terça-feira, 30 de junho de 2020

QUADRAS AO DEUS DARÁ
 
Por Joaquim A. Rocha











«Penso, logo sobrevivo»,

Dizia o grão pensador.

Eu digo ao tal senhor:

Penso, logo estou f’rido.

 

O burro da minha terra

Não pensa, mas existe;

O que ele quer é comer,

À boa palha não resiste.

 

O abade esfomeado

Diz à criada e amante:

Traz-me presunto fumado

E garrafa de espumante.
 

O bruto do marinheiro

Diz à sua namorada:

Traz linguiça do fumeiro,

Espumante da Bairrada.
 

 O Aníbal lá da serra,
  
Pede à sua cozinheira:

Traz-me presunto da terra,

E bom vinho da Madeira.

 

O Serafim de Fiães

Só trata do seu umbigo:

Gosta de gatos e de cães

Mas não lhes dá o presigo.

 

A tia Maria Farruca

Era amiga desta gente:

Da chirela e da cuca,

E até do ladro tenente!

 

O Antoninho, coitado,

Tinha corpo de anão;

Bebia que nem soldado,

Comia que nem leão! 

 

Eu não quero dizer mal,

Daqueles que conheci;

É a grei de Portugal,

Com sangue de javali.

  
Eu não quero dizer mal

Da gente da minha terra;

Eu sou como eles, tal qual,

Lobo-do-mar e da serra.

 

Eu não posso dizer mal

Da malta da minha estirpe;

Não há outro povo igual,

Mas temo que me extirpe.
 
 
 
 
 

sexta-feira, 26 de junho de 2020







ANEXO AO ROMANCE «Entre Mortos e Feridos – dois anos de guerra na Guiné-Bissau», escrito por Joaquim A. Rocha. 

 

     Este texto foi escrito por um soldado, ou cabo, da Companhia 1500, apenas com a quarta classe – 2.º grau – de escolaridade, mas com alguma capacidade de transmitir ao leitor imagens terríveis, adocicadas com pelo menos cinco gramas de mel. É óbvio que a guerra é guerra, e quando se fala em grandes ou pequenas batalhas, sobretudo nos livros de História, esquece-se que para um soldado esse termo de grandeza não existe – morrer com uma bala na cabeça ou no coração é a mesmíssima coisa que tombar com uma bazucada, ou morteirada, no peito. A morte é o fim de tudo e o princípio do nada; por isso, morrer de uma doença incurável ou de uma bala terá na prática o mesmo efeito. Alguns do que morreram no Japão em 1945 provavelmente nem saberiam o nome do presidente dos Estados Unidos da América, o qual deu a ordem para lançar as bombas atómicas assassinas.  

     O meu camarada da tropa era otimista por natureza, apesar de reconhecer que os esforços que nos foram exigidos ultrapassavam a força humana. Alguns resistiram heroicamente a esses trabalhos hercúleos, mas apenas porque tinham pouco mais de vinte anos de idade. Passar dois dias, ou mais, sem comer e sem beber, percorrer na mata selvagem sessenta ou mais quilómetros a pé, atravessando rios e bolanhas, ultrapassa a nossa capacidade de resiliência. Quando ele designa por bandidos os militares do PAIGC devia também chamar de bandidos ao Salazar e à sua quadrilha, isto é, aos seus ministros e secretários de Estado, entre outros. Foi este grupo salazarento que iniciou a guerra colonial ao recusar-se a receber, a dialogar, com os políticos africanos. Que importava ao presidente do Conselho de Ministros que os jovens portugueses embarcassem a caminho do sacrifício e da morte? Não tinha esposa, não tinha filhos nem netos; para ele era indiferente que eu morresse nas matas africanas. É certo que Amílcar Cabral, Agostinho Neto, entre outros, estavam impacientes para assumirem o leme da governação. Fariam tudo, e fizeram, para alcançar esse objetivo. Tiveram o apoio de alguns países, com armas, treino, dinheiro, os quais desejavam ardentemente explorar as riquezas existentes no continente africano: madeiras, petróleo, diamantes, turismo, etc.

     Como agora se sabe, a independência não lhes trouxe a felicidade que esperavam. Criaram-se os partidos políticos, entraram em guerra uns com os outros, em Angola e Moçambique, houve imensos mortos e feridos, a paz voltou, mas sempre ameaçada. Os políticos guineenses esperavam criar um país, mas nem todas as nações aí residentes: fulas, balantas, felupes, bijagós, etc., aderiram a essa ideia, pelo que agora é um país adiado.

     Cabo Verde, nove ilhas, tornou-se um país com duas línguas oficiais, o crioulo e o português, mas a maior parte dos seus habitantes emigrou para Portugal, França, etc., e só vai à sua terra de nascimento em visita. Os empregos escasseiam, a indústria tarda a desenvolver-se, o comércio é ainda rudimentar.

     A descolonização foi pessimamente feita; os brancos, alguns europeus, outros já africanos, fugiram das ex-colónias, sua terra natal ou por adoção, apressadamente, a sete pés, deixando praticamente tudo aquilo que possuíam: terras, casas, automóveis, até dinheiro! Podia também falar de São Tomé e Príncipe e Timor, dois países pequenos, sem grandes recursos. Enfim… Tanta guerra, tanto ódio, tantos mortos e feridos, para quê? Vamos ficar por aqui. O melhor é ler o relatório do meu companheiro de armas, que usou, sem se aperceber, o estilo de Fernão Mendes Pinto.

                

 

O QUE UM HOMEM PASSOU NESTES TRISTES DOIS ANOS DE COMISSÃO.

 

Relatório principal

 

     Partida de Lisboa ao meio dia do dia 20 de Janeiro de 1966. Depois de cinco dias bem passados a bordo do paquete Uíge, quando passados esses tais cinco dias, chegámos a Bissau no dia vinte e cinco do corrente mês de Janeiro, às treze e quarenta e cinco, passámos então ali a uns cem metros do cais até ao outro dia às dez da manhã todo esse tempo para depois em um barco de guerra seguirmos para Bolama, antiga capital da Guiné; aqui então passei doze dias magníficos de descanso, pois o esforço até aqui tinha sido já enorme (*), comia-se razoavelmente, saía-se quando se queria e dormia até querer também, mas por pouco tempo; tudo isto porque o inimigo nos esperava. Fui então, como já atrás escrevi, passados doze dias, com meus colegas para um aquartelamento em Cufar, situado perto de uma mata com o mesmo nome, mas antes passei duas noites, saí de Bolama no dia 7 de Fevereiro, cujas noites, conforme ia para recordar, horríveis, pois ia assim com meus colegas deitados em cima uns dos outros; passei então por Catió, também conhecida por cidade, cujos habitantes andavam horrivelmente vestidos. Aqui fiquei já um pouco mais aborrecido em virtude de uma Companhia que nos vinham esperar, e que era a de Cufar «001» portanto, ter uma emboscada – do inimigo, claro! – em que sofreu um morto, cujo morto era fula, ou seja, tropa de milícia.

     Essa mesma emboscada foi de certeza preparada para nós, para mim e meus colegas da Companhia, claro! Como soube isto [é] que alguns minutos depois teria que passar por onde tinha sido [a emboscada] há algumas horas antes, luta sangrenta; mas reservou-me o destino talvez passar por uns momentos alegres, ainda em Catió, com um colega perto da minha terra, que conhecia perfeitamente bem, e que por isso era meu amigo, pois confesso que senti muita emoção ao poder encontra-lo ali, onde tudo me era estranho; fui então com ele festejar aquele encontro, bebendo umas cervejas frescas, foi então a vez de me despedir dele, pois ia para Cufar.

     Segui às duas e meia a pé, debaixo de um calor tórrido e de uma nuvem de pó, pois as viaturas seguiam à nossa frente; percorri felizmente bem todo o percurso, que é de doze quilómetros, sem algo haver de novidade, e uma vez mais me admirei pelo caminho ao só existir matas e capim, mas passadas quase três horas cheguei então a Cufar, onde ali permaneci uns trinta e cinco dias a partir de sete de Fevereiro; estive nove dias de descanso e no dia dezasseis do mesmo mês fui para a primeira operação – montar segurança à «001», onde por rebentamento de uma mina antipessoal a [nossa] Companhia teve dois feridos, sendo um furriel, de nome (…) e um [outro] soldado, sendo evacuados para Bissau, de onde seguiram para a metrópole; no fim da evacuação fiz com meus colegas a retirada, pois estava cumprida a tarefa dessa primeira operação.

     Passado uns dias mais fazia a segunda operação, no dia 24 do mesmo mês, saí às nove horas da noite do dia vinte e três juntamente com a outra tal Companhia; prossegui toda a noite até onde tínhamos ido da outra vez, mas um pouco mais à frente; sofremos uma emboscada do inimigo, eram quatro menos um quarto da manhã do dia vinte e quatro. A Companhia que seguia à minha frente, ou seja, à frente da minha [Companhia], sofreu dois mortos, um desaparecido e dezoito feridos, quatro dos quais em estado grave, pois foram três horas e quinze minutos debaixo de um fogo intenso, como nunca se tinha sentido em toda a província!

     Eram então sete menos dez quando tivemos que fazer a retirada com mortos e feridos às costas para, em determinado sítio, mais à frente, se fazer a evacuação; mas ainda os turras nos perseguiam; valeu-nos a aviação que, com bombas de cinquenta quilos e lança roquetes, os fizeram retirar; eram então duas da tarde quando regressamos a Cufar, pois tínhamos a missão cumprida por hoje.

     Depois descansei mais uns dias, até que no dia dois [de Março] partimos para mais uma “visita” ao inimigo; saí de Cufar com meus colegas na noite do dia dois, às nove horas, e, de novo, pelo mesmo caminho onde já se tinham passado coisas horríveis. Connosco voltou a ir a Companhia de Cufar e ainda a «002» de Catió; sempre se progrediu bem até que ao chegarmos perto do local se parou para que amanhecesse mais e que se pudesse ver qualquer coisa e assim passadas umas duas horas continuamos a progressão até que ao chegarmos perto das tabancas de Cachaque avançamos rápido, felizmente não houve fogo, lá só se viu umas mulheres e crianças escondidas na bolanha; homem, nem um se viu, sequer; depois retiramos rapidamente, tivemos que atravessar uma bolanha com água pela cintura, e lama, que esforço enorme; chegamos felizmente ao acampamento sem novidade alguma, devido à enorme atenção, até que antes de chegarmos a uns cinco quilómetros do acampamento se matou com duas rajadas o guia preto – e turra que era, claro! – e que nos tinha indicado o caminho às tais tabancas.

     Ainda em Cufar se descansou mais uns dias, até que outra operação surgiu, esta de bote, a doze de Março, cujos cinco dias foi um autêntico inferno. Parti de Cufar no dia sete, segui para Catió, e daqui em lancha para rumo a Mejo; passamos duas terríveis noites a dormir em cima dos ferros [da lancha], no primeiro dia não pudemos desembarcar por motivo de não darmos com a localização da Companhia que nos esperava, e assim tornamos a voltar para trás e a ficarmos mais uma noite na lancha ao lado de Cacine, e no dia seguinte seguimos de novo para a frente, onde já demos com a Companhia que nos esperava e então desembarcamos; daqui segui com meus colegas a pé com espingarda e munições, manta, colchão e saco de bagagem, cerca de seis quilos, com um calor de morrer, até que cheguei a Mejo, outro aquartelamento, claro, mas pior ainda [se possível] que o de Cufar. Ali almoçamos e jantamos depois de andar dois dias a ração de combate; e eram três e meia da manhã quando nos foram acordar para abalar; depois dos respetivos preparos saímos de Mejo às cinco e meia, rumo a Salancaur-Fula, a cerca de uns seis quilómetros de andamento; sofremos uma pequena emboscada que graças à nossa pronta reação o inimigo fugiu sendo assim e sem haver feridos sequer da nossa parte continuamos a caminhada até que a um certo sítio um enxame de abelhas nos atacou de tal maneira que devido às ferroadas e depois aos inchaços e às dores tiveram que ser evacuados trinta e seis camaradas meus, ficando nós com muito menos possibilidades de triunfar; mas, mesmo assim, continuamos à mesma a caminhar mata fora, até anoitecer; eram seis e meia quando nos instalamos, comemos e bebemos qualquer coisa (água) e por fim tentamos descansar, mas passado algum tempo logo os turras começaram a dar uns tirinhos para nos localizar, mas, em virtude de ser longe e de ser de noite, nós não respondemos, e assim se passou a primeira noite a dormir na mata; ao amanhecer rompemos de novo a marchar e passadas seis horas de sacrifício enorme tivemos a terceira surpresa ao apanhar em plenos movimentos um terrorista, o qual teve que vir connosco de volta – eram mais ou menos duas horas; e depois de passar por um acampamento deles, repleto de bananeiras e laranjeiras, encontrámos uma Companhia, «003», que também levava o seu destino para o mesmo objetivo; nesse momento do encontro começou o fogo entre os paraquedistas e os bandidos; foi então quando nós recuamos para que os helicópteros nos abastecessem de água; no fim, quando o último vinha para aterrar, e para que nos localizasse, deitou-se uma granada de fumos; e como o capim estava ressequido, logo começou a arder em grande velocidade, foi então um alvoroço total em que três Companhias se envolveram de tal maneira na fuga do fogo que lá ficou para arder um bornal com munições e granadas de mão e de bazuca; felizmente nada aconteceu e volvidas umas boas horas já à noite de novo nos instalamos para mais uma noite em plena mata; depois de um esforço enorme, e sem comermos nada a bem dizer, pois só se tinha era sede, assim se passou a noite em que às três da manhã o tal turra que apanhamos quis fugir e puxar por uma arma de um colega meu, mas logo nós, sendo eu e um furriel, demos pelo ato, pois ele encontrava-se a uns dois metros de nós e o amarramos melhor, depois de levar tanta porrada que o sangue lhe corria por todos os lados da cabeça; de manhã cedo continuamos a andar rumo ao quartel “Mejo”, ao qual cheguei às oito e vinte minutos e que passado uma hora segui em viatura para as lanchas, para que assim voltássemos para Cufar, onde antes porém mais uma noite em Catió e no outro dia de manhã então é que seguimos para Cufar onde só descansamos sete dias, pois no dia dezanove partimos para mais uma operação “Safanão” a Darsalame e que de novo escalamos por Catió, onde mais uma vez embarcamos em lanchas; eram dez da noite e às cinco e meia desembarcamos no meio de lama e água e junto de uma mina antipessoal, eram onze horas quando o nosso guia avistou os primeiros turas; em plena entrada da mata permanecemos todo o dia na bolanha debaixo de um calor tórrido; entretanto, abriu-se tiroteio enorme entre o inimigo e uma outra Companhia, «004», de que resultou três mortos e alguns feridos; depois da evacuação destes homens e do embarque dos restantes, foi a vez de entrarmos nós em ação, pois eram duas e dez da tarde quando começaram a zunir pelos nossos ouvidos os primeiros tiros destinados a nós; juntamente com a Companhia «001» aguentamos o inimigo, que depois se pôs em fuga. Enquanto anoitecia, começamos a preparar os abrigos para nos instalarmos e assim permanecer ali toda a noite em que deitaram quatro morteiradas para o tarrafe e nós estávamos na bolanha; assim se passou a noite e no outro dia de manhã foi então a vez de avançarmos para o objetivo. Fomos esperados com alguns tiros mas devido à nossa força o inimigo pôs-se em fuga; já dentro dele – objetivo – um estilhaço de uma bomba da nossa aviação me rasou a cabeça e a de um colega meu; passadas umas horas embarcamos em lanchas depois da missão cumprida. Depois fui com destino, pela última vez, a Cufar; e no outro dia saí rumo a Bolama. Voltei a passar por Catió, de onde saí às duas horas.

     Cheguei a Bolama dia vinte e três à noite; então aqui passei uns dias em beleza, até que no dia doze à noite voltamos a sair para mais uma operação, a sexta; saí de novo em lanchas com destino à mata de Empada, onde cheguei às três horas da manhã; tivemos então que fazer tempo para que amanhecesse. Desembarquei então às cinco e um quarto no meio de água, que nos dava pela cintura. Dali para diante caminhamos uns bons quilómetros, sem que nada - [de especial] - víssemos. Felizmente todos passamos por uma mina à borda do carreiro e sem lhe tocar! Eram quase duas horas quando se avistou o primeiro objetivo. Foi então a vez de nos instalarmos, mas felizmente já estava tudo destruído pela aviação; voltamos então para trás, quase pelo mesmo caminho, para que assim se pudesse reembarcar nas lanchas, o que fiz depois de andar à volta de quarenta quilómetros, e às cinco da tarde. Eram onze e poucos da noite quando cheguei a Bolama; foi então vez de tomar banho e de ir comer alguma coisa, pois já não o fazia há mais de vinte e quatro horas! Mais uns dias se passaram, e com eles algumas semanas; foram nada mais do que três. Até que no dia, ou melhor, na noite de domingo, era uma hora daquela tão rápida noite, quando o nosso tenente nos acordou e avisou que no outro dia às nove horas tínhamos que partir com tudo que nos fosse preciso para um mês; fomos então com destino a Bissau aonde chegamos depois de sete horas em lanchas; eram quatro da tarde quando desembarquei pela primeira vez em Bissau, onde atravessei em viatura à média de sessenta [quilómetros] à hora; paramos em Brã uns minutos e depois segui com destino a Bula, centro do norte da província, aonde chegamos à meia-noite, depois de termos atravessado um rio em cima das viaturas e estas em cima de uma barca (jangada). Andei mais dezoito quilómetros de viatura até chegar a Bula; por fim jantamos e depois de ter conversado algum tempo com um rapaz quase meu vizinho, que era filho, ou melhor, sobrinho, do António Barbeiro, deitei-me, e de manhã apenas logo a seguir ao café voltamos a subir para as viaturas com destino a Teixeira Pinto, onde cheguei passado duas horas e felizmente sem ouvir um tiro sequer.

     Uma vez aqui, permanecemos algum tempo até que se organizassem melhor as coisas, e então ficaram dois grupos de combate – primeiro e terceiro; por fim voltamos a subir para as viaturas, o comando e o segundo grupo de combate, com destino a Cacheu. Tivemos que andar mais trinta e seis quilómetros e de novo sem um tiro ouvir; cheguei cerca das onze e meia e no fim de tomar um bom banho preparei as restantes coisas para que pudesse dormir descansado. Então aqui descansei com meus colegas algum tempo, até que no dia três às nove horas saí para mais uma operação, a sétima. Percorremos vinte e quatro quilómetros, até que por fim cheguei ao Bachile, local onde se encontravam duas secções, em virtude de serem as tabancas atacadas por um grupo de bandoleiros armados, havia pouco tempo. Então uma vez aqui tive que aguentar até amanhecer para que pudéssemos então iniciar a tal operação; saímos às cinco e um quarto da manhã sem sequer comer nada e ainda por cima só com meia ração de combate para todo o dia e parte da noite. Depois de alguns quilómetros andados um pequeno grupo de bandoleiros disparou alguns tiros sem consequências, felizmente para nós, até que depois de muitos quilómetros chegamos ao primeiro objetivo, mas alguns metros antes alguns colegas da frente depois de verem dois inimigos dispararam fogo sobre eles e foi então a vez de corrermos para as tabancas inimigas, uma vez que já tínhamos dado alarme, então logo começaram as bazucadas, morteiradas e tiroteio; até que no fim de tudo destruído, fizemos retirada. Então aqui, Cacheu, permaneci mais umas semanas e, com isso, mais quatro operações, todas decorridas com grande sorte, felizmente; para fim da estadia aqui fizemos alguns abrigos e no dia 9 de Junho de 1966 parti para Teixeira Pinto, a uma quinta-feira.

     Então, uma vez aqui, voltei a ter que ficar no chão! Foi passado dois dias que mais uma operação tive que fazer, e logo ao apear das viaturas uma bolanha se nos deparou pela frente e então às sete menos um quarto começamos a nos enterrar de lama e água até à cintura; é que passadas duas horas de canseira chegamos ao fim para termos ainda por cima que atravessar o rio por cima de uma árvore deitada nele. Passado algumas horas, ou seja, às quatro da tarde, a avioneta sobrevoou-nos, informando que o helicóptero nos vinha abastecer de água, pois estávamos estoirados; mas pouco depois começou a chover e o mesmo não veio, o que nos desanimou bastante. Foi então a vez de começar a aparar os pingos da chuva para nos matar a sede, pois ali tivemos que passar uma noite terrível, com sede, mosquitos e tudo o mais, até que - no outro dia de manhã - se iniciou de novo a marcha e foi então a altura de encontrarmos uma pequena bolanha de água doce para matarmos a sede, que nessa altura já era difícil de suportar; e pouco à frente era o aquartelamento do Bachile. Foram então as viaturas buscar-nos para passado algum tempo chegarmos ao quartel de Teixeira Pinto.

     Uma vez aqui só descansei, com meus colegas, três dias; pois passados estes, de novo outra operação se seguiu – a décima terceira, para a região de Calequisse ainda não afetada pelo terrorismo, mas não se sabia o que podia acontecer. Percorremos felizmente mais de sessenta quilómetros sem nada haver de especial, até que à noite, e com ela uma valente trovoada, que mais parecia uma iluminação…; valeu-nos pois uma tabanca para onde a malta se abrigou de uma forte chuvada; foi uma noite como todas as outras passadas em pleno mato, sem cerrar olho e com forte ataque de mosquitos, até que na manhã seguinte se iniciou de novo a marcha com destino a Calequisse, onde chegamos às nove e meia para só as viaturas nos virem buscar às quatro horas da tarde!

     Eram cinco e um quarto quando cheguei a Teixeira Pinto; uma vez aqui só descansei três dias, pois na noite do dia vinte e três voltamos a sair para mais uma operação – a décima quarta. Durante o dia percorreu-se mais de quarenta quilómetros até que nos instalamos para passar a noite; mas logo passados poucos minutos já ninguém podia parar com tantos mosquitos, pois nunca se viu uma coisa assim! Foi uma noite horrorosa e sem fechar os olhos um segundo, pareceu um mês, pois custou mais do que isso; até que começou a amanhecer para pouco depois continuarmos a caminhada, pois passado poucas horas e com pequenos intervalos sofremos três ataques de abelhas sem consequências graves, felizmente; foi uma operação que mais sofri, pois estava aleijado de um pé, com uma íngua ainda por cima; fiz um esforço sobre humano, mas felizmente cheguei, pois é o que interessa, mas para isso ainda tive que atravessar uma bolanha com mais de três quilómetros, sabe Deus como o fiz! Até que a lancha veio passado hora e meia; fomos então com destino a Cacheu, para depois seguirmos em viagem para Teixeira Pinto, onde permanecemos mais uns dias até que outra operação chegou; esta nos dias 29 e trinta.

     Saí daqui de Teixeira Pinto às quatro e meia da manhã, dia vinte e nove, com destino a Bachile, mas desmontámos antes para que despistássemos o inimigo; comecei então a marcha às cinco e meia. Tudo corria normalmente até que cerca de cinco horas depois os homens da frente viram alguns bandoleiros armados atravessar o caminho por onde nós havíamos de passar e então aqui nos instalamos para o que desse, e viesse, mas felizmente nada sucedeu e como os inimigos podiam ter alguma emboscada preparada fizemos a retirada em sentido lateral, um bocado abaixo da nossa direção antes.

     Com tudo isto chegou a hora de comermos e assim sucedeu; paramos para o fazer e também para descansar algum tempo, cerca de três horas. Depois disto iniciou-se de novo a progressão até às cinco e meia da tarde, hora em que nos instalamos para dormir, aliás, passar a noite, mais uma em plena mata. E para isso, foi a primeira vez que levei mosquiteiro e que deu resultado, pois pude descansar mais e melhor até que chegou a manhã sem nada ter havido, graças a Deus. Então às seis menos um quarto de novo se começou a marcha com destino ao último objetivo (Caxeme?) e depois para Bachile onde as viaturas nos haviam de ir buscar; foi então esta última parte da operação que mais custou a todos, pois logo após o início da caminhada começou a trovejar imenso para pouco depois começar a chover de tal ordem que até metia respeito; e quando um senhor trovão se fez sentir como uma morteirada, que quase nos ia fazendo procurar abrigos, foi então uma parte dolorosa, todos encharcados cerca de cinco horas, até que se chegou ao Bachile, onde três viaturas da Companhia de transportes estavam para levar um pelotão que aqui estava com destino a outro lado. E então aproveitamos para nos vir pôr a Teixeira Pinto, o que sucedeu por milagre, pois uma mina anticarro estava posta na estrada e as viaturas onde nós seguíamos iam à cunha com todos nós em monte, como disse, por milagre não pisamos a dita mina, mas logo após os carros nos deixarem seguiram outra vez pelo mesmo caminho e então infelizmente o da frente pisou-a, causando dois feridos e a viatura danificada, tudo isto no dia trinta deste de Junho de 1966.

     Depois mais uns dias se descansou em perfeita saúde felizmente até que no dia onze pelas cinco da manhã parti para mais uma, a décima sexta, e também mais uma vez saí de Teixeira Pinto com destino ao Bachile, onde depois de uma hora cheguei sem nada ter havido, depois de tudo preparado começamos a marcha cerca das seis horas; corria tudo bem, até que em certo momento tudo se modificou, pois uma emboscada estava feita pelo inimigo; mas, graças à nossa pronta reação, e depois de fazer uma bazucada e algumas fortes rajadas, os terroristas puseram-se em fuga.    

     Felizmente, da nossa parte, nada sofremos, a não ser um raspão de uma bala num dedo de um colega bem junto de mim, que só por milagre não o atingiu mais; foi então a vez de continuarmos em sentido lateral, uma vez que outra emboscada podia estar preparada mais à frente, e como cortámos as voltas nada mais de anormal se passou, até que cerca das onze horas paramos para comer e descansar até às treze e meia, hora em que recomeçamos a marcha, mas já com destino a Bachile, único ponto de reembarque, onde chegamos às quatro horas para que imediatamente as viaturas nos trouxessem e assim sucedeu, pois passado uma hora, mais ou menos, pois eram quatro e meia quando chegamos a Teixeira Pinto e após a chegada uma surpresa nos esta reservada, surpresa essa que foi termos que ir para Jolmete reforçar um grupo de combate para lá, e assim sucedeu, sem comer em todo o dia tivemos que partir para o pior sítio do norte, com mata fechada; até que depois de uma estrada péssima, e já com uns copos metidos no bucho em Pelundo, chegamos, e voltamos sem felizmente nada ter sucedido graças a Deus – viemos entrar em Teixeira Pinto cerca das nove e meia da noite, pois mal tive reação para me deitar tal era a cabeça à roda.          

     Uma vez aqui, permanecemos então mais uns sete dias, até que no dia dezoito, portanto, parti com meus colegas para uma mais, a décima sétima; saí de Teixeira Pinto às cinco da tarde com destino para Pelundo e depois para Jol, onde devia chegar às seis e meia, mas a seis quilómetros de Jol uma surpresa desgraçada nos estava reservada: tínhamo-nos apeado das viaturas para começar a picar a estrada ainda não havia cinco minutos quando uma mina anticarro rebentou com aquela viatura onde eu e todos os outros homens do comando vínhamos, mas nessa altura felizmente já estávamos a uns vinte metros e então nada mais sofremos, a não ser o condutor ferido numa perna e na cabeça. Tivemos então que ficar ali (…) toda a noite e outros vir a Pelundo e depois a Teixeira Pinto o segundo grupo de combate para levar o rebocador; foi uma noite horrível, cheia de sobressaltos, pois o inimigo sentia-se perto ainda, abrimos fogo para uns que vinham ver como as viaturas ficaram, mas depois puseram-se em fuga, até que com muito custo começou a amanhecer e então já nós nos sentimos mais à vontade; eram então dez horas quando o rebocador chegou e depois da viatura atrelada voltamos para trás com destino a Teixeira Pinto, onde cheguei à uma e meia da tarde, pois sendo assim ficou a operação adiada.

     Depois de estar uns dias em Teixeira Pinto em descanso segui com oito colegas para Bissau e depois para Bolama com a intenção de trazer o resto das coisas que ali tinham ficado; assim sucedeu e no dia vinte e três cheguei a Bolama para depois no domingo à tarde, dia vinte e quatro, seguir com tudo já a bordo do barco Corubal com rumo a Bissau de novo onde estive dez dias até que no dia dois de Agosto uma escolta da minha Companhia aqui chegou; foi então quando parti com eles para Teixeira Pinto, mas antes paramos e ficamos uma noite em Bula, para depois no outro dia de manhã seguir então; felizmente nada sucedeu pelo caminho além de ele ser perigoso; cheguei a Teixeira Pinto à uma hora do dia três, portanto.

      Uma vez aqui, permaneci dois dias para logo no dia cinco à noite partir para mais uma operação com destino ao Bachile, onde chegamos às seis e meia da tarde; aqui aguentamos até às vinte e quatro horas para pouco depois partirmos para a operação – eram então vinte e quatro horas e quarenta minutos. Fomos com a Companhia «005» na nossa retaguarda, progredimos cerca de três horas e meia até às três menos um quarto, paramos para descansar perto do primeiro objetivo e à espera que amanhecesse, pois o guia não conhecia o caminho, eram então cinco e meia da manhã quando se continuou a progressão, até que depois de se andar umas boas horas sofremos a primeira emboscada, da qual não tivemos azar nenhum e depois de parar o tiroteio continuamos em passo rápido para o objetivo, onde pouco depois chegamos; e quando ia a chegar às tabancas, que por acaso ia em primeiro, logo seguido de dois colegas e com os outros mais atrás, começou de novo o fogo inimigo, logo seguido do nosso em reação rápida, pondo o inimigo em fuga para pouco depois se começar ao ouvir as saídas do morteiro oitenta e dois tal era a aflição sem se saber onde elas caíam quando logo rebentou a primeira seguida de mais duas, ferindo cinco colegas com os estilhaços, felizmente sem gravidade.

     Tivemos então que recuar para fazer as evacuações, mas depois começou a chover forte e os helicópteros não vieram, até que quando estávamos para partir os bandoleiros se vinham chegar a nós para buscar alguma arma ou mortos que eles lá tinham deixado; voltou-se de novo a abrir fogo com duas bazucadas e um dilagrama de mistura com rajadas, voltando nós de certeza a fazer-lhe baixas; até que por fim retiramos de todo com feridos às costas, com destino às tabancas próximo do Bachile, onde chegamos sem graças a Deus haver mais azar nenhum, a não ser uma valente caminhada e uma molha, pois durante todo o percurso choveu; depois montamos nas viaturas e seguimos para o quartel de Teixeira Pinto, e assim acabou esta décima oitava operação no dia sete de Agosto pelas dezoito e trinta.

     Permaneci mais uns dias em boa harmonia, até que no dia treze segui para mais uma, a décima nona, desta vez fomos para Pelundo, onde chegamos à noite, debaixo de uma trovoada enorme e de chuva constante; aqui ficamos até às quatro horas da manhã, hora em que saímos juntamente com um grupo da Companhia «006», felizmente nada aconteceu, e depois de termos passado a primeira bolanha com água pela cintura, e de caminhar uns bons quilómetros, avistamos as primeiras tabancas, das cinquenta ali existentes; rápido começamos a queimá-las, coisa que demorou mais de uma hora e depois de tudo em ordem para a retirada procedeu-se à morte de três bandidos que tinham ido connosco para serem abatidos, claro; uma vez de regresso mais uma bolanha se atravessou, também alta, e passado pouco mais de duas horas estávamos em Pelundo, onde as viaturas nos esperavam para nos levarem para Teixeira Pinto, onde chegamos às cinco e pouco.

     Decorridos mais uns dias, mais uma operação estava em vista, a vigésima, mas o tempo não o permitiu devido às grandes chuvadas nessa noite de saída e passados uns dias de novo se procedeu para ela, isto no dia vinte e seis à tarde, com destino ao Bachile de novo, onde chegamos à noite, mas cerca das nove e um quarto deu-se o imprevisto: alguns terroristas, em número calculado de quinze, atacaram o aquartelamento às rajadas e morteiradas de mistura com duas bazucadas, estava eu a jogar cartas à luz de uma garrafa de petróleo quando, como relâmpagos, se deram os primeiros rebentamentos; fugimos então para os abrigos, mas alguns, em vez disso, correram a buscar as armas e um deles, até sendo por sinal meu amigo e quase vizinho, sofreu dois estilhaços nas pernas e com um bocado de telhado nas costas; disso resultou ser evacuado no dia seguinte. Felizmente os feridos, dois, sofreram ferimentos de pouca gravidade.

     No fim de darem mais umas rajadas, os turras fugiram para nunca mais lá aparecerem; e de manhã os meus colegas saíram então, não indo eu por estar dispensado pelo médico, mas felizmente não houve nada de anormal e eles puderam voltar passadas uma horas sem nada ter havido, e então seguimos todos para Teixeira Pinto sem mais nada haver graças a Deus.

     Então, em Teixeira Pinto, mais umas semanas se passaram normais, pois – como estava dispensado pelo médico – simplesmente fazia umas rondas à vila e um reforço e assim se passou, dia após dia, até ao dia vinte de Setembro, data em que fazia oito meses de Guiné, sempre bem, graças a Deus.

     Passados mais três dias surgiu mais uma operação, a vigésima primeira, saímos com destino ao Bachile; às seis horas da manhã iniciamos a marcha com mais dois grupos de combate da «005»; cedo entramos nas bolanhas para só as deixarmos quando chegamos de novo ao Bachile, até que depois de andarmos três horas surgiram os primeiros tiros do inimigo, mas graças à rápida reação nossa o inimigo fugiu; continuamos até aos objetivos previstos sempre metido dentro de água até à cintura, depois já ao anoitecer entramos no último objetivo e começou então a chover da grossa; instalamo-nos para pernoitar pouco adiante, sempre a chover, trovões e relâmpagos por todos os lados, com nós todos encharcados, até que começamos a arrefecer pois a água e o vento nunca mais cessavam, maldita noite se passou para nos tirar anos de vida, pois foi uma noite que parecia um ano.

     Começou então a amanhecer e de novo se procedeu à progressão da coluna até que se avistaram as primeiras tabancas do último objetivo; rápido se procedeu à sua destruição para depois voltarmos para trás, foi então a vez de virmos nós à frente. Rápido se caminhou sem que felizmente houvesse nada, mas cedo ainda começaram a aparecer os rios cheios de água. O primeiro passou-se com ela pelo peito, depois só bolanha, só bolanha, até ao segundo, passado com água pelo pescoço, e de novo bolanha para por fim aparecer o terceiro rio passado a nado pelos que sabiam [nadar] e os outros tiveram que o atravessar agarrados a estes e aos ramos das árvores; triste vida a de um homem que passa coisas horríveis.

     Depois de tudo isto chegamos ao Bachile só passado três horas, mas antes andei cerca de um quilómetro só com mais sete colegas, pois os outros perderam-se de nós; tive então que vir à retaguarda buscar os outros para depois continuar a andar até que se avistou a casa do Bachile, onde chegamos às quatro e tal. Depois esperamos pelas viaturas, mas às tantas dois colegas do pelotão do Bachile atiraram duas laranjas azedas a um enxame de abelhas que estava numa árvore e depois, como elas se assanharam, o desassossego foi enorme, pois eram aos montes em cima da cabeça de nós, tudo gritava, uns para um lado, outros para outro, parecia o diabo; graças a Deus a mim não me ferrou nenhuma, pois meti-me debaixo do forno do pão, até que as viaturas chegaram para só podermos partir uma hora depois com destino a Teixeira Pinto; e assim se passou a mais horrível das operações.    

     Foi então a vez de se descansar pela primeira vez três semanas sem operações, mas ainda fui uma vez à capinagem (**); de resto, pouco mais se fez, até que chegou o dia de mais uma operação – a vigésima segunda para mim e a trigésima nona para a Companhia – foi no dia dezoito de Outubro; saí de madrugada com destino a Bachile, onde chegamos às quatro e meia para sairmos às cinco menos dez – ainda era escuro; mas pouco depois começou a ver-se alguma coisa.

     Ia connosco um pelotão da «007» e dois nossos; felizmente correu tudo bem. Eram quase nove horas quando passamos pelo primeiro objetivo sem nada ter havido; dali continuou a progressão para o segundo, sempre a corta mato, pois era lá que se esperava haver inimigo, uma vez que tínhamos que queimar umas tabancas.  

     Íamos já um bocado cansados mas com o receio nem se notava; uma vez lá perto íamos com a máxima atenção, até que os homens da frente avistaram as tais tabancas sem estarem habitadas; fizemos uma segurança boa e procedeu-se à destruição, ateando-se o fogo para depois voltarmos para trás com destino ao Bachile, onde as viaturas nos esperavam, pois foi com um esforço enorme, debaixo de um sol abrasador, que lá chegamos, sem graças a Deus ter havido nada, até que pouco depois chegávamos a Teixeira Pinto felizmente.

     Dia, após dia se vão passando, embora com bastante sacrifício; fui no dia trinta e um de outubro a Bula, tive oportunidade de ver o local onde tinham há dias rebentado duas minas anticarro e o sítio também de uma emboscada, onde sofremos uma baixa, locais frágeis para tudo isto, mas o certo é que sucederam; cheguei a Bula às onze e tal, depois de termos ido ao destacamento de Có.

     Recebemos a ração de combate para o almoço e nessa altura veio-me cumprimentar um colega meu que por acaso nessa altura se encontrava aqui – Bula –, pois sendo perto da minha terra ainda por acaso me escrevia com ele sem o reconhecer bem; foi uma festa este encontro – bebemos umas cervejas da ordem e estivemos juntos até se dar ordem de regresso, coisa que fizemos às duas e meia, vindo chegar a Teixeira Pinto às seis e tal sem que graças a Deus tenha havido nada de anormal além do percurso ser longo e medroso (***), pois ainda há pouco tempo lá tinha havido tiroteio do forte, com uma emboscada onde houve uma baixa, como já pouco atrás escrevi.

     Assim se tem passado os dias graças a Deus sempre bem até hoje, dia quatro de Novembro de 1966. Mais um dia passou sempre bem até que no dia cinco fomos avisados à tarde para sair de madrugada para mais uma operação e, como já me sucedeu uma vez, é a um domingo, domingo em combate!

     Saímos, portanto, de viatura, com destino a Bachile, onde chegamos às cinco horas da manhã de domingo, para logo depois iniciarmos então a progressão da vigésima terceira (****); cedo ainda começamos a atravessar bolanha para nunca mais a deixarmos; metros após metros, e quilómetros após quilómetros, lá íamos andando mata fora, sempre, como já trás disse, dentro de água e lama; é que às nove horas quase começou a primeira emboscada feita pelo inimigo com rajadas de automáticas e morteiradas; nós, sem abrigos, defendíamo-nos o mais possível, sendo assim mesmo um colega meu ferido por uma das rajadas num braço e no peito.

     Demorou o tiroteio mais ou menos vinte minutos, enquanto nós respondíamos a fogo do costume: bazuca, morteiro e G-3, tiro, claro! Depois de chegar a avioneta, para pouco depois também chegar o helicóptero com dois bombardeiros, procedeu-se à evacuação do ferido; foi então dada ordem para avançar para a frente e assim de novo continuamos para depois de andarmos cerca de um quilómetro sofrermos a segunda emboscada, precisamente como a outra, só com a exceção de não termos feridos graças a Deus; e então houve mais fogo de parte a parte com todos nós a gritar, respondendo os turras em português correto com as seguintes palavras: «vão para Lisboa, filhos da puta»; e nós, claro, respondíamos quase idêntico.

     Como as munições já eram poucas e logo à frente sabíamos que íamos ter outra [emboscada], resolveram as chefias voltar para trás, pois as condições do terreno onde nos metemos eram péssimas, mata cerrada de um lado e rio do outro a poucos metros; foi por aqui que tivemos que passar, senão ainda sofríamos mais emboscadas. Tivemos que atravessar mais de cinco quilómetros de lama e água e três rios com muita água, um dos quais passamos a nadar e os que não o sabiam fazer passaram agarrados a outros; foi assim a melhor maneira de nos livrar das tais emboscadas. Depois, ao chegar de novo à mata, mas claro está, do outro lado, esperamos uns pelos outros, e pouco depois estávamos a chegar ao aquartelamento do Bachile onde os carros nos esperavam, para logo a seguir seguirmos para Teixeira Pinto, onde se chegou já noite e todos estoirados por completo; assim terminou mais esta operação, feita, como já disse, a um domingo, dia seis de Novembro de 1966.

     Mais uns dias se passam e como até aqui sempre bem graças a Deus, mas no dia catorze do mesmo mês mais uma escolta fiz a Bula, graças a Deus sem nada ter havido felizmente. Dia dezasseis mais uma operação está à vista, a vigésima quarta, saída como de costume para Bachile de madrugada às quatro horas; apenas que chegamos procedeu-se à progressão com destino ao objetivo – o que era Jumpia – sempre com a máxima cautela, pois como o capim está na máxima altura é muito propício a emboscadas de perto, pois dias antes dois colegas morreram assim de perto em Jol; graças a Deus chegamos lá sem nada ter havido, lá nos instalamos então e passado duas horas voltamos para trás e pelo mesmo caminho, pois chegamos a Bachile cerca das cinco horas, para logo tomarmos as viaturas para Teixeira Pinto; e assim terminou mais esta saída.

     Mais uns dias se passam, um pouco mais exaltados, pois os turras certo dia deste período vieram ao fundo da avenida de Teixeira Pinto matar o régulo do Bachile, e então como é de esperar foi um alvoroço total no quartel e mais então uns dias assim se seguiram até que no dia vinte e sete à tarde, por sinal a um domingo, quando foi o Benfica-Porto, fomos avisados para mais uma – a vigésima quinta feita por mim; desta vez o destino era a mata de Jol, por isso fomos para o destacamento do Jolmete, onde dias depois haveria uma emboscada feita ao carro da água – mais um morto e dois feridos.

     Depois de chegarmos então foi feito o jantar – batatas com atum – comemos e bebemos para depois passar uma noite horrível aos mosquitos, que eram em monte, pois só saímos para iniciar a operação às quatro horas da manhã de segunda-feira, portanto íamos todos receosos, devido ao local ser infestado de inimigos, mas graças a Deus tudo correu bem até mesmo ao passar as duas bolanhas que encontramos nada houve, onde por sinal muitas emboscadas ali tem havido e já com alguns mortos; eram nove horas quando se passou o primeiro objetivo, já por sinal destruído, a mata era então cerrada e dificultava enorme a progressão, até que depois de andarmos mais alguns quilómetros recebemos informação aérea para retirarmos, pois estava concluída a operação.

     Voltamos pelo mesmo caminho, o que não é habitual, e decorrido cerca de três horas estávamos a chegar ao destacamento sem que graças a Deus nada de anormal se passasse; eram três da tarde quando chegamos e logo depois iniciamos de viatura a marcha para Teixeira Pinto sem sequer picar a estrada, foi sempre em andamento, pois passado uma hora já estava a chegar a Pelundo; e de novo em andamento para Teixeira Pinto, onde chegamos às cinco e tal, graças a Deus.

     Sempre bem felizmente mais uns dias passam, até que no dia seis de Dezembro saí para mais uma patrulha-operação a tabancas que pertenciam à população, mas que o inimigo, por informações, se acoitava lá; e então fomos lá com o destino de patrulhar e revistar, além do objetivo de trazer connosco alguns habitantes. Assim, saímos de viatura com as duas Panhard para lá – Cacheu – mas uns quilómetros antes de lá chegar voltamos à esquerda e entramos nas primeiras; depois, mais adiante, mais casas de mato se avistavam, felizmente não houve fogo algum e então voltamos para trás, sempre em cima dos carros, mas prontos para qualquer ataque. Penetramos de novo na estrada para Cacheu, mas um pouco mais adiante voltamos a andar para a esquerda e passados seis ou sete quilómetros estávamos nas outras tabancas; depois de se fazer a respetiva revista fomos à bolanha procurar dois homens que ali andavam a trabalhar, por termos as tais informações; andei então com mais seis colegas cerca de dois quilómetros por mata fechada, pensando até que a bolanha fosse mais perto; ao lá chegar logo se viu um desses tais homens fugir e o outro, como a mulher, é que o chamou, lá no idioma deles, também fugiu, lá mais perto de nós, e com possibilidades de ser alvejado a tiro, mas o furriel que não deixou e então o gajo deu o piro, assim se passou tudo isto.          

     Depois voltamos para trás e fomos a Cacheu, onde comi uma lata de conserva e bebi uma cerveja, e logo a seguir voltei com os meus colegas para Teixeira Pinto, pois estava a missão cumprida. 

     Mais dois dias passam e, portanto, dia oito mais uma operação estava à vista, a vigésima sétima, para Jol, a maior das operações, era atacar uma base onde se refugiavam grande parte dos turras de toda a mata; saí às quatro horas de Teixeira Pinto, passamos por Pelundo de onde ia um grupo de combate da Companhia «005», que também ia connosco, sendo, portanto, duas Companhias, e antes de chegar ao destacamento de Jolmete apeamos todos dos carros para iniciar a marcha com os outros à nossa frente; íamos cerca de duzentos homens, andamos uns quilómetros e já era bastante escuro quando nos instalamos para passar noite; foi-nos então dada ordem que às três da madrugada iniciaríamos outra vez a progressão, e assim foi.

     Ainda dormi um pouco, uma vez que os mosquitos não deixaram mais, e então, ainda bastante escuro, começamos o andamento bastante dificultado por a mata ser fechada, até que se começou a ver qualquer coisa, assim se andou uns bons quilómetros até que sofremos uma emboscada, por azar à minha ilharga começou um forte tiroteio, onde resultou ser ferido um colega meu com dois tiros de uma rajada no peito; o fogo durou cerca de meia hora.

     Fez-se depois o curativo ao doente, pois o inimigo sofreu duro castigo uma vez que foi um enorme tiroteio com quatro morteiradas inimigas sem ter efeito, graças a Deus.

     Pouco depois chegou o helicóptero para evacuar o ferido, e então os bombardeiros, que tinham vindo em nosso auxílio, imediatamente começaram a bombardear as casas de mato, pondo o inimigo em fuga; pouco depois continuamos a marcha, e passado pouco tempo estávamos a entrar no acampamento abandonado.

     Fizemos um cerco completo e depois começamos a retirada, queimando as tabancas as duas últimas secções; em passo rápido seguimos quase sempre por onde viemos, sem que graças a Deus houvesse algo mais. E passadas três horas e meia de enorme esforço chegamos a Jolmete, de onde logo seguimos para Teixeira Pinto, onde cheguei às seis e meia da noite, felizmente assim acabou mais esta dura operação.

     Volvidos mais uns dias, uma outra saída estava em vista, era a vigésima oitava, e de novo para Jol; saímos às quatro da tarde para Jolmete, escalamos por Pelundo, para dali ir um grupo de combate da «005» que também ia connosco, mas na retaguarda; ao chegar a Jolmete tomamos as devidas precauções caso houvesse algo de noite e assim passámos umas horas até às quatro da madrugada a nos prepararmos para iniciar a operação connosco à frente, mal se via alguma coisa, mas mesmo assim lá íamos progredindo, até que se começou a ver menos mal; depois de andar uns quilómetros o guia suspeitou de uma emboscada e informou então, cortamos caminho e continuamos a corta mato até uma enorme bolanha onde a controlamos [contornamos] alguns quilómetros e depois [aí nos] instalamos até vir a camioneta; só então recebemos ordem de voltar para trás, pois estava dada por terminada a operação que fizemos.

     Chegamos a Jolmete sem nada haver mais, graças a Deus, pois sabia-se que um grupo inimigo tinha vindo montar emboscada à nossa retaguarda, mas errou-nos (!) o caminho. Eram quase quatro horas, do [dia] vinte-e-um, quando chegamos, foi ao fazer onze meses que iniciamos esta operação, no dia vinte de dezembro. Depois seguimos para o quartel, onde chegamos às cinco e meia da tarde, graças a Deus.  

     Passaram-se mais uns dias, até que vem o natal; tudo se passou em beleza com duas noites bem passadas, além de na noite de natal grupos inimigos rondarem a população e o quartel, por isso estivemos nos abrigos até à meia-noite, mas felizmente nada houve. Foi então a festa de passagem do ano, mais almoço e jantar em beleza, com umas bebidas, e tudo termina em alegria.     

     Entra o ano de 1967. Tudo se conjuga para que ele seja melhor e assim parece ser. Passou-se mais quatro dias até que mais uma noite e dia vem de combate, de novo com a «005»; desta vez à nossa frente. O destino, claro, é a mata de Jol, onde tantas, tantas vidas já se perderam. No destacamento de Jol é de novo dada a informação que vamos para destruir um enorme refúgio de casas de mato, mas não se sabia bem o local; foi connosco o major que é o segundo comandante do batalhão; Foi-se andando, andando, sem rumo, até que apanhamos cinco mulheres e duas crianças; foi o que nos valeu para darmos com as casas de mato, uma vez que já duas ou três horas ali andávamos às voltas e não as víamos; eram em elevado número, parece impossível como não fomos emboscados pelos inimigos. Então entramos dentro delas sem que nada houvesse, mas – quando se começaram a queimar – os turras localizaram-nos e dispararam duas bazucadas, mas graças a Deus sem consequências; houve então alvoroço total, um medo terrível, pois sabia-se que os bandoleiros ali eram em número elevadíssimo. Felizmente fez-se o regresso sem nada mais haver, graças a Deus.

     Passado esta “guerra”, que foi a última, nada mais se fez senão guardar e pôr a jeito as malas para a partida, uma vez que nos vínhamos embora de Teixeira Pinto para Bafatá e daqui para outros locais ainda por destinar. Foi então no dia sete de Janeiro de 1967 à noite que embarcamos em barco de guerra com rumo a Bambadinca, onde chegamos passado dezoito horas do embarque, depois seguimos de viatura para Bafatá e daqui para Contubuel, onde me encontro presentemente há já quase quinze dias. É lugar bem diferente daqueles onde tenho andado, pois as matas são raras e então não há turras, graças a Deus; é agora uma vida bestial. Como disse, já estou aqui há quinze dias e estou contente com isto; Deus queira que seja sempre assim.

*

 

     Contuboel, vinte e quatro de Janeiro de 1967. Destacamento da Ponte, pois é onde me encontro, assim como mais colegas brancos e três milícias pretos. Passados dois dias fui informado que tinha que me deslocar a Bolama a fim de entregar o paiol das munições à Companhia que nos foi render a Teixeira Pinto, assim foi: parti com um furriel para lá no dia vinte e seis de Janeiro, saí de Contuboel às oito horas da manhã com destino a Bafatá, onde tomei o avião para Bissau às dez horas; cheguei à capital cerca do meio-dia, depois escalamos por Tite, um quartel em pleno mato que ainda não conhecia; quando cheguei a Bissau fui-me apresentar nos adidos, onde me instalei por dois dias, pois passados estes fui para Bolama no dia vinte e oito, de barco.

     Foi sem dúvida uma viagem chata, em virtude de gastar quase seis horas, quando se podia gastar só três, mas é claro o principal é chegar, e assim sucedeu às duas e meia. Uma vez aqui em Bolama, onde estive três semanas em beleza, sem fazer nada; só foram foi chatas devido ao não correio, pois é o que mais queremos quando nos dias dele; passado então este tempo vim de novo para Bissau, de barco, apesar de já uma vez o ter perdido por relaxo, desta assim não sucedeu e então cheguei aqui a Bissau sem que graças a Deus houvesse algo de anormal, então aqui estive oito dias à espera de embarque para Bafatá, coisa que aconteceu no dia vinte e quatro de fevereiro com destino a Bambadinca, onde cheguei às duas horas do dia vinte e cinco.               

     Depois, sem comer já há vinte e quatro horas, procuramos faze-lo aqui, mas sem resultado; sendo assim, fui tratar de partir para Bafatá, que ficava a trinta quilómetros. Já à noite é que se conseguiu arranjar viatura, onde cheguei às oito da noite. Depois é que se comeu qualquer coisa e bebeu, para a seguir ir arranjar cama, pois tive que passar a noite aqui, e no outro dia seguir para junto dos meus colegas em Contuboel, onde cheguei às onze horas do dia vinte e seis de Fevereiro, um mês, portanto, depois.

     Imediatamente fui procurar o que mais me interessava, o tão desejado correio, e que alegria ao ver que tinha entre cartas e aerogramas trinta ao todo! Nem mesmo assim me fartei de ler, que tão cego andava por notícias de quem tão quero e amo, tal como noiva e pais.    

     Depois tudo se acertou, já não fui para a Ponte; devido a isso tive que lá ir buscar as coisas. Vim então mesmo para Contuboel, onde ainda hoje graças a Deus me encontro bem.

     Março, dia trinta de 1967. Mais uns dias e semanas se passam, o trabalho é um pouco mais com escoltas aos destacamentos de Sare-Bacar, Sonaco e Sumbundo, graças a Deus sem novidade.   

 

*

 

/// (*) Está-se a referir aos camaradas que não se deram bem com a viagem de barco.    

 

/// (**) O exército contratava trabalhadores para cortar o capim nas bermas da estrada, o qual atingia mais de dois metros de altura; o pagamento era feito com arroz. Os militares encarregavam-se da segurança.

 

/// (***) Em lugar de medroso, leia-se horrível, tenebroso, assustador, etc.  

 

/// (****) 23.ª operação para ele; a companhia já tinha feito à volta de quarenta.

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