quinta-feira, 31 de outubro de 2019

SONETOS DO SOL E DA LUA
 
Por Joaquim A. Rocha



desenho de Rui Nunes


UM ANO NUMA HORA

 Se eu pudesse sorrir eternamente,


Estar sempre feliz à tua beira,



Não haver pra mim noite derradeira,

Nem sonho ruim que fosse urgente.

 

Brotarem coisas boas na corrente,

Daquela água que corre na ribeira;

Fitando durante a vida inteira

Teu rosto de boneca sorridente.

 

Sentir-me-ia grato, recompensado,

Por tudo que sofri até agora…

Por tudo que na vida hei passado.

 

Minha alma ainda hoje implora

Por um diferente, um melhor fado,

Onde se viva um ano numa hora.
 
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Para venda = 10 euros.
 
 
 
Para venda = 10 euros.
 
 

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

CAPITÃO VALENTE - UMA POLÉMICA INTERMINÁVEL


                                                                 Por Joaquim A. Rocha






CARVALHO, Luís Augusto (Capitão). Filho de Francisco José de Carvalho e de Antónia da Assunção de Neiva, moradores no lugar da Carreira. Neto paterno de João Batista de Carvalho e de Rosa Joaquina Gomes Veloso, da Vila, SMP; neto materno de Manuel Joaquim (ou Manuel Caetano) de Neiva e de Lina (ou Luísa) Teresa Fernandes, do lugar da Carreira, todos lavradores. Nasceu em São Paio a 29/8/1880 e foi batizado na igreja a 31 desse mês e ano. Padrinhos: António Joaquim de Neiva e Genoveva Augusta de Neiva, proprietários, moradores em Parada do Monte (acho que ele era professor). // Casou na Conservatória do Registo Civil de Melgaço a 21/3/1915 com Rita, de vinte e dois anos de idade, residente em Lisboa, filha de Manuel José Esteves Codesso e de Maria Vaz, natural do lugar das Mós, freguesia de Penso. // Partira para Moçambique em 1898 onde, a 15/6/1912, foi promovido a 1.º sargento da Companhia de Saúde do Ultramar. // Em 1913 esteve de visita à terra natal, de onde partiu para Moçambique (Correio de Melgaço n.º 76, de 23/11/1913). // Em 1918 foi promovido a capitão (*), sendo colocado em Cabo Verde, onde esteve até 1925, data em que veio para o Hospital Colonial de Lisboa. // Reformou-se em 1930.

 

     Penso que foi com o artigo que segue, publicado no Notícias de Melgaço n.º 148, de 1/5/1932, que o capitão Carvalho iniciou a polémica com a Comissão Administrativa da Câmara, presidida pelo jovem Dr. João de Barros Durães (1903-1981): «PERGUNTAS: Ao Notícias de Melgaço, único órgão da imprensa local, nunca é dada informação sobre quaisquer planos ou obras a executar, nem sobre o que ocorre nestes momentos de crise e que o governo pretende debelar. Posto isto, fazemos estas perguntas aos edis que estão à testa da Administração Municipal. 1.ª – Tendo sido anunciado que da verba para Melhoramentos Rurais o governo destinara a este concelho mais de 38.000$00, esta importância ainda é gasta dentro deste ano económico e em quê? 2.ª – Quando se publica o relatório e contas, anunciado por um senhor vereador por ocasião de uma festa e em que dizia que o povo ficaria sabendo quanto custaram as ornamentações do salão nobre dos Paços do Concelho? 3.ª – Tendo sido anunciado há muito tempo o início da estrada para Castro Laboreiro pode ser informado se o governo efectivamente está na [disposição] de imediatamente dar princípio a este importante melhoramento concelhio e que na presente ocasião vinha debelar a enorme crise que atravessam os tralhadores deste concelho, ou se o anúncio seriam balões de ensaio das muitas promessas que se fazem em certas ocasiões? 4.ª – Quando se trata da arborização do Largo Hermenegildo Solheiro? 5.ª – Em que dia e horas se realizam as sessões da Comissão Administrativa? Agradecíamos uma nota oficiosa sobre estas perguntas.» L. A. de Carvalho.       
 

     Artigo publicado no Notícias de Melgaço n.º 150, de 22/5/1932. «Respondendo: no dia 9 do corrente, pessoa que temos na conta de amiga, disse-nos que no jornal “A Voz”, de Lisboa, vinha uma notícia em que éramos criticado pelos escritos que fizemos neste modesto semanário, acerca de melhoramentos locais. Sentimo-nos envaidecido, intimamente, pois seria verdade que os nossos modestos artigos na imprensa local fossem criticados até nos grandes colossos das capitais? Uma vez no Notícias de Viana, depois no órgão católico “A Voz”, aumentado de que uma nossa modesta carta merecera a Fra Angélico, no Jornal de Notícias, largas referências e transcrição… // Julgáva-nos um Zé-Ninguém, e de repente vemos a nossa prosa jornalística, [falha] de tinta lustral, referenciada e criticada, não no modesto semanário local, mas sim nos grandes órgãos da imprensa… Custava-nos a acreditar no dito do amigo e pedismo-lhe que nos enviasse o exemplar onde vinha essa publicação. Chegou-nos. Pusemos três vezes as lunetas… Não havia dúvidas… Era “A Voz”, de Lisboa, de 12 de Abril – Melgaço, 8 – Pela Câmara. Lemos e ficamos com pena de não sabermos o [nome] do autor, para lhe agradecermos a crítica no jornal de maior assinatura em Portugal. Enfim, éramos alguém… pois até já chegavam à capital da Nação os ecos de um humilde rural lançados no modesto hebdomadário local. Não podíamos deixar de festejar esse acontecimento. Convidamos imediatamente um dos nossos amigos de Monção, e família, para um banquete em nossa casa. No dia 12, de manhã, ei-lo aí, vem de automóvel, e depois de lhe mostrarmos as nossas belezas até São Gregório, o castelo da Vila, com o seu belo panorama, os Paços do Concelho, com a sua lápide, onde nos curvamos, fomos para o banquete, onde confraternizamos o regozijo que nos ia na alma, até às dezassete horas. Bem entendido – que o banquete que demos foi à nossa custa… Agora permita o correspondente de “A Voz” que lhe façamos a devida referência ao seu artigo e lhe notemos alguns comentários. Sofremos um pouco de surdez, devido ao uso que há muitos anos fazemos do quinino e, portanto, a nossa pituitária também está um pouco combalida; mas, o que lhe garantimos, é que tomamos chá há muitos anos... Serra do Pomedelo, com carreira de aviões. – Procuramos onde aquela era situada, mas tanto no Larousse como no dicionário geográfico não encontramos, pois devia ser uma serra conhecida, visto ter carreira de aviões. Portanto, será alguma serra de recente descoberta… E quanto aos aviões, destes, de lagares de azeite e de outras coisas que não conhecemos, nem percebemos, não falamos. A Câmara faz consultas, não a ignorantes, mas sim a técnicos. Ora nós, como técnicos da Câmara, só conhecemos um; mas esse, em conversa, jacta-se de só possuir o exame da instrução primária! Portanto, a massa consciente dos munícipes que lhe agradeçam o epípeto de ignorantes. Guiado pelo seu calendário. Não percebemos nada, por não conhecermos. Conhecemos ano económico e ano civil… O 1.º finda a 30 de Junho e o 2.º a 31 de Dezembro. Se isto é assim, faltam: o relatório referente a 30/6/1931, ou então a 31/12/1931. Após o falecimento do malogrado presidente Solheiro, alguns vereadores disseram que iam publicar o referente a 30/6/1931, aproveitando os dados deixados pelo falecido. A 6/1/1932, na festa inaugural dos Paços do Concelho, e num jantar, um vereador disse que ia ser publicado o relatório, no qual constaria tudo: custo do edifício, mobiliário, e a ornamentação do salão nobre. Então os senhores vereadores prometem relatórios, fazem afirmações em banquetes festivos, e depois não cumprem? Ou será somente incontinência linguareira dos senhores edis..., sem responsabilidades no que dizem?! A propósito, vai uma informação, que nos foi dada, e que gostaríamos de ver confirmada ou desmentida. Pouco depois dos nossos artigos publicados em 6 de Março e e 3 de Abril, procurou-nos um indivíduo que nos disse que não falássemos mais em relatório, pois que não havia vontade de o publicar, visto que umas certas despesas que haviam sido feitas, não sabiam que rubrica lhes haviam de dar, para os munícipes não se espantarem… e que alguém alvitrara que lhe dessem a rubrica de “Despesas Diversas”, à semelhança do que constava no relatório de1929-1930. Será verdade? E o que nos deu a informação seria emissário, como o seria o nosso amigo que nos informou da crítica feita no órgão católico, por ser jornal que não lemos? Continuando: Injecções que nos prega o Seringador. Se somos seringador, a culpa é dos senhores doutores Rocha e Sá e Vitoriano de Castro. Estes distintos clínicos receitam - aos seus [doentes] - injecções e dizem-lhes que venham onde a nós para lhas darmos. Como é para bem do nosso semelhante, estamos sempre às ordens. Para fazer bem à humanidade, a nossa casa está sempre aberta. Palavras, leva-as o vento; obras é que ficam… Exacto. Efectivamente, falamos muito. Podemos faze-lo de cara descoberta. Também escrevemos, embora mal…, mas com sinceridade e hombridade de carácter. E de que falamos e escrevemos? Pedimos melhoramentos para a nossa terra. Pedimos beleza, harmonia de conjunto, e método de organização. Pedimos que tudo isso seja feito a contento da grande massa dos contribuintes e não só para interesse restrito ou de compadres. É para todos que pedimos, e como não pode ser acordo geral, democraticamente, o acordo da maioria. E tudo quanto pedimos é com voz de trovão ou assinamos o que escrevemos. Não temos poltronaria (no jornal está poltrania) de carácter, como chamava Camilo aos que escrevem e se escondem na sombra. Finalizando, diremos ao correspondente a razão por que invocamos e invocaremos o nome do saudoso Solheiro. Era homem de carácter, e pelos factos que vamos contar é que o apreciamos. Dias depois de aqui chegarmos fomos às Águas do Peso. Ali encontramos o Governador Civil e o hoje falecido Solheiro. Cumprimentamos, e como com ambos mantínhamos boas relações pessoais, juntando, às do 1.º, boa camaradagem que tínhamos tido, pedimos melhoramentos para a nossa terra e, ao 1.º, o seu valioso concurso de Magistrado Administrativo. Tempos depois, ainda não conhecíamos o meio, falando com alguém da conversa havida, foi-nos dito: “o Solheiro é impolítico; se tivesse larguezas políticas tinha nomeado o Dr. António Cândido Esteves, e com isto conquistava as amizades políticas deste e da sua família.” Mais adiante, em uma conversa, depreciava-se a acção da sua obra… Dizia-se: “fê-lo devido à situação excepcional, e mesmo assim deixa o povo carregado de impostos e de encargos [sobretudo de juros à CGD] por largos anos… etc.” Pois os autores dos ditos, eram, como presenciamos, alguns bajuladores e que diante dele curvavam a espinha. E ele sempre altivo, sorridente, deixava-os… e passava adiante, e não vendera o seu carácter por uma nomeação… Entendam-me bem. Por isso, ao ele passar à última jazida, nas nossas sinceras palavras, exteriorizamos o que nos ia na alma. Para o bem da nossa terra e do país em geral, haverá sempre este que assinaL. A. de Carvalho                 



    
 

     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 151, de 29/5/1932: «Ao senhor L. A. de Carvalho. Num artigo intitulado “Respondendo”, salada russa indigestamente condimentada com Fra Angélico, Camilo, Larousse e tudo, um tal L. A. de Carvalho, que não sabemos bem quem seja, faz de mistura umas insinuações, que roçam pela perfídia e que vimos apurar bem. // O escriva, no citado relambório, quando ofende, diz sempre que foi um amigo que lhe deu tal informação. Isso leva-nos a crer que, ou procura encobrir-se com a cobardia de um diz-se, ou efectivamente é alguém que faz dele um instrumento inconsciente para ferir às escondidas, por não ter a coragem de o fazer às claras. // Seja como for, o senhor L. A. de Carvalho vai dizer-nos com o seu nome assinado, sem iniciais para evitar confusões, em termos claros e precisos, muito a sério, e sem atitudes de Calino: 1.º - quem foi o vereador que no jantar oferecido às autoridades que vieram dar-nos a honra da sua assistência na inauguração dos Paços do Concelho prometeu publicar o relatório das despesas e receitas da Câmara? 2.º - Qual o melhoramento, ou os melhoramentos que a Câmara Municipal fez, não para interesse público, mas sim para benefício particular de compadres? 3.º - Quais as despesas, suspeitas, que não podem ser descritas nas contas camarárias? 4.º - Quais as razões, - que ele tem - para duvidar da honorabilidade dos componentes da Câmara Municipal? // Queremos isto bem averiguado para se apurar se tais insinuações obedecem a inconsciência, ou a maldade. Se é inconsciência, temos o direito de exigir do proprietário do jornal que selecione os seus colaboradores, para não o transformar numa arca de Noé, onde tenham entrada todas as espécies animais. Se é maldade, temos também o direito de exigir do seu autor a responsabilidades das suas infâmiasA Comissão Administrativa da Câmara.

 


      Ainda no Notícias de Melgaço n.º 151, de 29/5/1932, lemos: «A BEM DA VERDADE. Acerca do nosso artigo com esta epígrafe, inserto no n.º 150 deste semanário de 22 de Maio, a bem da verdade, temos a declarar que o nosso amigo que nos disse que em “A Voz” vinha a notícia a respeito do que escrevêramos, e nos enviou o exemplar desse jornal, o fez pela amizade pessoal e não como emissário, pois que não se presta a servir de correio de ninguém. Também o indivíduo que nos disse que não falássemos mais em relatório, nos declarou que a conversa que connosco tivera fora de sua exclusiva lavra. Fica assim aclarado o que escrevemosL. A. de Carvalho.

 

    No Notícias de Melgaço n.º 152, de 5/6/1932, podemos ler: «Neste jornal e no seu n.º 151, de 22 de Maio, com o título “Ao senhor L. A. de Carvalho”, vem publicado um artigo subscrito por a Comissão Administrativa da Câmara. Diz a autora do artigo que não sabe bem quem seja um tal L.A. de Carvalho e repta-o a que lhe ponha para ali o seu nome assinado sem iniciais para evitar confusões e que, em termos claros e precisos, responda a quatro perguntas que lhe faz. Da forma como está escrito e assinado o artigo julgamo-nos desobrigados a responder, porque uma entidade impessoal não merece resposta, mormente pelo vocabulário que emprega, e também porque no artigo “Respondendo”, a que aquela faz referência, se não falou em Comissão Administrativa e apenas se deu resposta ao correspondente do jornal “A Voz”, como pode constatar quem ler com atenção o artigo “Respondendo”. Mas como temos bastante consideração pelos leitores deste semanário, diremos aqui quem é o tal L.A. de Carvalho. L. A. de Carvalho é a abreviatura com que assina o cidadão Luís Augusto de Carvalho, capitão reformado, da Administração de Saúde das Colónias, e que está nesta situação por ter prestado serviço à Nação Portuguesa por mais de trinta e dois anos efectivos, sendo destes mais de vinte e quatro de serviço nas colónias da África oriental e ocidental, residindo actualmente no lugar da Carreira, freguesia de São Paio, deste concelho, sua terra natal. Durante o seu largo estágio pelas colónias, além do seu serviço próprio, foi vereador da Câmara Municipal de Moçambique em 1919 e vogal dos Conselhos, Executivo e Legislativo, da colónia de Cabo Verde em 1923/1924, além de outros que se não enumeram. Quem quiser saber a verdade, é vir a esta casa que se mostram os documentos oficiais. É autor, e do qual toma inteira e absoluta responsabilidade, dos seguintes artigos publicados neste jornal com os títulos: “Melhoramentos Locais”, no n.º 142, de 6/3/1932; idem, no n.º 146, de 3/4/1932; “Administração a la diables”, no n.º 147; “Preferência” (era “Perguntas”, mas este título foi truncado), no n.º 148, de 1/5/1932; “Comunicações” e “Questão Operária”, no n.º 149, de 8/5/1932; “Respondendo”, no n.º 150, de 22/5/1932, resposta ao correspondente de “A Voz”, de Lisboa. Lamenta que quase todos os artigos tenham saído truncados e com gralhas, de que algumas ainda retificou. Portanto, sabendo quem é o tal L.A. de Carvalho, podem chamá-lo à responsabilidade como melhor entenderem. E desde já lhes alvitramos que submetam o pleito ao sagrado tribunal da opinião pública melgacense, mandando imprimir os nossos artigos, o do correspondente do “Notícias de Viana”, o do correspondente de “A Voz”, aos quais fazemos referências nos nossos, e lhe ponham como capitel o da senhora Comissão Administrativa da Câmara, recomendando este à Academia de Ciências, para ser inserido nos livros escolares como peça literária de altíssimo valor, pelo vocabulário que contém, e também ao senhor Dr. Guerreiro Murta para nas novas edições do “Como se aprende a redigir” e “Manual da Língua Portuguesa” ser tomado em consideração como espécime educativo. // Nada mais teríamos a dizer à Sr.ª Comissão Administrativa da Câmara; porque - não vindo assinado pelos seus componentes - não sabemos a quem atribuir a responsabilidade do escrito; mas, como gostamos das coisas claras, vão uns esclarecimentos. Não faríamos eco do que disse um vereador se não o ouvíssemos da sua própria boca. Como não frequentamos lugares onde se colhem informações, nem somos repórter, quando nós fazemos eco de qualquer informação é porque nos foi dita por pessoa, ou pessoas, de confiança, no entanto pomos de remissa com o – será verdade? Não somos atrito a servirmos de instrumento de outros e agradecemos aos amigos as boas informações, porque se não fossem eles não teríamos conhecimento do artigo do correspondente de “A Voz”. Lembramos à Sr.ª Comissão Administrativa que leiam com atenção um artigo publicado no jornal “Notícias de Viana”, de 21/5/1932, sobre o que o referido jornal diz dos vereadores da Comissão Administrativa da Câmara daquela sede, demitida, em que lhe nota todos os benefícios feitos, mas a censura por ter feito serviço individualista, não lhe dando a devida publicidade. Como na nossa alma não se abrigam maldades, infâmias, perfídias, ou outras escorrências soezes, devolvemos à Sr.ª C. A. todos esses vocábulos empregados para os distribuir pelos seus membros. A nossa alma é límpida e não fazemos salada russa para melindrar qualquer pessoa por mais humilde que seja. Salada e baralha confusa faz a Sr.ª C.A. no seu artigo, pois faz perguntas que não percebemos qual o fim que querem atingir. Nos nossos artigos nunca tocamos qualquer coisa do que vem nas perguntas. Se criticamos e fazemos reparo ao que fazem entidades que desempenham cargos públicos, é porque entendemos que quem está à testa deles não é invulnerável ou intangível, e erra como qualquer mortal.» // Luís Augusto de Carvalho, capitão. Notícias de Melgaço n.º 152, de 5/6/1932.

 

     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 153, de 12/6/1932: «Ao Crítico da Câmara. Da prosa do senhor capitão Carvalho – este senhor é muito fecundo em escrever e muito sóbrio em pensar – apenas se aproveita isto: “A Comissão Administrativa no seu artigo fez perguntas que não percebemos qual o fim que querem atingir; nos nossos artigos nunca tocamos qualquer coisa do que vem nas perguntas.” Ora, nós baseamos as nossas perguntas nos seguintes dizeres do senhor capitão Carvalho: 1.ª – Então os senhores vereadores prometem relatórios, fazem afirmações em banquetes festivos e depois não cumprem? Ou será somente incontinência linguareira dos senhores edis, sem responsabilidades no que dizem? 2.ª – Pedimos melhoramentos… que tudo isso seja feito a contento da grande massa dos contribuintes e não só para interesse restrito ou de compadres. 3.ª – Pouco depois dos nossos artigos publicados - em 6 de Março e 3 de Abril - procurou-nos um indivíduo, que nos disse não falássemos mais em relatório, pois que não havia vontade de o publicar, visto que a umas certas despesas que haviam sido feitas [eles] não sabiam qual rubrica lhes dar.» Convidado a explicar-se, o senhor capitão Carvalho declara imponentemente que não disse nada que justificasse o repto que lhe fizemos. Na presença de semelhante miséria, somos obrigados a considera-lo um pobre diabo que, pela sua insignificância mental, não pode ser tomado a sério. E ponto finalA Comissão Administrativa da Câmara. // NM 153, de 12/6/1932.

 

 

     No Notícias de Melgaço n.º 153, de 12/6/1932, lê-se a «Carta ao Senhor Capitão Carvalho: meu ilustre amigo – aqui me tem às suas ordens. Sou eu o correspondente de “A Voz”, que tanto desejava conhecer. Em primeiro lugar, em presença da sua imponente (!), magnífica, opulenta de serviços e bem-fazer, irradiando a luz da glória, que se esconde (!) famosa e linda muito ao (!) longe, do lugar da Carreira, da freguesia de São Paio, (herói?) de nossas colónias, cumpre-me saudá-lo em posição de sentido, com o verso do nosso épico: “Ditosa pátria que tal filho…” // O meu capitão conhece Moliére? É compatriota daquele seu amigo Larousse, onde …………… procurar a serra de Pomedelo. É também autor de uma farsa que se intitula “Médico à Força.” O seu protagonista, que nunca estudou medicina e que um dia foi obrigado a fazer a síndrome de uma doença; encravado, saiu-se da dificuldade, recitando um ……….. macarrónico, que tenho pena não ter presente na memória para reproduzir aqui ……….. com ênfase: “E aqui está a razão por que o menino está doente.” A sua resposta às perguntas da Câmara, enchendo colunas de prosa (…), sem dizer nada sobre o assunto que se discutia, fez-me lembrar o meliante do tal médico à ……. do glorioso comediógrafo francês. V. Ex.ª no seu artigo tem ……… admiráveis, resultante talvez dos seus conhecimentos de estratégia militar. Diz, por exemplo, que não era obrigado a responder à Câmara, visto o seu artigo se dirigir ao correspondente de “A Voz”. Faz-me lembrar o seguinte caso: um homem muito conhecido, cujo nome me não lembra, passou por uma rua de Lisboa e parou em frente de uma mercearia, onde estava, à porta, em exposição, uma barrica de manteiga. Por distração, cuspiu nela. O marçano avança para o sujeito, increpando-o ferozmente pela porcaria. - Perdão, lhe diz ele. Julgava que eram azeitonas. E retirou-se serenamente, enquanto o marçano, embasbacado, ficou a pensar nas razões que o homem teria para poder cuspir se fossem azeitonas. Também eu fiquei igualmente pasmado a meditar nos motivos que teria o meu capitão para poder, imponentemente, lançar suspeitas à honra da Câmara, pelo facto de endereçar o seu artigo ao correspondente de “A Voz”. Pensei que o autor do escrito era um Carvalho qualquer. Tão enojado andava, das suas perlengas, que até me deu vontade – Deus me perdoe – de o mandar para o apelido. Afinal saiu um Carvalho categorizado, capitão do exército, com uma brilhante folha de serviços no continente e colónias. Perante tal revelação, estou arrependido, da parte que me toca, no emprego daquelas palavras duras, que tantos engulhos lhe causaram. Mas…, valha-nos Deus, meu capitão. V. Ex.ª não provando nada das acusações que fez à Câmara deixou em pé esses vocábulos, a feri-lo como látegos contundentes. V. Ex.ª quer ser crítico da Câmara? Ninguém lhe nega esse direito. Como quer, porém, que não o consideremos um crítico de má-fé, sem aquela nota inerente à boa crítica, que é a imparcialidade, se em toda a obra da Câmara só encontra motivos para censurar e nada que lhe mereça louvor? Dê-nos, meu capitão, o consolo de um elogio saído da sua pena consagrada e tudo acabará a bem. Esta já vai longe, por isso termino; agradecendo-lhe os momentos de alegria que me proporcionou, porque – nestes tempos de tanta tristeza – o riso é o melhor bem deste mundo. Abraça-o o seu amigo e admiradorArtur d’Almeida (pároco de Penso e vogal da Câmara Municipal de Melgaço).        

 

     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 154, de 19/6/1932: «À Ex.ma Câmara – Tendo a Comissão Administrativa ao concluir o seu artigo com o título “Ao Crítico da Câmara”, publicado no n.º 153 deste semanário, dito – E ponto final – nós não lhe damos esse ponto final, mas desta vez dirigimo-nos ao seu Presidente, por ser este o lídimo representante do Município. Ex.mo Sr. João de Barros Durães: V. Ex.ª num quarto de hora, bem inspirado, do Ex.mo Governador Civil, foi investido nas funções de presidente da Câmara Municipal de Melgaço, substituindo um ilustre melgacense, que a parca arrebatara. Como novo, ilustrado, desejoso de ter nome, era a pessoa indicada para fazer figura brilhante. A partir do seu investimento nesse cargo, V. Ex.ª era o representante do 1.º corpo administrativo do concelho e, nessa qualidade, administrava e representava católicos, ateus, protestantes, nacionalistas, unionistas, integralistas, democráticos, republicanos e socialistas. Enfim, a sua religião e o seu partido era, na qualidade do seu cargo, considerar todos no mesmo pé de igualdade. Nós, como bairrista acérrimo, embora não possuindo, como de facto não temos, tinta (deve ser pinta) lustral de jornalismo, escrevemos em 6 de Março, neste semanário, um artigo em que pedíamos, em virtude do Poder Central ter decretado várias medidas atinentes a debelar a crise com obras de fomento, melhoramentos para a nossa terra, aproveitando a ocasião que se nos oferecia. E esses melhoramentos estão todos no ânimo dos nossos concidadãos melgacenses. A esse apelo, apareceu no jornal “Notícias de Viana”, que nem todos os nossos conterrâneos leem, umas referências ao nosso artigo, não no sentido de colaborar e auxiliar esses melhoramentos, mas sim em tom faceto do que escrevêramos. Respondemos em 3 de Abril. Parece-nos que estava indicada uma nota oficiosa, dimanada da Câmara, a respeito desses artigos, dissesse que estava no ânimo da C.A. aproveitar a oportunidade que ofereciam as medidas do Poder Central, ou então que não concordavam com a sugestão. Enfim, mostrar que as sugestões dos munícipes lhe mereciam consideração ou que eram rejeitadas em absoluto e, neste caso, eles ficariam sabendo que a C.A. estava divorciada de quaisquer alvitres que lhes propusessem os munícipes, e só faria administração de facção. Esses nossos artigos não foram lidos através de vista clara e límpida, mas sim por estrábicos e hemarólopos, e interpretados com sectarismo por almas impregnadas de facciosismo maldoso e, portanto, criticados e estigmatizados, não na imprensa local, mas no jornal “A Voz”, de Lisboa, onde se diz - «A Câmara tem feito sempre consultas; não a ignorantes, mas sim a técnicos, àqueles a quem reconhece competência profissional.» Tivemos de responder e isso originou o que o Sr. Durães bem conhece, os escritos da Comissão da sua digna presidência, que nos parecem não primar de correcção e somente amesquinhar-nos com os vocábulos que empregam, o que não dignifica a C.A., nem honra a CMM. – Ex.mo Sr. Durães: - vamos reeditar e ampliar alguns dos nossos pedidos e que levantaram bastante celeuma, tanto ao correspondente de A Voz como à C.A., da sua presidência. Aquando da perda do seu antecessor disseram que iam publicar o relatório que o falecido trazia em preparação. Aguardávamos com impaciência essa publicação, pois como documento póstumo o queríamos referenciar. Falamos nesse relatório nos nossos artigos e até esperávamos que a C.A., na imprensa melgacense, dissesse, como homenagem, qualquer coisa. Ao nosso apelo nada se disse, se havia sido publicado ou não. Pois, Sr. Durães, tivemos há pouco a seguinte surpresa: em 26 de Maio entramos em uma casa comercial da aldeia. O dono, mostrando-nos um livro, perguntou-nos se o havíamos lido. Pegamos-lhe e folheamo-lo e vimos ser o relatório que nós há tanto tempo aguardávamos e reclamávamos. Respondemos que não tínhamos lido, pois se nos tivesse vindo à mão não teríamos nos nossos artigos insistido por ele, como se vê do artigo “Respondendo”. Perguntando-lhe se o possuía há muito tempo e como lhe fora ter às mãos, cochichou-nos que há pouco tempo lhe fora arranjado, mas se quiséssemos no-lo emprestava. Recusamos o empréstimo, pois entendemos que se foi impresso, por conta da Câmara, deve ser remetido às instâncias oficiais e aos munícipes a que a Câmara entenda, e anunciado no jornal local a sua publicação e preço de venda dos exemplares sobressalentes, e facultado um exemplar aos munícipes que na biblioteca da Câmara o queiram consultar. Se foi impresso por conta particular, do bolso dos senhores vereadores, então eles podem dá-lo a quem muito bem entenderem. Da forma como o comerciante o arranjou, nós não o queremos. Vamos ao resto: um senhor vereador disse que num relatório que ia ser publicado, o público ficaria sabendo o custo do edifício dos Paços do Concelho, mobiliário e ornamentação do salão nobre, etc. – Sr. Durães: antecipadamente agradecemos que quando esse relatório for publicado, anunciem a edição e se se vende, pois que desejamos adquirir um exemplar. A Comissão Administrativa muito se estimulou com o que vamos reeditar: pouco depois dos nossos artigos de 6 de Março e de 3 de Abril, um indivíduo procurou-nos e disse-nos que não falássemos mais em relatório; pois que não havia vontade de o publicar, visto que a certas despesas (que haviam sido feitas), não sabiam que rubrica lhes haviam de dar e que alguém alvitrara que lhe dessem a rubrica de “Diversas Despesas”, à semelhança do que constava no relatório de 1929/1930. Nós fechávamos com o – será verdade? – e antecipávamos a notícia pedindo o desmentido ou confirmação. Sr. Durães: aquilo é síntese da conversa que tive. Se V. Ex.ª quiser responder, pode faze-lo; senão aguardaremos a publicação do relatório. A Comissão Administrativa no seu quesito 2.º do artigo de 29 de Maio, diz: - Quais os melhoramentos que a Câmara Municipal fez; não para interesse público, mas para benefício particular de compadres? Sr. Durães: nós atrás dizemos que os nossos artigos foram lidos e interpretados diversamente do que era, e este quesito é um deles. A C.A., da sua presidência, tirante a demolição de um prédio, e continuar os contratos e deliberações do seu antecessor, que nós saibamos, nada fez, absolutamente nada! E por isso não se pode criticar aquilo que não é feito. Deve ser censurada até por aquilo que deixou de principiar em tempo oportuno, como foi a arborização do Largo Hermenegildo Solheiro e a instalação da feira do gado, que nestes tempos de calor faz esterricar os animais. O 4.º, diz: - Quais as razões que tem, para duvidar da honorabilidade dos componentes da Câmara Municipal? Oh! Sr. Durães: - esta é de pau! Nós, com a franqueza e sinceridade que nos carateriza, se soubéssemos, ou conhecêssemos, que os vereadores eram desonestos chamávamos-lhes com todas as letras. Em certos actos e deliberações, vimos algumas vezes que enveredam por critério diferente do nosso. Mas esses são modos de ver. E errar, muita gente erra… e em pública administração é isso o pão nosso de cada dia. A Comissão Administrativa diz que somos fecundo em escrever e muito sóbrio em pensar. – Sr. Durães: bem faz a C. A. da sua presidência, pensa muito e não escreve [quase] nada. E o pouco que escreve, e alguns dos seus componentes, como correspondentes de jornais, e coletivamente em resposta a artigos na imprensa local, emprega um fraseado que não abona a boa correção de escrever para o público. Adiante… Na presença de semelhante miséria – riqueza de vocabulário, repetimos, [como] é o da Comissão Administrativa – somos obrigados a considerá-lo um pobre diabo. Oh! Sr. Durães: éramos rico diabo quando V. Ex.ª nos dizia que deixássemos a Aliança Republicana Socialista para nos integrarmos na União Nacional. Já a deixamos, mas continuamos independente. Antes só do que bem ou mal acompanhado. … pela sua insignificância mental. – Não pedimos vírus mental à Comissão Administrativa porque então descambávamos para o tripúdio pessoal, com aquele belo fraseado com que fui mimoseado. // … não pode ser tomado a sério – pois riam-se, que quem se ri faz festa. Sr. Durães: este vai longo e vamos fechar, mas antes permita-nos que lhe digamos que a C. A. da sua presidência nos chama “Crítico da Câmara”. Então sendo nós um insignificante mental, podíamos ser crítico? E, por último, uma perguntinha, no interesse do nosso concelho. Dos anunciados 38.000$00 que pela verba dos melhoramentos rurais a este concelho [cabiam], fez-se ou projetou-se alguma coisa? E por nós é que pomos – Ponto final.»
Luís A. Carvalho, capitão                            
    
  
     Lemos no Notícias de Melgaço n.º 154, de 19/6/1932: «Carta ao senhor Artur d’Almeida. Preclaro sacerdote – V. R.ma, que não é natural deste concelho, quando nos endereça a sua epístola não intercalou no seu nome a “Ascensão” que realizou da sua terra natal para uma abadia deste nosso torrão, como pastor d’almas, e que - como os seus fregueses o julgavam de encomenda – V. R.ma os repreendeu por não lhe darem o título a que tinha direito e, portanto, que o tratassem pelo seu nome, que era bonito. // Não é só bonito, é catita, como catita é a sua carta, e pena foi, na ocasião em que a ditou, estar amnésico, a respeito do latinório que o Médico à força empregou, pois que gostávamos de o conhecer. // Na sua carta diz-nos que “ficamos” ferido com látegos contundentes… Bem vemos que V. R.ma fez de nós Jesus Cristo. Condenou-nos num tribunal onde V. R.ma ditou a sentença, escrita por um jovem e incitada por um fariseu. O abraço já no-lo envia. Falta o ósculo, que nós receberemos quando quiser. // Augusto Taveira, descrevendo a origem e vida de Jesus Cristo, diz que quando o precioso corpo foi despregado do madeiro, e entregue a Nicodemos, recebeu carinhosa assistência da “incomparável e divina criatura que se chamou Maria Magdala”, ajudada piedosamente pelas suas jovens companheiras que eram Maria Cleopbas e Maria Salomé (Renan, Vie 353). Tinha razão a divina e encantadora Magdalena quando no sepulcro ao senti-lo estremecer, como num despertar de agonia, banhada em lágrimas, lhe murmurou ao ouvido: “Não valia a pena, não valia a pena.” // Nós, que não queremos ser um 2.º Jesus Cristo, diremos: “não vale a pena” perdermos mais tempo. Por isso, exortámo-lo a que quando faça a sua Ascensão ao púlpito V. R.ma no auge das suas perlengas oratórias não pratique a irreverência de mandar os fiéis para o nosso apelido, conforme nos queria mandar… Às ordens, o Cristo que se chama Luís Augusto de Carvalho, capitão.»   

 

     Notícias de Melgaço n.º 155, de 3/7/1932. «PROGRESSO DE MELGAÇO, por L.A.C.: - Este concelho é o cocuruto de Portugal. Penetrando na Galiza, tendo como limites com esta o rio Minho a noroeste e a raia seca a norte, para o seu progresso e desenvolvimento económico carece de muitos melhoramentos materiais. Possui uma grande riqueza: que são as suas Águas Minero Medicinais do Peso. Mas estas, só por si, não lhe prestam o necessário desenvolvimento enquanto outros melhoramentos não forem realizados. Entre alguns, os de maior acuidade, são as suas vias de comunicação, devendo seguir-se-lhe os de ordem estética para o seu aformoseamento. Há mais de quarenta anos, algumas vias de comunicação se projetaram, mas em realidade só se converteram 8,5 km de estrada até à fronteira de São Gregório, e 2,5 km de estrada municipal para Paderne. Os seus caminhos vicinais são o inferno para a tração animal de gado bovino, havendo pontos ínvios para a ligação com os das suas serranias. Algumas destas faltas se teriam remediado se tivesse havido persistência no pedido ou se em uma descentralização administrativa fossem dados recursos pecuniários aos seus corpos administrativos. Pertence, pois, a todos os melgacenses, unirem-se para pedirem que a pouco, e pouco, a sua terra seja dotada com um mínimo dos seus melhoramentos materiais. No campo, dos de realização imediata, vamos enumerar pela ordem da sua urgência os que nos parecem principais. Em vias de comunicação: 1 – ligação na fronteira de São Gregório com a estrada galega, sendo o governo espanhol o que falta dar execução ao seu troço até ao rio Trancoso. 2 – Construção da estrada para Castro Laboreiro, a continuar depois para ligação com Lindoso ou Arcos de Valdevez. 3 – Uma alameda desde as Águas do Peso até ao rio Minho, para recreio dos aquistas, fazendo-se à margem do rio umas barracas para na época apropriada em que as águas vêm mais carregadas de agentes terapêuticos, se poder tomar banho. 4 – Entabular negociações com o governo espanhol para a construção de uma ponte sobre o rio Minho, entre São Marcos e Arbo (estação). 5 – Continuação da estrada municipal de Paderne, atravessando Queirão e Felgueiras, a entroncar na estrada nacional 1-1.ª, na freguesia de Penso, no lugar da Polita. 6 – Uma estrada de 3.ª classe, ou caminho largo empedrado, sem lacadas, partindo de Paderne da estrada municipal, pela igreja de São Paio, a entroncar na de Castro Laboreiro, nas alturas de Sante ou Lourenços. 7 – Uma estrada de 3.ª classe, ou caminho largo empedrado, partindo da estrada de São Gregório, por Fiães, até ao lugar de Alcobaça. 8 – Idem, do lugar da Igreja, Rouças, a entroncar com a estrada de Castro Laboreiro. 9 – Um caminho empedrado e ponte sobre o rio Mouro, da estrada de Castro Laboreiro para o centro da freguesia de Parada do Monte. 10 – Idem, do lugar de Pomares para Cousso e Gave. // Em ordem do seu urbanismo: 1 – Ligação, por meio de viaduto, dos Paços do Concelho à estrada nacional 1-1.ª. 2 – Uma rua do Largo Hermenegildo Solheiro ao castelo. 3 – Conclusão da rua projetada entre a Praça da República à estrada nacional. // Em ordem de aformoseamento e utilidade material: 1 – Arborização das valetas das estradas com árvores frutíferas, tais como oliveiras, nogueiras, cerejeiras, e outras para madeira, como eucaliptos, acácias e choupos. 2 – Arborização dos baldios e sítios chãos do alto das montanhas com pinheiros, sobreiros, castanheiros, etc. // No campo do ensino: 1 – Construção dos edifícios e criação de escolas primárias necessárias para a sua população infantil. 2 – Criação e sua conveniente instalação de uma escola do ensino complementar, com o caráter agrícola profissional, tendo uma secção de instrução para aperfeiçoamento de operários. // Todos os melhoramentos enumerados, salvo melhor opinião, são todos necessários, podendo talvez prescindir-se do da ponte para Arbo. Haverá outros mais necessários. Apelo para os conterrâneos, amigos do progresso do concelho, o auxílio para a consecução destes fins.»        




     No Notícias de Melgaço n.º 199, de 25/6/1933, pode ler-se: «na passada quarta-feira, de tarde, quando se estava realizando a feira, no Largo Hermenegildo Solheiro, encontraram-se Marcelino Ilídio Pereira, comerciante e rico proprietário de Penso, e o capitão Luís Augusto de Carvalho, os quais, depois de alta e acalorada discussão, passaram a vias de facto com os respectivos guarda-sóis, sendo o primeiro o que iniciou a luta. Acudiram várias pessoas que apartaram os contendores. Da refrega saiu ferido o segundo, com uns ferimentos no olho esquerdo feitos com o manípulo do guarda-sol (…) o qual recebeu tratamento na Farmácia Araújo, sendo os socorros médicos prestados pelo Dr. Sá… Consta-nos que o segundo vai mandar imprimir em folheto, para distribuir, uma carta que deu origem ao conflito

    

     Por sua iniciativa, e como fora mobilizado, organizou-se em Melgaço, por volta de 1935 (Notícias de Melgaço n.º 276), uma agência, ou secção, da Liga dos Combatentes da Grande Guerra (1914-1918). // A 30/3/1937 foi operado no Hospital Militar da Estrela, em Lisboa (NM 348, de 4/4/1937 e 358). // Colaborou com certa regularidade no «Notícias de Melgaço». // Morreu no lugar da Carreira, São Paio, a 10/9/1940. // A sua viúva finou-se em Penso a 18/7/1966. // Nota: ver, no Notícias de Melgaço n.º 151, página 3, o seu artigo “Responsabilidade Profissional.” /// (*) No Jornal de Melgaço n.º 1306, de 26/9/1920, diz-se que ele foi «promovido a tenente da Companhia de saúde…»; continuava a viver em Moçambique.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

LINA - FILHA DE PÃ

romance

Por Joaquim A. Rocha




12.º Capítulo
 



     Voltemos a Lamas Santas. A Lina já mantinha uma certa intimidade com o patrão. Um dia dirigiu-se à loja, onde a patroa estava, e disse-lhe:

 

- Dona Emilinha, precisava da tarde de hoje, preciso de ir fazer umas compras à Vila, e ao mesmo tempo visitar umas pessoas amigas. Por volta das seis e meia, sete horas, já devo estar de volta.

- Vai Lina, vai, mas antes deixa tudo adiantado para a ceia.

- Está tudo em ordem, não se preocupe.

 

     Saiu. Andou um bom bocado a pé, em direção à Vila, e eis que de repente surge o carro do patrão. Este abriu a porta da viatura e ela entrou apressadamente.

 

- Espero que ninguém te tenha visto entrar. Não gostaria que a Emília soubesse.

- A tua mulher não conta. Aposto que já não fazem nada!

 

     Ele riu-se, e comentou:

 

- Aquilo parece mais um elefante, ou um hipopótamo, do que um ser humano! Em outra encarnação deve ter sido um mastodonte ou um dinossáurio!

 

     Ela, malevolamente, acrescentou:

 

- Qualquer dia a cama vai-se abaixo com o seu peso!

 

     Riram-se com gosto. Aquelas piadas idiotas e grosseiras davam-lhe imenso gozo. Sentiam-se à vontade um com o outro – eram da mesma laia.

 

- Foi bom ter-te conhecido – diz ela, olhando-o com ternura. – Estavas destinado para mim, ainda há quem diga que o destino não existe!

- Nunca imaginei vir um dia a amar-te; falaram-me muito de ti, das tuas experiências extravagantes, mas daí a poder chamar-te minha ia um rio do tamanho do Amazonas. 

- Agora estamos juntos e nunca mais nos separaremos. Nem a tua esposa será obstáculo a esse desígnio. Eu quero-te só para mim e serei, a partir de agora, somente tua. Se necessário for, se alguém se meter entre nós dois, tomaremos medidas severas – até sou capaz de…!

 

    Ele não a deixou acabar a frase:

 

- Cruzes, canhoto! Vira para lá essa boca, meu amorzinho, não me fales em mortes; até parece que queres acabar os teus dias numa prisão! O que fizeste até agora foram quase brincadeiras, algumas das quais até dão para rir; porém, matar, isso é mais grave. E já agora: eliminar quem, e por quê?!

- Isso logo se há-de ver.

- Eu, no Brasil, vi-me obrigado a recorrer, apenas uma única vez, a um assassino. Eliminar aquela criatura era uma questão de vida ou de morte para mim. Estava sendo perseguido por causa de uns negócios que eu fizera. Prejudiquei um poderoso negociante de café e borracha, embora não tivesse sido essa a minha intenção, mas pronto: prejudiquei, e o indivíduo queria matar-me por causa disso. Era ele ou eu.     

- Se calhar estavas a estragar-lhe o negócio; considerou-te um rival.

- Eu, à beira dele, financeiramente era um anão; estava ainda no princípio. 

- Os obstáculos devem ser retirados do nosso caminho; tu fizeste apenas o que tinhas a fazer. Nós somos os mais importantes: os outros são sempre os adversários, até prova em contrário.   

- Pensamos da mesma maneira, somos da mesma estirpe, mas uma coisa te peço: não me metas em sarilhos. Por causa deles vim eu embora do Brasil.

    

     Os encontros amorosos continuaram por longo tempo. A Lina foi tomando conta da casa, até já parecia ela a senhora! Dona Emília começou a desconfiar da empregada. «O que se passaria para ela agir assim?» Movia-se à vontade, falava com um atrevimento pouco usual em subordinados, olhava para o seu Filipe com descaramento. Um dia, quando estava só com o marido, perguntou-lhe:

 

- Senhor meu: você sabe o que se passa com a nossa empregada? Ela está saída da casca, parece ser ela a dona da vivenda!    

- É impressão sua; ela foi ganhando confiança connosco, nós demos azo a isso. Eu sou de opinião que ela se está portando bem. Deixe passar mais algum tempo e você vai ver que muda de opinião.

- Que Deus o ouça!   

 

     Num dos próximos encontros entre Filipe e Lina, ele avisa-a:

 

- Estás a ir longe de mais: a Emília está desconfiando da tua atitude. Precisas de ter mais cuidado, senão ela põe-te na rua. Eu nada poderia fazer, pois se fizesse algo, isso me denunciaria.

- Tens razão: a tua mulher começa a ser um obstáculo na nossa vida. É necessário cortar o mal pela raiz!

- Tens já alguma ideia como fazê-lo? Olha: não contes comigo, para nada. Eu não o impeço, estou farto de ter na minha cama aquele rinoceronte, ressonando como um porco, ocupando quase oitenta por cento do espaço, mas também não quero ser acusado de cumplicidade contigo. Faz o que tens a fazer, mas sem a minha ajuda.

- Deixa o caso comigo – alguma coisa de jeito hei de descortinar. Porém, uma certeza eu te posso garantir: – ninguém suspeitará de mim ou de ti. Será uma morte natural, sem intervenção humana. – E deu uma gargalhada estridente. – A tua mulher é doente, não é? Pois então?!  

 

     Durante dias meditou na maneira de destruir a vida da rival. Finalmente descobriu: o chá. «Como não pensara nisso mais cedo? Pois claro, o chá. Primeiro tinha de reconquistar a sua confiança; depois convencê-la-ia a tomar uma chávena desse chá milagroso, que lhe devolveria a sua antiga forma física e com ela a plena saúde

 

     Se assim o pensou, melhor o executou. Em um dia de feira foi à Vila e na farmácia, ou drogaria, comprou um pó para eliminar ratos. Era considerado normal as pessoas da aldeia irem à botica comprar esse produto, pois esses malditos bichos infiltravam-se em toda a parte, roendo tudo o que encontrassem a dente – eram considerados uma autêntica praga. Quando regressou, dirigiu-se à patroa, com uma voz meiga, pouco habitual nela:

 

- Dona Emilinha: trago para si uma prenda.

- Cruzes, abrenúncio! O que será? Vinda de você só se for uma prenda envenenada!

- Credo, minha senhora! Eu só desejo o seu bem e do seu marido. Nunca me passaria pela cabeça fazer-vos mal.

- Então o que é? Diz lá!

- Um chá. Trago-lhe um chá que tem feito milagres. Toda a gente o gaba. Elimina as gorduras do corpo, tornando as pessoas mais magras, mais elegantes, e com mais saúde.

- Isso é verdade? Bem precisava de uma coisa assim. Nem faz ideia o que é ser gorda: quase que nem posso andar. Nem sequer tenho coragem para me colocar em cima da balança. Noventa? Cem quilos? E de vez em quando sinto-me mal disposta. Os médicos nunca descobriram remédio para este mal – pedem-me apenas para ter cuidado com a alimentação e que faça um pouco de exercício; mas que exercício, se eu mal me posso mexer?

- Vamos iniciar mesmo hoje a receita: quando se deitar levo-lhe uma chávena de chá à cama. A Dona Emilinha toma-o depois das refeições: depressa se curará, vai ver.

 

     E assim aconteceu: todos os dias, sem falhar, a infame criatura fervia a água para o chá, punha lá dentro umas folhas de hortelã, um bocadinho de pó de ratos, e levava a chávena à patroa:

 

- Beba Dona Emilinha, beba; isto vai-lhe fazer muito bem!

- Deus lhe pague minha filha, foste um anjo que apareceu nesta casa; e andava eu desconfiada de você. Que ingrata eu fui!

- Deixe lá, Dona Emilinha, apercebeu-se que estava enganada e isso é que conta – o resto é para esquecer.

 

     O chá de facto começou a surtir efeito: a paciente cada dia que passava se sentia mais fraca. Certa manhã pediu ao marido:

 

- Filipe: vá à Vila e traga-me um médico; sinto-me fraquíssima, sem vontade de nada, com o coração a bater cada vez com menos intensidade. Por este andar não durarei muito tempo. Me faz esse favor.

- Com certeza; vou já a correr, mas não pense em desgraças, ainda vais viver muitos anos. E o chá que a criada trouxe – lhe tem feito bem?

- Fez-me perder uns quilos, isso é verdade, mas parece que fiquei pior do que estava antes de o tomar.

- Eu vou então à Vila e trago de lá o clínico.  

 

     Partiu no seu carro, apreensivo. Sabia o que estava a acontecer, mas agora não podia voltar atrás, recuar um passo que fosse. Gostava cada vez mais da amante, nunca tivera uma mulher como aquela: proporcionava-lhe todos os prazeres do mundo – sentia-se realizado como macho. A Emília pertencia já ao passado: fora bonita, bem proporcionada de corpo, boa conversadora, capaz de um ou outro excesso, mas punha limites em tudo – quando chegava a certo ponto estacava! A Lina não: «para ela não existem fronteiras» - pensou. «É capaz do impensável para tornar feliz o seu homem!» Pelo caminho foi meditando: «Trouxe-a do Brasil e agora vou ajudar a matá-la! Isto é cruel, mas necessário. Não posso continuar a dormir com aquele corpanzil gordo, seboso, deformado, a cheirar a suor. A Lina sabe o que está a fazer. Deixa andar.» // Dirigiu-se ao consultório do médico e disse-lhe:

 

- Senhor Doutor: a minha mulher queixa-se muito de dores no estômago, diz que está muito fraca, que o coração está decidido a parar. Pode ir vê-la? Eu levo-o e traga-o no meu carro.

- Está bem, vamos então ver a doentinha.  

 

     Aquele médico já exercia clínica em Melcarte, havia mais de trinta anos. Mal acabara o Curso abrira consultório na Vila, freguesia onde nascera. Conhecia praticamente toda a gente do concelho. Aos pobres não cobrava um tostão, mas tinham de ajudá-lo nas vindimas, gratuitamente, e quando matavam o porquito traziam as partes melhores para o Senhor Doutor Altino. Com ele vivia a sua governanta, mulher bonita e elegante, especialista em coscuvilhice e fumeiro. Com a carne oferecida ao médico ela fazia uns salpicões excelentes! De vez, em quando, aparecia um presunto e uns garrafões de vinho: «do especial, para o Senhor Doutor

      Chegaram ao seu destino. Logo que entrou em casa o comerciante encaminhou o médico para o quarto de Emília.

 

- Então como se sente a nossa doentinha?

 

     Nem sequer esperou pela resposta. Viu-lhe os olhos, vidrados, apalpou os pulsos, mediu a temperatura. Torceu o nariz. O caso era mais grave do que esperava. Aquela mulher tinha os dias contados. O coração já praticamente não batia. Os olhos estavam mortiços; a cor do rosto era a de um cadáver.

 

- Por que não me chamou mais cedo?! A sua esposa está muito mal, pouco mais tempo tem de vida. E o pior é que nós em Melcarte não possuímos condições para a curar; teria de ir para a cidade, para um grande Hospital – Porto ou Lisboa; mas mesmo assim não sei se aguentaria a viagem. Vou-lhe aplicar uma injeção e passar-lhe uma receita para o Filipe ir à farmácia aviá-la; mas, de qualquer modo, penso que já é tarde, muito tarde!

 

   O marido da doente sentia-se encurralado: tinha pena da esposa, no fundo, bem lá no fundo do seu coração ainda vibrava uma espécie de sineta, lembrando-lhe os tempos bons, foram muitos anos de convívio, mas por outro lado queria vê-la afastada de cena para ter a seu lado a mulher que agora amava. Se o ser humano fosse mais terra a terra, mais pragmático, teria chegado ao pé dela e dir-lhe-ia: «Já não gosto de ti como gostava: o melhor é ires para a tua terra e deixares o terreno livre para a minha nova paixão.» No entanto, ele sabia que se lhe dissesse isso ela provocaria um escândalo do tamanho do icebergue que afundara o Titanic. A Lina podia fugir para bem longe senão atirar-se-ia a ela como um touro bravio. Ameaçaria suicidar-se, enfim tudo se desmoronaria sem benefício para ninguém. Assim era melhor: ela partia sossegada, iriam ambos à campa levar-lhe flores, mandaria rezar umas quantas missas por sua alma, daria umas esmolas aos pobres da freguesia para que lessem uns responsos no dia de Fiéis Defuntos… Ao fim, e ao cabo, um dia teria de morrer!   

 

- Bem, tenho de me ir embora – diz o clínico. Se não se importa leva-me à Vila e já traz os medicamentos. 

- Quanto lhe devo, Senhor Doutor?

- São cem escudos.

 

     O comerciante puxou pela carteira e pagou-lhe. Antes de partir chamou a criada e pediu-lhe que olhasse pela patroa. Depois os dois homens dirigiram-se para o carro e arrancaram a toda a velocidade para a sede do concelho. Lá chegados, cada qual foi para seu lado, despedindo-se com um aperto de mão. O médico, no entanto, ainda lhe disse, em modos de recriminação:

 

- Faço votos para que a sua esposa se salve, mas penso que as hipóteses são mínimas, a bem dizer nulas; devia tê-la levado para um Hospital da cidade, não chegaria a este estado.

- Sabe, Senhor Doutor, a ignorância, os negócios… Para ela não ter tanto trabalho até meti em casa uma empregada, mas mesmo assim adoeceu; ela há muito tempo que se queixava. A vida é curta… Obrigado, Senhor Doutor.

 

     Meteu-se no automóvel e não arrancou de imediato. Pôs-se a pensar quando partira de Lamas Santas para o estrangeiro, as adversidades, trabalhos escravos, os mil sacrifícios para juntar algum dinheiro. Trouxera a mulher do Brasil um bocado contra a sua vontade, só viera por ele, e agora era conivente na sua morte. «É necessário eliminar os obstáculos», aconselhava a actual amante. Sim, se queria estar à vontade com a Lina tinha de destruir todos os muros que lhe surgissem pela frente; e um deles era a esposa.

     A vida ensinara-lhe a ser cruel; se não fosse a sua tenacidade teria perecido à fome, à míngua. Quem lhe valera quando andava andrajoso? Quem o apoiara quando nada tinha de seu? Será que Emília se apaixonaria por ele quando andava na selva amazónica a trabalhar para os outros, à volta das seringueiras, por meia dúzia de moedas? A barba por cortar, os dentes sujos, a cheirar a catinga?..

     Não encontrou quaisquer respostas para essas inquietantes perguntas. Se ao menos acreditasse num deus, nos santos, em alguém a quem se agarrar, mas não: tinha perdido a fé há muito tempo, naquela selva imensa. Onde estavam os deuses e os santos quando deles precisou? Libertou-se, sim, desse inferno na Terra, mas graças ao seu esforço sobrenatural. Saiu de lá outro: desumanizado, capaz de matar se isso lhe trouxesse vantagens. Não sentia piedade por ninguém, nem por ele próprio.

        Pôs o motor a trabalhar e partiu. Não fazia ideia do que o aguardava em Lamas Santas. Se o médico estivesse certo, Emília estava com os pés para a cova. Veneno mata e ali não havia antídoto para evitar o seu efeito. Finalmente chegou. Lina esperava-o.

 

- Penso que devias chamar o sacerdote. A “Gorda” está prestes a expirar; poucas mais horas, ou mesmo minutos, terá de vida. É melhor fazer tudo certinho, a fim de não levantar suspeitas: veio o médico, agora vem o padre. Depois fazes o funeral, o enterro, vertem-se duas lágrimas, e pronto: estaremos livres deste empecilho.     

 

- Tens razão: o caminho está quase liberto de escolhos para nós; vamos então dar este último passo.

    

     O pároco da freguesia já estava a cear. Como se levantava todos os dias muito cedo, para dizer a missa da manhã, as refeições tinham de estar de acordo com esses horários: almoço ao levantar, o jantar ao meio dia, e a ceia às sete. Depois da ceia ia ler um bocado, sobretudo a bíblia, o seu livro de cabeceira, no qual se inspirava para as suas homilias, e por volta das dez da noite adormecia. Há anos que mantinha este tipo de vida. Quando podia ia caçar: coelhos, lebres, perdizes, e até já abatera um lobo e um javali! Nunca ia só, tinha os seus companheiros leais: o Monteiro, o Alves, o Fernandes… todos bons atiradores. Também pescava, sobretudo nos rios próximos – apreciava imenso as trutas daqueles pequenos rios, afluentes do Minho. Podia haver miséria na freguesia, ou no concelho, mas a sua casa estava a abarrotar de géneros, nada lhe faltava. Os crentes eram generosos com o seu cura.

     A sua irmã ficara solteira, rejeitara um bom casamento para ficar como sua governanta. Jamais se arrependera de ter tomado tal decisão. De vez, em quando, dizia ao irmão eclesiástico: «Mano - tu vives para Cristo e eu vivo para ti.» Ele preferiria ter uma governanta que não fosse da família, uma rapariga agradável, mas acabara por se resignar. «Ao menos assim não peco; e o céu fica-me mais perto

 

- Senhor padre Ventura, está aí?

- Ó homem: até me assustaste! Viste o demo? Estás a tremer.

- Nada disso, senhor abade: a minha esposa, a Emília, está moribunda, a delirar; veio cá o médico e o diagnóstico foi cruel: não há nada a fazer!

- Coitada! Ainda é uma mulher relativamente nova, Deus podia-a manter cá mais uns anos, mas Ele é que decide; nós temos apenas de obedecer-lhe. Vamos depressa administrar-lhe a extrema-unção.

 

     Passados uns escassos minutos estavam em casa de Dona Emília. A criada estava na cozinha a preparar a ceia. Quando o sacerdote entrou foi cumprimentá-lo, fingindo que estava triste. «São os desígnios de Deus, são os desígnios de Deus» - dizia ele com aquela voz tumular, com as vestes a cheirar a cera e a água benta. Entrou no quarto da enferma e verificou que a sua vida estava por um ténue fio. Ministrou-lhe os sacramentos, tentou confessá-la, mas ela já não reagia a quaisquer perguntas. Era praticamente cadáver. Depois do seu dever cumprido despediu-se. Tinha de voltar à sua rotina.

 

- A bem dizer, já está nas mãos do Senhor. A sua bondade e a sua virtude encaminhá-la-ão para o céu. Pobre criatura.

    

     Mal o padre saiu, a Lina agarrou-se ao pescoço do amante e diz:

 

- Tudo perfeito! Estamos livres que nem uma andorinha. Agora vamos comer.

 

     A mesa já estava posta e uma garrafa de bom vinho repousava em cima de um pequeno prato.

 

- Já estás a comemorar? Olha que ela ainda não está no cemitério.

- Não falta muito; amanhã isto está tudo resolvido. Estamos livres, livres…

    

     Comeram e beberam muito bem. Depois foram-se deitar juntos. Para quê estar com preconceitos, ou temores, se D. Emilinha já estava nos braços da terrível parca? Antes de adormecerem ela informou-o:

- Já deitei o resto do pó fora, não é mais preciso. Foi pelo regato abaixo. Nada de provas.

- És exímia naquilo que fazes. Ninguém consegue fazer igual ou melhor. Tive sorte em teres surgido na minha vida. Era de uma mulher como tu, com a tua genialidade, que eu precisava: inteligente, destemida, brilhante e cruel quando é necessário sê-lo. Juntos, somos quase como uma fortaleza inexpugnável – ninguém nos vencerá!