domingo, 3 de agosto de 2025

QUADRAS AO DEUS DARÁ 

Por Joaquim A. Rocha






771

 

Morei anos em Cevide,

Onde passei fome e frio;

Pra comer, só a pevide,

Para o banho tinha o rio.

 

772

 

Comia côdeas de pão,

E do porco o courato;

Pra beber à refeição

Tinha a água do regato!

 

773

 

Ai a morte, essa estranha,

Mais sagaz do que uma fera;

Vem de má-fé, com vil manha,

Com a gula da pantera.

 

774

 

Quando fugi do hospital

Senti-me um pouco perdido;

Comia canja sem sal,

Injeção e comprimido.

 

775

 

Levei cem mil injeções,

Todas dadas pelo “Gú”;

Eram veras punições

por eu ser um gabiru.

 

776

 

Fui pescador aos domingos,

No regato e no rio;

Só “pesquei” sete respingos,

E uma galega com cio.

 

777

 

Fugi das trevas, do medo,

Dos malditos pesadelos;

Desvendei o tal segredo,

Embrulhado em mil novelos.

 

778

 

Ergui-me do duro chão,

À custa de muito esforço;

Foi forte a motivação,

Hábil apelo do dorso.

 

779

 

Sou filho da natureza,

Que me ajudou a criar;

Deu-me a luz e a sageza,

Fortes pernas para andar.

 

780

 

Nasci num lugar sombrio,

Envolto em mil sujidades;

Passei fome, passei frio,

Mesmo assim tenho saudades!

 

781

 

O tempo passou por mim

Como um forte vendaval;

Nunca fui o benjamim,

Nem sequer no carnaval.

 

782

 

Andei descalço e rotinho

Nos primeiros anos de vida;

Mas tinha bagaço e vinho,

À chegada e à partida.

 

783

 

Tal como galinhas, patos,

Não deixei crescer as asas;

Andei sobre ervas e matos,

Grelhei a vida nas brasas.

 

784

 

Trabalhei que nem um burro

Na capital do país;

Em silêncio, fraco urro,

Alimentado a maís.

 

785

 

Não quero chorar jamais

Os sofrimentos de outrora;

Vivam festas, festivais,

A tristeza vá-se embora.

 

786

 

Nero incendiou Roma

Para construí-la de novo;

Era doente, com noma,

Quem as pagou foi o povo.

 

787

 

Ardem matas, matagais,

As inocentes florestas;

Ardem plantas, animais,

Mas continuam as festas.

 

788

 

No céu não há políticos,

Nem comícios, eleições;

Há santos, paralíticos,

Vendedores de ilusões.

 

789

 

Subi a alto carvalho

Para destruir um ninho;

Pus um pé num fraco galho,

Parti perna e focinho.

 

790

 

Andarilho, andarilho,

Amigo do aleijado;

Não usas vil espartilho,

Por ninguém és desejado.

 

791

 

Dizem-me que tive “padre”

Mas nunca soube quem era;

Devo ser filho de frade,

Dum camelo, lobo-fera!

 

792

 

Na tropa fui um soldado,

O mais raso que havia;

Ou seja: um pau mandado,

Um servo da fidalguia!

 

793

 

Fiz guardas, fui faxina,

Varri paradas cem vezes;

Lavei chão, muita sentina,

Cheirei a porco, a fezes.

 

794

 

Um domingo bem passado,

Na cozinha a cozinhar;

Um coelhinho guisado,

Batatinhas a fritar.

 

795

 

A louça por arrumar,

A roupa suja tresanda;

Não há tempo pra rimar,

Nem aqui nem noutra banda.

 

796

 

Faço quadras com rima,

Só para o inglês ver;

Pobrezitas, nem com lima,

Elas são fáceis de ler!

 

797

 

Esperei quase um ano

Por um anjo divinal;

Trouxe-o um pelicano,

No dia de carnaval.

 

798

 

Eu não soube esperar,

Fui banal, impaciente;

Jamais consegui gizar

O caminho prò oriente.


// continua...

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