O FIM DE UM SONHO
(Conto)
// continuação...
A estrangeira chegou meia
hora mais tarde do que o previsto, às dezoito horas em ponto. Aurora pediu-lhe
que fizesse o favor de entrar. A brasileira não se fez rogada. Estava habituada
a estes rituais, ao pavor dos clientes, quando penetrava em casa, àquele medo
que jamais se extingue. Conduziu-a à sala de estar. Uma mesa, com quatro
cadeiras, um sofá, e pouco mais. No meio da mesa jazia um jarro com flores
naturais: rosas, orquídeas, etc. A brasileira pediu licença à dona da casa e
sentou-se numa das cadeiras. O jarro das flores foi retirado, pois aquele
espaço seria necessário para os fins em vista. A mulher colocou as mãos sobre a
mesa, umas mãos grandes e magras, brancas como a cal, e disse à cliente:
- «Minha senhora, antes de mais nada vai tomar um comprimido a fim de se
acalmar. Eu estou pronta para começar a sessão; não se assuste. O que vai ouvir
seguidamente são vozes de outro mundo, de pessoas que já morreram, mas em
princípio não fazem mal a ninguém. A senhora limita-se a fazer as perguntas e
ele, ou eles, responderão. Já sei que a senhora, por causa do novo vírus, ou
corona vírus, como é designado, não tem podido visitar o seu defunto marido no
cemitério, limpar a campa, pôr-lhe flores, mas agora, caso o queira, vai falar
com ele. A voz não será cem por cento igual, apenas semelhante, porque eu sirvo
de intermediária, empresto-lhe as minhas cordas vocais, mas pode crer que se
trata do seu marido. Quando a senhora quiser, diga; eu estou preparada.»
D. Aurora Germana hesitou. Tremia de medo,
apesar do comprimido servir para a acalmar. Se ainda tivesse ali alguém conhecido,
uma pessoa da sua inteira confiança, mas não; estava ali sozinha com uma
estranha, forte como um touro, embora simpática. Estaria ela a meter-se num
grande sarilho, cujo resultado não se podia prever? Mas como recuar neste
momento? Fora longe de mais. Nada planeara, fora tudo feito em cima do joelho;
agora estava ali, indecisa, medrosa, aterrorizada. Falar com um morto? Com o
seu Rodolfo? Ela, provavelmente, não aguentaria tal sensação. No entanto,
decidiu-se:
- «Vamos para a frente; quero que isto termine o mais rápido possível.»
A vidente arregaçou as mangas da camisola,
ou blusa, passou as mãos na garganta, afinou a voz, e disse:
- «Ó vós, que estais pairando sobre oceanos e mares, sobre montanhas
intransponíveis, espíritos poderosos, companheiros dos anjos, trazei até nós o
marido de Aurora Germana, de seu nome Rodolfo.»
A brasileira pousou sobre a mesa os seus
longos braços e mãos… e esperou. Às tantas, a mesa começou a bulir, como se
alguém a estivesse empurrando. Uma voz, quase sumida, vinda de um túnel ou de
uma profunda mina, diz:
- «Eu sou quem invocaste. Que me queres?»
Aurora, até ali calada, pergunta-lhe:
- «Rodolfo, és mesmo tu? Onde estás? Eu posso ver-te?»
Comovida, as lágrimas a escorrem-lhe pela
cara abaixo, aguarda a resposta às suas perguntas. A voz de outro mundo,
responde:
- «Sou eu, em vida chamado Rodolfo. Eu estou em toda a parte e em nenhuma.
Os vivos não me podem ver, porque habitamos espaços diferentes.»
Estava terminada a sessão. A médium estava
exausta. Esta atividade dava cabo dela, mas o dinheiro que recebia era
compensador. Aurora chorava. A voz do defunto era de facto parecida, mas não
aquela voz que ela adorava ouvir. Quando sonhava com ele, e isso acontecia
amiúde, ouvia a sua voz, a genuína, aquela de antigamente, antes de ele ficar
doente. Esta, vinda não se sabe de onde, podia ser uma reles imitação. Talvez
não contratasse mais a brasileira. Quem sabe se ela não seria uma atriz de
segunda categoria, extorquindo dinheiro aos ingénuos clientes? Vozes de outro
mundo!
A brasileira abriu os olhos, levantou-se da
cadeira, e disse à dona da casa:
- «A senhora hoje teve sorte; nem sempre isto corre tão bem. Por vezes os
espíritos zangam-se, e quando isso acontece vai tudo pelos ares: mesa,
cadeiras, tudo.»
Aurora, agora um bocadinho mais calma,
reage a essa notícia.
- «Eu sou católica, nasci nesta religião, cresci acreditando em Jesus
Cristo, em seu divino pai e no espírito santo, na sua santa mãe, Maria.
Confesso-me regularmente ao senhor abade, rezo todas as noites ao senhor,
pratico todos os atos da igreja. O que eu fiz hoje nada tem a ver com a minha
religião. Quis apenas verificar, por mim própria, se era possível falar com os
mortos. Pelos vistos, é. No entanto, restará sempre a dúvida. A senhora diz que
eles pairam sobre oceanos, etc. Como é que a senhora sabe? Esteve lá para ver?
São os mortos que o afirmam?»
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A brasileira reage:
- Minha cara senhora: eu respondo às suas perguntas, mas quanto às
dúvidas permanecerão na sua mente para sempre. O criador do universo, da vida, de
tudo que se vê e não vê, incluindo os seres humanos, já existe desde tempos
imemoriais. Ninguém, cientistas ou não, pode determinar a sua idade, a sua
forma, o seu quotidiano. Antes da nossa espécie, ser algum questionava a sua
existência, o seu domínio absoluto sobre as coisas. O homem, cuja criação é
recente, cerca de três milhões de anos, foi evoluindo, desenvolvendo o seu
cérebro, foi olhando para o céu, interrogando as estrelas, afastando-se cada
vez mais das outras espécies, domando algumas delas, descobrindo alguns
segredos da natureza, julgando-se um pequeno deus, pondo em causa a sofisticada
máquina universal. Através da investigação foi descobrindo remédios para curar
certas doenças; inventou barcos para navegar sobre as águas profundas; inventou
aparelhos para voar como as aves; e agora tenta deslocar-se até aos longínquos
planetas, assumindo-se como o senhor do universo. O supremo Deus, criador do
céu e da terra, não permitirá tal coisa. Castigará severamente quem ouse
enfrentá-lo; a sua capacidade de destruir é tão grande como a de construir. E
como é que eu sei estas coisas? Há seres que foram dotados pelo Senhor para o
servir, para serem seus mensageiros, seus porta-vozes. Nós conseguimos ver
através do vácuo; os nossos olhos veem mesmo no escuro e as distâncias
incalculáveis; os nossos ouvidos ouvem praticamente tudo. Fomos dotados pelo Mestre
para ajudar quem precisa, apesar do ser humano ter alguma liberdade de ação,
vulgarmente conhecida por livre arbítrio. Deus dá a saúde, mas também a doença,
para que os humanos saibam que a liberdade, o bem-estar, o sofrimento, fazem
parte de uma vida, que de uma maneira geral é curta, somente Deus é eterno.
Criaram-se as religiões a fim de minimizar os efeitos do sofrimento; a
submissão dos humanos conta imenso para o Senhor. O homem arrogante torna-se
perigoso aos olhos do omnipotente. Esses seres arrogantes, graças às suas
fortunas, que cresceram à custa do pobre trabalhador, julgam-se importantes,
capazes de enfrentar a força divina. Por isso o grande Deus manda para este
planeta pequeninos seres, por exemplo vírus, a fim de mostrarem a esses
senhores arrogantes, que são frágeis, incapazes de sobreviverem a um bichinho
tão minúsculo, que só por meio de grandes lentes se conseguem ver. A força de Deus,
o seu poder ilimitado, não concede benesses a quem não as merece, a quem não
crê na sua grandiosidade. A senhora é católica, acredita em Jesus, cumpre todos
os preceitos, as regras, leis emanadas do Vaticano, mas isso por si só não
chega. Submeta-se ao Senhor, à sua Vontade, siga as suas instruções, e o seu
espírito ficará sossegado. Existem transformações, ao longo da vida e depois da
morte física; ninguém o pode negar. As estrelas, com o tempo, extinguem-se;
outras nascem para iluminarem os planetas, os quais não têm luz própria. Está
tudo otimamente organizado, tudo perfeito. E isto é obra de Deus.»
Aurora ofereceu algum dinheiro à cidadã
brasileira e ambas se despediram. A brasileira diz-lhe:
- «Agradeço a sua oferta, a sua generosidade. Se precisar de mim, sabe
onde me encontrar. Estarei sempre às suas ordens.» // continua...
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