domingo, 26 de abril de 2015

O HOMEM E O CÂO

Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira 

     Já no passado remoto o ser humano tinha uma certa simpatia pelo cão; não porque o considerasse um seu igual, muito menos superior, mas sim porque nele reconhecia certas capacidades que serviam o seu interesse. O olfato apurado, a sua resistência a temperaturas fora do comum, a sua fidelidade canina, etc., permitia aos nossos antepassados utilizá-los em determinados momentos sem grandes custos. E assim “nasceu” o cão de guarda, o cão de caça, o cão de água, o cão pastor, o cão puxa trenós, o cão polícia, o cão ator, etc. No entanto, e à medida que os séculos decorriam, o ser humano urbanizou-se, passou a viver em vilas e cidades, e os cães, tal como os cavalos e burros, foram perdendo algum do seu “prestígio”, quase iam sendo esquecidos. Segundo consta, em alguns países asiáticos, eram abatidos para com a sua carne se confecionarem alguns pratos de culinária! O cão era sem quaisquer dúvidas uma espécie em vias de extinção há uns séculos atrás. Com a industrialização, com o comércio em grande escala, com a criação de riqueza, o dinheiro começou a circular cada vez em maior quantidade, as fortunas surgiam aqui e ali, radiantes, os palacetes, as vivendas luxuosas, cresciam como cogumelos no bosque, sobretudo na Europa, e os caprichos aumentavam exponencialmente. A maior parte dos ricos fumava, bebia, drogava-se, organizava orgias de toda a variedade, extravagantes, deixando envergonhados os antigos deuses do Olimpo. E o cão continuava esquecido, no limbo, mas eis que nos séculos dezanove e vinte, com o excesso de fortuna, rompem as modas. São os corpos que se exibem nos diversos palcos: teatro, revista, cinema, e mais tarde televisão. Com o aparecimento desta última, e sobretudo depois da segunda guerra mundial, o planeta terra transformou-se num lugarejo duma qualquer freguesia perdida algures. Todos se conhecem! Que importa ter imenso dinheiro se muitos têm iates, carros, motas, têm cursos médios ou superiores, os famosos canudos, viajam constantemente, falam duas ou três línguas, vestem roupas de marca, a chita já ninguém a quer! A diferença, pensaram alguns, está em comprar um palacete com alguns séculos, onde residiram guerreiros famosos, um carro caríssimo, ter uma data de criados (leia-se empregados ou colaboradores). Para surpresa sua, e nossa, alguns desportistas – jogadores de futebol, de basquetebol, de ténis, ciclistas, etc., - começaram a ganhar centenas de milhares de euros por mês, verdadeiras fortunas, e a investir precisamente em casas apalaçadas, em brutos automóveis, em tudo que traga prestígio. Figo, Zidane, Cristiano Ronaldo, e tantos outros, movimentam hoje em dia rios de dinheiro, milhões! Até treinadores, que outrora ganhavam uma ninharia, o Meirinho, por exemplo, ganham agora mais do que alguns atores famosos. Médios empresários são pobres à sua beira! Alguns milionários compram cadeias de televisão, equipas de futebol, etc.; outros compram lugares em naves espaciais e vão dar um passeio no espaço! Ficam conhecidos durante algum tempo, todos gostariam de os imitar, o nosso povo chora de raiva, porque só consegue o carro, às vezes em segunda ou terceira mão, o telemóvel, sedento de carregamentos, o televisor, e o cão! Aqui é que a porca torce o rabo. Devido a várias experiências, há cães para todos os gostos e de todos os tamanhos. Os ricos podem ter cães grandes, bonitos, pura raça? Podem contratar empregados para os passear e limpar a sua porcaria? Não interessa – o pobre, ou o remediado, tem o bicho que pode ter. Exibe na rua o rafeiro, por vezes raquítico, devido à falta de proteínas, sujo, e sempre a coçar-se porque as pulgas não o largam, com chagas visíveis e invisíveis, deixando o seu imundo cocó em tudo que é passeio ou jardim, até nas bonitas praias portuguesas, incomodando meio mundo para que eles se possam comparar àqueles que – graças à sua enorme conta bancária – tudo podem possuir e obter, até a lua se assim o desejarem, que já há muito tempo deixou de ser dos poetas! E esta moda de passear o cão pegou de tal maneira (talvez superior à da mini saia) que não há neste país lugar ou freguesia, vila ou cidade, rua ou praça, alameda ou avenida, que não mostre os sinais do tempo, isto é, os poios, mais ou menos sólidos, dos animais tão queridos deste povo que ainda há quarenta anos atrás os corria a pontapés e os matava, ou mandava matar, com bolinhas de carne embebidas em veneno! Este povo que emigra e traz do estrangeiro as coisas más, e as boas raramente as copia. Este povo que não progride intelectualmente, mas imita na perfeição os vícios de alguns americanos, ingleses, franceses e tantos outros, que devido ao excesso esqueceram as virtudes e o respeito que devem a eles próprios, e sobretudo aos outros. Que me interessa a mim que o presidente dos Estados Unidos da América passeie o seu cão nos belos jardins da Casa Branca? Que lhe faça bom proveito. O ricaço leva para o seu iate o cão? Tudo bem, tem imensos criados para limpar o que os cães sujam. A madame acaricia o seu cão em público? Pura exibição!
               
     Eu não sou contra os cães nem contra quaisquer outros animais, para mim são criaturas que têm direito à vida, tal como eu; mas o ser humano, esta espécie tão diferente das outras, com linguagem e pensamento elevados, outrora tão sociável, devia concentrar-se mais em si própria, preservar convenientemente os lugares que habita, dedicar o seu tempo disponível aos seres da sua espécie. Quantos idosos têm o carinho que alguns cães usufruem? Muitos deles morrem sozinhos, abandonados pelos seus familiares, em lares pouco recomendáveis. E algumas crianças, abandonadas pelos progenitores, e violadas por energúmenos (será que alguma vez vão ser severamente castigados?) perdem a sua personalidade, a sua alegria de viver. E nós que fazemos? Passeamos cães, pegamos neles ao colo, levámo-los ao veterinário, gastando aí o dinheiro que tanto jeito dava para outras coisas mais necessárias, acarinhámo-los como se fossem bebés, esquecendo que o cão só é doméstico por preguiça, parasitismo, pois quase ninguém se lembra de que ele é descendente do possante lobo, uma fera, e este só gosta da montanha, da selva, da liberdade plena. O ser humano não tem o direito de manter com ele, na vila e na cidade, em apartamentos exíguos, um animal cujo habitat é outro, cuja espécie é muito diferente da nossa. Existem milhões e milhões de espécies na natureza – que seria de nós se as trouxéssemos para a cidade? Deixemos viver os animais na floresta, na montanha, na quinta, no seu meio, com as suas caraterísticas próprias, em liberdade, na natureza, e viva o ser humano onde mais gosta de viver, no meio urbano, com os seus carros, a abundante poluição, os seus escritórios, as suas fábricas, os seus cheiros, por vezes nauseabundos, o cansaço físico e espiritual, a doença, os seus brinquedos favoritos. Respeitemos as praias, os passeios (os humanos já se esqueceram de andar a pé?), os jardins (onde brincam crianças numa relva toda suja), conversemos mais uns com os outros, estimemo-nos, enobreçamo-nos.                 
     A contradição do ser humano é impressionante: tanto estima o bicho, gastando dezenas e dezenas de euros com ele, como logo o abandona à sua sorte! Há uns anos atrás, numa das ruas de uma vila do Minho passava uma carrinha: atrás iam duas pessoas e um cão; de repente o motorista abrandou, abriram a porta traseira e sacudiram o animal para a rua. O pobre do cão ladrou lamuriosamente, quase chorando, mas logo eles aceleraram e perderam-se de vista. Casos como estes acontecem de vez em quando. As autoridades: GNR e PSP, pouco podem fazer, por razões óbvias. Remetem o problema para as Câmaras Municipais e estas para o Governo. «É uma questão de saúde pública», reclamam algumas pessoas. E é. Esses cães, abandonados, vão passar fome, vão ter doenças, que transmitem aos humanos através da mordidela. «Quem nos protege?», gritam furiosas as populações de zonas turísticas, que todos os anos vêem aumentar o número de cães abandonados, chamados vadios. «Não há canis para tantos animais», confessam as Câmaras Municipais. Para cúmulo da desgraça, há famílias que agora têm dois ou três cães! Para quê?, pergunto eu. Para mostrar ao vizinho a sua abundância, o seu novo-riquismo? «Eles têm dois, nós temos três!» - assim pensa o burguês endinheirado, cheio de prosápia. É uma questão de número e de vaidade. Mentalidades tacanhas, viciadas pelo consumismo sem regras, fruto de uma “formação” tardia e imperfeita. Se tivessem a noção de quão ridículos se tornam ao andar na rua a passear cães! Um ser humano a passear cães ou quaisquer outros animais! Só visto!  

Sem comentários:

Enviar um comentário