O FIM DE UM SONHO
(conto)
// continuação...
O tempo foi decorrendo, na sua velocidade
intemporal, e Aurora, depois da pandemia ter desaparecido, continuou a tratar
da campa, mas agora só um dia por semana, quase sempre ao domingo. Tinham decorrido
três anos depois da morte do marido, uma eternidade! Começou a mirar-se mais ao
espelho. Apesar dos seus cinquenta e tal anos de idade, ainda mantinha alguma
beleza. Bem arranjada, lábios pintados, cabelos tratados no salão de
cabeleireira, até parecia mais nova. Havia um colega, viúvo, mais ou menos da
sua idade, que a olhava com alguma atenção. Convidava-a para irem tomar café,
conversavam sobre diversos assuntos, mas não ousavam declarar-se. Ela, uma
certa vez, disse-lhe, quase a brincar:
- «Ai eu, não sei se voltarei a casar; estou bem assim, não tenho de
aturar quem quer que seja; ainda tenho a minha mãe viva, tenho dois filhos e
netos. O mais certo é deixar-me estar como estou.»
Ele, cujo nome ainda não fixei, também com
um sorriso nos lábios, especula.
- «Eu não conheço o dia de amanhã. Não imagino sequer o que me poderá
acontecer, mas desde já confesso: gostaria de encontrar uma mulher que me
estimasse, que fosse meiga, minha companheira leal nas horas boas e más.
Sinto-me só, triste, naquela casa tão grande. Os meus filhos casaram, estão no
estrangeiro, apenas os vejo uma vez em cada ano. Já tenho netos, mas nem
português falam! Enfim, sinto mesmo necessidade de ter a meu lado uma parceira,
uma verdadeira amiga.»
Sugere ela, com alguma ironia:
- «Põe um anúncio no jornal, talvez alguém do sexo feminino te responda.»
- «Isso é perigoso. Imagina que me aparece uma galdéria, armada em boa
senhora. Nunca se sabe o que pode acontecer. A minha esposa era uma pessoa
educada, carinhosa… Tinha os seus defeitos, é claro, como toda a gente, mas as
suas virtudes eram enormes, gigantescas. Sinto muitas saudades dela, fazia-me
imensa falta, mas Deus não quis que ela vivesse mais. Levou-ma para o céu, que
descanse em paz.»
Voltaram ao trabalho de escritório,
pensativos. Quem sabe se esta amizade de agora não se transformaria em amor?!
O destino por vezes é caprichoso. O tal
colega de Aurora, chamado Rafael, um dia pediu-lhe:
- «Sei que vais quase todos os domingos visitar a campa de Rodolfo. No próximo
domingo gostaria de ir contigo. Não me esqueço que nós os dois, eu e o teu
marido, fomos amigos durante algum tempo, sobretudo antes de ele ser famoso;
depois de isso acontecer, deixou de ter tempo para mim. Eu compreendi, e jamais
o critiquei por tal atitude. Provavelmente eu teria feito o mesmo. Permites que
te acompanhe?»
Aurora meditou um pouco e respondeu assim
à pergunta:
- «Percebo perfeitamente a tua intenção. Nós já nos conhecemos há muitos
anos, simpatizamos um com o outro, sempre nos respeitamos. Agora somos viúvos,
temos pouco mais de cinco décadas de vida, vivemos sós, a solidão não é boa
companhia. Está bem, no domingo, por volta das quatro da tarde, encontramo-nos
no cemitério. Leva rosas vermelhas, as preferidas de Rodolfo.»
No
dia combinado lá estava, à porta do cemitério, o senhor Rafael. Tinha vestido
um fato escuro, uma gravata a condizer. O seu cabelo ainda não era
completamente branco, poder-lhe-iamos chamar grisalho, a cara estava bem
barbeada. Um pequeno bigode dava-lhe aquele ar sério, de pessoa honrada. Não
fumava, bebia apenas um copo de vinho à refeição. Era um manga d’alpaca
clássico. A sua cultura era média, não cometia grandes erros gramaticais ao
falar. Tinha somente o quinto ano do liceu, mas gostava de ler, sobretudo
romances e livros de história. Costumava dizer: - «Cuidado comigo! Em história, ninguém me bate; fui um dos melhores
alunos da escola.» Exagerava um pouco, mas de facto sabia bastante nessa
área do conhecimento, o que é raro neste país de poetas e de analfabetos.
Finalmente chega a tão desejada Aurora. Vinha toda aperaltada. Um vestido pouco
decotado, descendo abaixo dos joelhos, uma cor discreta, um casaco de lã ou
algodão sobre as costas, o cabelo muito bem arranjado, os lábios pintados, mas sem
brilhos excessivos, quase imitando a cor natural. Ele recebe-a com carinho,
quase como se fossem namorados. Cumprimenta-a:
- «Boa tarde, Aurora. Estás muito bonita. Não sou homem de grandes
discursos, como sabes, a timidez acompanhou-me ao longo dos anos, mas sei
apreciar a tua beleza. Eu sinto-me feliz por estar a teu lado. Esperemos que
este seja o primeiro dia da nossa longa caminhada.»
- «Boa tarde, Rafael. Vamos falando e caminhando, a fim de visitarmos a
campa onde está sepultado o Rodolfo. Não será fácil para mim aceitar outro
homem na minha vida. É certo que o Rodolfo morreu. Jamais o verei. Jamais
dormiremos na mesma cama. Também é verdade que ainda não sou uma velha
caquética. Posso, mas não sei se deva, encetar uma segunda vida de casada. Por
mais que a gente se esforce, tente ignorar, tu serás sempre o marido de outra
mulher, e eu serei a esposa de outro homem. Até é possível que as coisas deem
certo. Quem sabe? Se o casamento não resultar, separamo-nos; o divórcio, em
nossos dias, é facílimo. Tudo bem! Contudo, as feridas deixadas por um fracasso
desta natureza eternizar-se-ão. Eu entreguei ao Rodolfo não só o meu corpo mas
também a minha alma, a minha mente, tudo aquilo que eu possuía. Contigo será
diferente: entregar-te-ei o que resta do meu corpo e pouco mais. Os meus filhos
não te receberão como pai nem como padrasto, serás para eles um intruso. Eu não
poderei tratar os teus filhos com carinho, pois não sou hipócrita, não faz
parte da minha maneira de ser. Vamos tentar viver juntos, talvez sem casamento,
envelhecer juntos, cuidar um do outro. Em termos financeiros não há qualquer
constrangimento: eu tenho o meu ordenado, uma razoável pensão de sobrevivência,
ou viuvez, uma boa vivenda; tu tens também o suficiente para te manteres sem
precisares do apoio de ninguém. Hoje já podemos dormir juntos em minha casa;
não na cama onde me deitava com o Rodolfo, ali não; nem no mesmo quarto. Esse
quarto é a minha capela, o meu refúgio: ali rezo, ali choro, ali rogo pragas
aos santos, aos demónios, até a Deus quando estou muito zangada. Tu, com o
tempo, vais-te adaptando ao meu modo de viver; eu vou-me esforçar bastante para
não te desiludir. Concordas?»
Rafael não esperava aquele discurso: tão
frio, tão materialista, tão pensado; mas, por outro lado, viu que Aurora estava
a ser sincera, verdadeira. Amara Rodolfo até ao âmago. Ele correspondera a esse
amor, mas cedera ao vício, destruindo dessa maneira a sua vida e a dela. Ela
agora queria reagir, não se deixar abater pela adversidade, evitar a loucura.
Não amava o seu colega, ninguém substituiria o defunto marido, mas simpatizava
com ele, reconhecia nele virtudes que nem todos as têm, um homem sério, bondoso,
capaz de se sacrificar pelos outros. Na sua juventude fora bombeiro voluntário
e nadador salvador. Estimou a esposa, educou os filhos, preparou-os para a
vida. Agora, com mais de cinquenta anos de idade, viúvo, os filhos casados,
desejava envelhecer ao lado de uma mulher honesta, que o tratasse bem. Depois
de meditar alguns segundos, ou minutos, respondeu-lhe:
- «Eu não quero ser o teu dono, o teu senhor. Há quase trinta anos que
trabalhamos juntos, nunca nos zangamos, jamais dissemos mal um do outro, o
respeito foi mútuo, assumimos as nossas responsabilidades de cidadãos normais.
Formamos uma boa equipa de trabalho, ajudamo-nos uns aos outros, as chefias
gabaram sempre o nosso comportamento, o nosso método de trabalho. Tudo
continuaria assim se nós os dois não tivéssemos ficado viúvos. Infelizmente
aconteceu. Eu sempre te admirei como mulher e como colega. Depois de ambos
estarmos viúvos, comecei a olhar para ti de outra maneira: a amizade foi-se
transformando em amor. És a mulher que eu desejo para companheira, quero estar
contigo vinte e quatro horas por dia; mas, como não sou egoísta, aceitarei as
tuas regras, o teu estilo de vida. Lentamente, sem pressas, vais gostando de
mim, estimando-me, conhecendo-me melhor.»
Depois destes discursos comoventes e de
colocarem as flores na campa do defunto, dirigiram-se a um restaurante da
cidade e jantaram. Trocaram impressões sobre diversos assuntos, e às tantas
chamaram o empregado para pagarem a conta. Ele adiantou-se, puxou da carteira,
mas…
- «Eu falei-te em regras. As contas de restaurante serão pagas pelos dois
– “contas à moda do Porto.” Tu pagas aquilo que consumires e eu pago também o
que consumir. Ninguém ficará prejudicado, nem inibido; comes o que gostas e eu
faço o mesmo.»
- «Tens razão. Aceito plenamente. Assim cada um de nós escolhe o que mais
lhe agrada; no final paga apenas o que comeu e bebeu. Ótima ideia.»
O tempo, esse ditador invisível e implacável, acelerou a sua marcha. No ano de 2050, no mês de Junho, encontrei-os num belo jardim da cidade. Estavam de mãos dadas, sentados num banco. As suas bengalas dormiam sossegadamente. Conversavam e sorriam. As folhas das árvores, as pétalas das flores, divertiam-se com o vento. Aquele sol de Junho abençoava aquela união.
FIM
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