terça-feira, 7 de abril de 2015




LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

                                            Por Joaquim A. Rocha




I

O sol só brilha quando as nuvens se afastam


     Certo dia, não sei precisar quando, isso também pouca ou nenhuma importância terá para a história, eu e a minha mãe estávamos em casa a conversar, numa conversa íntima, da minha parte recheada de críticas abertas e subtis, duras lamentações, lembranças de outros tempos, e de súbito, quase num desafio, pergunto-lhe:
- Mamã, por que bebe tanto? Será que algum dia vai deixar de beber?
- Bebo, bebo e bebo! Já lá dizia a outra: «morra Marta, morra farta.» Ninguém manda em mim. Canté! Todos querem dar ordens. Na Matilde ninguém manda – ouviste? Mando todos para o raio que os parta. Gosto de vinho, confesso. E depois? Os outros não emborcam? Mais do que eu. A tua tia Bernardina não bebe vinho, mas come todas as tardes sopas de cavalo cansado – um litro! Bêbados, são todos uns borrachos, uma pandilha, escumalha.
- Oh, mamã! Todos os santos dias, isto. Já não posso mais. Que mal teria eu feito para suportar tamanho sofrimento, tamanha provação. E logo eu, que nem pai tive. Sabe ao menos quem é o meu pai?
- É um pulha qualquer, um lacaio, um rafeiro, um lambão. Nunca quis perfilhar-te, dizia que não tinha a certeza que eras filho dele. Ao teu irmão perfilhava. Malandro! Desse não duvidava - «esse é mesmo meu», dizia ele com ironia e desfaçatez.
- E é de certeza meu pai?
- É teu pai, é. Enquanto andei com ele, longos quatro anos, não tive outro homem. Respeitei-o, mas o patife não o merecia. Logo que veio da tropa arranjou uma namorada galega. Coitada! Comparada comigo não valia uma só sardinha moída. Fugiu com ela, o pelintra. Que lhe aproveite – homens não me faltam, nunca me faltaram, graças a Deus. Dou um pontapé numa pedra e logo saem debaixo dela meia dúzia. Canté! Olha eu a ser escrava dele – a alimentá-lo, o chulo. Homens são todos iguais – lixo! As mulheres trabalham como moiras, de sol a sol, para os sustentar. Que trabalhem, têm bom corpo. Patife; o que ele queria era dormir até lhe apetecer, chouriço na brasa, cacete fresquinho, do galego, que era o mais saboroso, feito com a melhor farinha, e vinho, muito vinho. Mas não lhe servia qualquer um – do bom, só do bom, sumo de uva. Bebia um quartilho num abrir e fechar de olhos. Filho da púcara, que não volte. Racho-lhe a cabeça.
- Nunca lhe pediu para casar com ele?
- Casar? No princípio sim, para conseguir o que queria, para levar a água ao seu moinho, mas isso alcançado… Ele não queria comprometer-se, porque depois teria de vergar o canastro para sustentar os filhos. Vadio. O que ele queria era chular as mulheres, emprenhá-las e pôr-se a léguas. Cobarde. Racho-lhe a cabeça ao meio se o volto a ver. Canté! Que apareça, que eu dou-lhe o arroz.
- Sabe onde ele está?
- Emigrou para a Galiza, para ir morar com a peixeira. Deve viver à custa dela, o cornudo. Mas ela não é de assoar, eu conheço-a. Até lhe bate, se for preciso. Chupista, só quer comer à custa das mulheres, das desgraçadas.
- Mas se os pais dele eram caseiros, trabalhavam campos e leiras, ele devia ajudá-los.
- O quê? Afastava-se da lavoura como o demónio da cruz. O pai bem lhe ralhava, ia atrás dele com um vergalho e estendia-lho pelas costas abaixo – cada coça! Quando o apanhava, é claro. O pulha corria que nem uma lebre. Ficava derreado e as marcas no lombo notavam-se durante dias. Vinha logo ter comigo para o tratar. Punha-lhe panos de linho embebidos em vinagre, uma pomadinha caseira… Bem o mereceu, o alma-danada, sem coração, que me calcou aos pés depois de tudo que fiz por ele. Bem parva que eu fui. Trabalho não era com sua excelência! Para sustentar os maus hábitos, que eram incontáveis, contrabandeava qualquer coisa: algum café, umas barras de sabão, pedras de isqueiro…, só o suficiente para arranjar uma nota para os mil vícios. Quando o regato ia cheio, no inverno, e porque a ponte tinha sido destruída pelos soldados do Franco, transportava às costas galegos que vinham a Portugal e não se queriam molhar. Certa vez, um deles, depois de lhe pagar, disse-lhe: «Homem, é a primeira vez que um burro português me leva às costas.» Nada lhe disse, mas passados uns tempos o tal galego apareceu-lhe de novo. No meio do regato atirou com ele à água. Vingou-se. Metia-se também na cerveja, um luxo, vê lá tu.  // (continua).

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