domingo, 12 de abril de 2015

OS NOSSOS CONTERRÂNEOS

     Este texto foi publicado em «A Voz de Melgaço» n.º 1111, de 1/3/1999. Fiz-lhe agora algumas pequenas alterações, mas no essencial é o mesmo.



IGREJAS, Francisco Augusto. Filho de Francisco Augusto Igrejas (1880-1966) e de Deolinda Augusta Fernandes (1886-1963). Nasceu na Vila de Melgaço a 30 de Abril de 1916. Frequentou a escola como qualquer rapaz do seu tempo e no verão de 1929 fez exame do segundo grau, 4.ª classe, ficando distinto. Descendia, pelo lado do pai, de uma família de alfaiates e assim teve de aprender essa arte, que exerceu até aos vinte e três anos de idade. É precisamente com esta idade, a 10/4/1939, que casa com Dinora, filha de João Rodrigues Nabeiro e de Maria Joaquina Sacramento Lopes. O casal viria a ter seis filhos: Adolfo, Ventura, Augusto, António, José, e Rita. Após o casamento, mais concretamente a 1 de Julho de 1940, torna-se cartulário da Santa Casa da Misericórdia de Melgaço, lugar que ocupou durante 42 anos. Diplomara-se em 1959 como auxiliar de enfermagem, mas não exerceu oficialmente essa profissão, no entanto, eu lembro-me que na década de cinquenta era ele que dava injeções, tratava os feridos ligeiros, arrancava dentes, etc., e não se pode dizer que fosse um mau enfermeiro, apesar de não ter nessa altura as ferramentas sofisticadas que agora existem. Depois da revolução dos cravos passou a fazer parte do quadro dos funcionários do Centro de Saúde de Melgaço, com a categoria de 3.º oficial, tendo sido aposentado a 30/4/1986, com a categoria de 2.º oficial. Teve uma vida cheia e, embora nós não o saibamos, o mais certo é o “Gu”, como era conhecido, depois de ter sido pai e escrito um livro, também ter plantado uma árvore. O livro, «POESIA POPULAR», foi editado em 1989 pela Câmara Municipal, caderno n.º 6. O seu primeiro poema (gazetilha) apareceu, salvo erro, no Notícias de Melgaço n.º 905, de 17/7/1949. A sua mordacidade, o jocoso da situação, o pormenor burlesco, tudo ele capta com o seu sentido de humor sarcástico, mas simultaneamente ingénuo e bem-intencionado. O “Gu” agradece ao professor Ribeiro da Silva – um não melgacense que aqui viera carpir as suas mágoas – tê-lo iniciado nestas andanças da poesia. Claro que só poderá fazê-lo quem possua esse raro dom de transformar palavras rudes em macio tapete do dizer. Não se pode afirmar que estamos em presença de um grande poeta; mas alguns dos seus poemas são miniaturas de uma obra maior, que é toda a POESIA. No início receoso, depois afoito, lá foi avançando com as suas palavras brincadas, promovendo a sátira aos píncaros de uma magia inimaginável. Não foi maldizente, no sentido pejorativo do termo; ridicularizou, é certo, para melhorar, para tentar corrigir. E não lhe faltavam motivos, pois os autarcas lutavam com uma falta crónica de dinheiro para realizarem as obras públicas de sua responsabilidade, e por essa razão os remendos surgiam aqui e ali, como é apanágio do pobre que não tendo capital para comprar roupa nova vai remendando, remendando, até nada sobrar do antigo tecido, e os remendos aparecem então como obra nova! Os particulares também tinham as suas limitações, cometiam os seus erros, exibiam por vezes uma parolice indescritível, tudo matéria de saudável riso para um homem com olhos de águia e memória privilegiada. Uma das gazetilhas mais divertidas é sem dúvida alguma a das rolhas (páginas 88 e 89 do citado livro). Todos os comerciantes da Vila, salvo raras exceções, caíram no conto do vigário: compraram rolhas aos milhares, a fim de as venderem a uma suposta cliente, que horas antes as procurara afanosamente. Escreveu o poeta: «Quem precisar de uma rolha/prà garrafa ou garrafão/não precisa andar à solha/pois na Vila há um milhão!» Isto passou-se em 1965. A vaidade do jovem que levou a Melgaço um carro grande, mas velho e cansado, cuja subida a Castro Laboreiro não logrou, também deu a Francisco Augusto matéria para construir uma gazetilha mordaz, contundente, mas pedagógica. A novela radiofónica «Nunca é tarde para amar» proporcionou-lhe a oportunidade de escrever uma das gazetilhas mais irónicas e subtis: «Vem o vizinho Rogério/da vinha, de sulfatar;/mas se diz um impropério/responde a mulher a sério:/nunca é tarde para amar/e volta o pobre Rogério/cheio de fome, a cambar.» Esta estrofe resume um drama: o Rogério Lopes, de alcunha o “Cambado”, farto de trabalhar nos campos e na vinha, desde o nascer do sol, vinha almoçar, refeição do meio-dia, mas a sua esposa não lhe fizera o comer porque estivera a ouvir a novela na rádio! E o pobre homem pouco podia fazer, porque a sua Maria, obcecada pela trama do enredo, responde-lhe como um autómato: «nunca é tarde para amar!» E assim aconteceu em todo o bairro! Eu que, apesar de ser um moço, sofri na pele os efeitos nefastos dessa “doença” radiofónica, sei que tudo isso foi verdade, e que o Gu apenas exagera a excentricidade, realça a parte absurda, o nó que se desata de uma vida pacata e dirigida, comandada, de perto e à distância, pelo elemento masculino. Era como o despertar da mulher para o lazer, para o seu momento de relaxe, de «deixa andar»…, ele que se amanhe, se quer comer que o faça, ou então que espere! Foi o princípio da rutura, e ao nosso atento observador não escapou, como ao fotógrafo não escapa o esgar do aflito, ou o sorriso malicioso do namorado. Mas o Gu não escreveu somente gazetilhas: escreveu também letras para canções – para os bombeiros e cortejos de oferendas – e ainda alguns poemas de grave sentimento. Não dominou na perfeição a técnica poética, a arte de Horácio, não foi um Camões ou Antero, nem bebeu na fonte de Bocage, não pode figurar ao lado dos nossos maiores, mas ascendeu – por mérito próprio – à galeria dos poetas regionais, onde o seu humilde estro o guindou, e na qual permanecerá pelos tempos afora, enquanto houver humanos sensíveis e sonhadores do amanhã. Francisco Augusto Igrejas Junior deixou-nos a 15/3/1996. Ficou a sua recordação, a sua obra literária, a sua lição.                          

                                                                                                         Joaquim Rocha

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