LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
XXI
O homem não nasceu para o trabalho; foi a preguiça
que o inventou para ele!
Recuemos vários anos no
tempo. No mundo rural os rapazes e raparigas seriam forçosamente camponeses;
nas Vilas os jovens sem recursos, ou mesmo remediados, teriam de aprender uma
arte – sapateiro, alfaiate, barbeiro, etc., ou arranjar emprego ao balcão da
mercearia ou de outro qualquer estabelecimento comercial. Eu teria gostado de
ser alfaiate, mas essa profissão era monopólio de duas ou três famílias – os
mestres alfaiates só ensinavam os seus parentes próximos. Daí terem-me encaminhado
para a profissão de sapateiro, que por ser pouco asseada ficava reservada aos
mais humildes. Se querem ouvir a conversa, ouçam:
- Mamã, não há quase fazenda nenhuma, nem dinheiro para pagar à
fornecedora, o que vamos fazer?
- Vais aprender um mester, acabou-se o negócio, a fornecedora de
Braga que leve o que ainda resta, sobraram uns aventais e meia dúzia de
lençóis, para a prisão não me leva, vamos lá ver se aquelas a quem vendi fiado
me pagam, coitadas, o São Miguel este ano não foi grande coisa, o milho foi uma
desgraça, não se aproveitou nem a metade, a chuva veio antes da época própria,
se calhar não vai haver vinho, um ano ruim meu filho, um ano para esquecer.
- E nós é que pagamos as favas; se não tinham dinheiro por que é
que compraram?!
- Que queres! Nunca soube dizer não; tenho pena dessa gente, são
todos bons para mim, não me fazem mais porque não podem.
- Nós não podemos viver disso, precisamos de dinheiro para pagar a
quem nos vende as mercadorias; vai ser uma vergonha, eu nem quero estar
presente quando vier a senhora Angelina receber, até fujo.
- Digo-lhe para não trazer mais nada, depois pago-lhe quando puder,
que tenha paciência, os negócios não correram bem.
- Por sua culpa, eu bem a avisei, mas não, fiava, fiava, depois
malga aqui, malga acolá, às tantas nem se sabe a quem vendemos.
- Tens tudo apontado.
- Tenho, tenho; mas muitas dizem que não devem nada, que já lhe
pagaram, se não foi com dinheiro foi com géneros, nós é que não riscamos!
- Se calhar têm razão, esqueço-me muito. Vais para alfaiate, falo
com o filho da senhora Carmezinda, leva-te para lá, eu cá me arranjo; a
cozinhar nos pequenos restaurantes, nos casamentos, pelas aldeias, à fome é que
não morremos. Olha que os teus irmãos nem um tostão mandam!
- Coitados, o mais certo é também não terem para eles, na cidade
deve gastar-se tudo que se ganha, mercam tudo, até dizem que se compra a salsa!
Nós aqui temos couves, batatas, cebolas, quase tudo, e a hortaliça até no-la
dão.
- A mim dão-me muita coisa; é certo que também lhes trabalho de
graça, faço as vindimas, as desfolhadas, cozinho, ajudo em tudo, até a lavar os defuntos, não fazem
demais dar-me o que me dão.
- Dizem que o filho da senhora Carmezinda nunca está na
alfaiataria, é porque não precisa, se precisasse que remédio se não vergar a
mola, anda ele e o filho do senhor Fernandes a vagabundear, na borga até às cinco
e seis da manhã, não perdem um serão nem um baile, não sei se irei aprender
alguma coisa com ele.
- Experimentas; se não der resultado vais para outro lado, eu ainda
hoje vou falar com a mãe dele, se ela quiser fico a cozinhar na taberna dela
nos dias de feira, que ela tem muitos fregueses do monte.
*
- Na segunda-feira já podes ir para a alfaiataria do Guilherme,
tens é que passar pela taberna da mãe para ela te dar a chave; ele levanta-se
sempre tarde, parece que se deita todos os dias quase de madrugada! Um
verdadeiro estroina!
- Mas se ele não está na oficina o que é que eu vou lá fazer, quem
me ensina?
- Ele aparece, mas não passa lá muito tempo, segundo me disse a
mãe; tu experimentas, se vires que não aprendes peço para ires para outro
patrão.
- Está bem; na segunda-feira lá estarei, mas tenho a impressão que
aquilo não vai dar certo.
*
- Eu não lhe dizia? O senhor Guilherme nem lá pôs os pés; esperei,
esperei, ali feito parvo e ele sem aparecer, as pessoas que moram ali perto até
se riram de mim, disseram-me que é raro verem-no, por outro lado nem sequer lhe
entregam trabalho, nunca dá conta dele, e consta até que não é grande alfaiate,
tem uma fama terrível.
- Então vais para sapateiro; vou pedir ao Hilário, ele aceita-te,
ainda é da família, um tio dele foi casado com a minha falecida irmã Marília,
esse é trabalhador, e serviço não lhe falta, não podes é esperar que te dê
alguma coisa, é um forreta, um unhas-de-fome.
- Preferia a arte de alfaiate, é mais asseada, mas os mestres não
aceitam aprendizes, só se forem filhos ou sobrinhos, são todos da mesma
família, paciência.
- A profissão de sapateiro também é boa, não se apanha sol nem
chuva, é da maneira que começas a andar calçado com sapatos, esses tamancos
estão a dar-te cabo dos pés e descalço já não podes andar, já estás a ficar
crescidinho, tens doze anos de idade, e agora também saiu para aí uma lei a
proibir a gente a andar descalça! Mas olha que calçado não nos o dão eles,
canté!
- Eu até não me importava de andar descalço, só que os dedos dos
pés andam sempre esmurrados, uma lástima…
- Por causa do jogo da bola! Sabes o que podes fazer para ganhar
algum dinheirinho?
- O quê?
- Podes ir engraxar sapatos para o terreiro nos dias de feira e
domingos de manhã, sempre ajudava.
- Acho boa ideia; vou arranjar uma caixinha e escovas; compro a
pomada e tinta na loja do senhor Landeiro.
Sem comentários:
Enviar um comentário