sexta-feira, 24 de abril de 2015

LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

                                                                                            Por Joaquim A. Rocha
(continuação)


     Nunca me deu um tostão, o filho da mãe. Quando nasceu o teu irmão bem precisei; foram os vizinhos que me valeram, que Deus lhes pague e os proteja para toda a eternidade. Nem um tostão! Fome, nunca passastes; pão e um caldo de toucinho e couves tiveram sempre; mas podiam, se o malandro ajudasse, comer melhor, e ter roupinha para vestir. Nus nunca andaram, isso não, mas já calçado nunca tiveram, mas até faz bem andar descalço, ficaram com os pés rijos, pele de elefante. Olha os filhos dos ricos: sempre calçados, desde que nascem, e têm os pés que se assemelha a manteiga, desfazem-se mal tocam em qualquer coisa; vocês não, os vossos são de ferro, até à bola podeis jogar descalços. Canté! Se eu trocava os vossos pés pelos deles. E de burrinhos não tendes nada; meti-vos na escola, dei-vos aos dois a quarta classe. Mais não podia, não sou rica, mas a quartinha dei-vo-la. Que eu fui criada como uma menina de bem, com roupinhas bonitas, com bonito calçado, com comidinha boa. Mas a vida, o bandido que me desonrou, que me fez a tua irmã e não casou comigo, ele dizia-me sempre que casava, que casava: «Matilde, sem ti não consigo viver»; mas o tempo passou e ele não me veio buscar. De casa dos pais dele escorraçaram-me, mas pronto, ele não teve culpa, quem me mandou ficar de barriga?! E para que fui para Lisboa, estava tão bem na casa da minha madrinha, mas ela ia para o Brasil, queria-me levar com ela, mas eu não quis: «para o Brasil, nem morta!» Uma terra tão distante, viajar pelos oceanos, eu que nunca tinha visto o mar, só o rio, era capaz de morrer pelo caminho, pensava eu. Fui para Lisboa servir, sempre estava no nosso país, onde se falava a nossa língua.
- Mas, mamã: no Brasil também se fala português, disse o senhor professor na escola.
- Isso é o que vós dizeis, eu sei lá. Tão longe, com gente estranha, terra dos índios, andam nus e atiram setas venenosas às pessoas brancas, depois comem-nas! Não, do meu país não saio.
- Com que idade foi para Lisboa?
- Tinha dezoito anos. Não é para me gabar, mas era uma rapariga bonita; baixinha, mas bonita. E sabia fazer de tudo: cozinhar, limpar uma casa, passar a ferro – tudo!                     
- Agora aqui em casa não faz nada, abandalhou-se, é uma desmazelada. Nem vassoura tem!
- Nem preciso! Perdi o gosto pela vida, qualquer dia morro, já não falta muito, até há quem diga que já viram o meu enterro! Naquele tempo, sim: era nova, alegre, cantava sempre «verde Minho, verde Minho/quem me dera t’abraçar/ai de mim, longe de ti/tão cansada de chorar.» Os meus patrões de Lisboa gostavam imenso de mim: «ó Matilde, que bem cantas.» Mas aquele alfacinha refinado começou a fazer-me olhinhos. Não resisti: «Matilde, se não quiseres ser minha, mato-me, dou um tiro no coração.» Tão bonito que ele era – sempre bem barbeado, cheirava a limpo. E falar! Falava como um doutor. Gostei mesmo dele. Os pais não gostaram que me tivesse feito aquilo – eu não passava de uma criada de servir, de uma rapariga da província. Queriam melhor para o filho, uma menina rica, de boas famílias. Que eu era de boas famílias, pessoas honestas, trabalhadeiras, mas humildes. Eles queriam uma nora de posição, como eles. Botaram-me fora: «vai para casa dos teus pais criar o bebé, quando estiver crescido voltas.» Está bem, está. O que eles desejavam era ver-me portas a fora, longe do Adalfredo, eu era um estorvo, um empecilho, ai se a prometida dele soubesse! Mas olha, criei a tua irmã, ou melhor, criaram-na os teus avós, que eu, coitada de mim, tive de trabalhar, ir servir novamente. Fui para uma freguesia aqui do concelho, e logo fiquei de barriga cheia outra vez. O que me valeu foi que a criança deixou este mundo com meses. Logo a seguir fiquei grávida de outro. O de Lisboa ainda me escreveu durante algum tempo, a pedir-me que não me casasse, que esperasse, ele gostava muito de mim, mas que queres, é o destino, o meu fadário. O bruxo do Coto da Mó tinha razão. Um dia, fazendo sair de um frasco, com uma diabólica forma, os diabretes, ou bolinhas saltitantes, da cor da cinza e húmidas, as quais, por incrível que pareça, não molhavam a mesa, e ora se transformando em dezenas ou centenas, ora se reunindo numa só, disse-me: «Matilde, o teu futuro não se apresenta risonho, existem inúmeros obstáculos no teu caminho; só a força de vontade, a persistência, os poderão vencer; só vejo sombras em teu redor, tens muita gente que te quer mal.» Eu nunca tive essa força de vontade, deixei-me levar pelo destino, pelo fado cruel. 
(continua)...

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