da legião; já sei que tens a
chave do armazém de fardamentos e armas.
- Fazes ideia do risco que eu corro se descobrem?
Ainda me tomam por comunista, a mim, que os persigo incansavelmente, que tento
acabar com a sua maldita raça. Só se for à noite. E para que diabo queres tu
uma farda de legionário?! Vais “caçar” alguém?! – perguntou, a rir.
Ela narrou-lhe
toda a história, à sua maneira, fazendo-se passar por vítima, e o lorpa
acreditou em tudo que ela lhe foi contando. Ele então solicitou-lhe:
- À meia-noite estás ali perto do armazém. Quando te
der sinal, avanças. Esperemos que nada corra mal. Tens de me prometer uma
coisa: se te apanharem não me comprometes.
- Prometido. Podes crer que ninguém descobrirá a tramoia!
Nem o próprio demónio!
À
meia-noite daquele dia lá estava ela atenta à chamada do Hipólito. De repente
viu um braço a fazer-lhe sinais. Era ele. Avançou resolutamente em sua direção.
Ele abriu a porta, deixou-a entrar, e depois voltou a fechá-la. Era preciso ter
mil cuidados, pois estava a sua reputação em causa. Acendeu a luz, avançou para
uns armários enormes e disse-lhe:
- Aqui estão os fardamentos: do outro lado estão as
botas, os cintos, etc. Tens de experimentar os números mais pequenos, mesmo
assim terás de lhe dar um jeito em casa; quanto às botas é que não sei se
arranjaremos um par para o teu pé – vai ser muito difícil, pois o número mais
baixo que há é o 37. Terás de vestir umas meias de lã, muito grossas. Experimenta
esta farda.
Ela despiu
a camisola e a saia, que passou para as mãos do Hipólito, ficando apenas em
cuecas e soutien. O homem ficou excitado, mas não lhe convinha agora entrar em
maluquices, pois o risco era demasiado grande – tinham de sair dali o mais
rápido possível, não faltariam outras ocasiões.
- Estas calças não me estão mal; com um jeitinho,
ficam à minha medida. Vamos agora ver a camisa e o blusão.
Experimentou
algumas camisas e lá encontrou uma cujo número se aproximava da sua medida.
Depois foi a vez do blusão. Após três ou quatro tentativas vãs lá achou um que
se ajustava ao seu corpo. Quanto às botas, foi mais difícil a escolha, mas teve
de optar por um par, o mais pequeno que ali se achava. Enrolou tudo bem enrolado
numa manta que ali estava e diz ao homem:
- Vamos embora. Sei que te apetece fazer amor, leio
nos teus olhos de garanhão, mas aqui não convém muito; por outro lado, tu estás
um bocadinho nervoso e não te ias sair lá muito bem. Não te faltarão oportunidades.
Saíram com
todas as cautelas. Quando entrou na casa, o senhor Acúrsio ressonava. «Filho da mãe de velhorro; ressona que nem um
urso», resmungou ela, pois o seu quarto ficava mesmo ao lado do dele. Antes
de se deitar foi à cozinha, comeu umas bolachas, amornou um pouco de leite e
bebeu-o: «para ficar mais aconchegada»
- monologou.
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