MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS
Por Augusto César Esteves
// continuação...
Traça o Dr. Teixeira de Carvalho – «Bric-a-Brac»,
1926, p. 257 – um quadro do estado das cadeias de Lamego nos tempos das lutas
liberais. Presos aos montões, tocando os corpos uns nos outros, cheios de sarna
martirizante e contagiosa, para ali apodreciam os políticos contrários. Foi
naquele antro infecto, às mãos de portugueses, que Tomás José acabou a sua
vida, ele a quem as armas dos franceses respeitaram. // Um outro revoltoso foi
o capitão-mor João António de Abreu Cunha Araújo, Cavaleiro da Ordem de Cristo,
depois condecorado com a medalha de Fidelidade e comandante da primeira Brigada
de Ordenanças na província de Entre Douro e Minho. // Exercitara-se noutros tempos
no posto de Capitão de Ordenanças e ascendera à
actual patente em 21/5/1799, à força de votos alcançados numa competição leal e
franca com os mais lídimos representantes de muitas das melhores casas da terra
– a do Pé da Matriz, a dos Magalhães, a dos Sousa Gama, a de Galvão e a do
Reguengo – sob as vistas do «Dr. João Nepomuceno Pereira da Fonseca, do Desembargo de Sua
Majestade Fidelíssima, que Deus guarde e seu Corregedor, com alçada e correição
nesta dita comarca, etc.» e, em consequência de «uma Ordem da Junta
da Sereníssima Casa de Bragança, pela qual Sua Majestade Fidelíssima lhe
determina faça proceder à Eleição do Posto de Capitão-Mor desta referida Vila e
seu Distrito.»
E a comandar superiormente
as Ordenanças melgacenses o encontrou o movimento insurreccional contra os
franceses. Tinha casado poucos anos atrás, em 18/3/1805, com D. Maria Luísa dos
Reis, natural de Golães, no Couto de Paderne, de família rica e respeitada, e
vivia com sua esposa no Solar do Rio do Porto, «naquelas casas novas»
levantadas por seu avô à custa de muita saca de dinheiro e que seu pai, o Dr.
João Manuel Gomes de Abreu Cunha Araújo, formado pela Faculdade dos Sagrados
Cânones da Universidade de Coimbra, aformoseara com o brasão de suas armas,
passado em 1/9/1793:
«Escudo
esquartelado. No primeiro quartel, as armas dos Cunha, que são em campo de
ouro, nove cunhas de azul postas em três palas. No segundo, as dos Araújo, em
campo de prata uma aspa azul, firmada no escudo e carregada de cinco besantes
de ouro. No terceiro, as dos Gomes, em campo azul um pelicano de ouro com três
filhos bebendo o sangue do mesmo que está ferindo o peito e, no quarto, as dos
Abreu, em campo vermelho cinco cotos de asas de ouro com sangue nas cortaduras,
a seu direitos, postas em sautor. / Elmo de prata aberto guarnecido de ouro. /
Paquife dos metais, e cores das armas. / Timbre dos Cunha, que é um grifo de
ouro nascente, acunhado de azul, com as asas de azul, acunhadas de ouro.»
Como diferença puseram-lhe uma
brica vermelha com um farpão de prata.
Os Cunha Araújo de Melgaço,
moradores na rua do Carvalho ao Sol, tinham-se aliado por casamento com os
Gomes de Abreu, da freguesia de Boivão, do Couto de S. Fins, no termo de
Valença, e deles descendia o nobre conjurado. No Rio do Porto, na casa de D.
Camila Veloso, viúva de Afonso Gomes Claro, dos Claro que serviam nas mesas da
Misericórdia na primeira metade do século XVI, estando também presentes dois
padres, um, irmão do noivo, e outro, da noiva, lavrou-se uma escritura
esponsalícia em 1/7/1720. // A seguir casaram seus avós, o Dr. João António de
Araújo com D. Mariana Gomes de Figueiroa e, como a casa era pequena e pequeno o
seu recreio, tomaram de emprazamento por três vidas aos frades do Convento de
Paderne, em 1748, o prazo das Serenadas, constituído por campos e vinha, prazo
que pelo nascente tinha setenta e cinco varas de cinco palmos e confinava com
terrenos deles e, pelo poente, media noventa varas e confrontava com uma congosta,
caminho antigo trilhado pelo povo da Vila para os moinhos velhos e para o monte
dos Preguiçosos; do norte, por onde media quarenta varas, chegava às
trincheiras da praça, prova evidente para não poder situar-se neste local o
antigo Campo da Feira de Fora e do sul beijava o regato de Mijanços, contando
por este lado quarenta varas. Aforado o terreno, levantaram as suas Casas Novas
gastando alguns milhares de cruzados, sem pedir uma poalha a quem quer que
fosse. Pelo contrário, compravam terras e emprestavam dinheiro, muito dinheiro
com as suas normais condições.
Um ano, em 1767, o verão
apresentou-se de mau cariz. Chovia constantemente e nos campos apodreciam e perdiam-se
os frutos. Seu avô era então o provedor da Santa Casa e – feliz daquele que
sente no peito uma crença sincera e arreigada – aproveitou o dia 8 de Setembro,
todo mariano, para ordenar uma procissão de preces ao Senhor dos Santos Passos,
por causa do rigoroso tempo e para salvação dos frutos. A procissão de
penitência fez-se levando a maioria dos comparecentes, às costas ou à cabeça,
pesadas pe-dras ou incómodos troncos de árvores, caminhando descalços desde a
igreja da Misericórdia à linda capela dos frades de Fiães e aí terminou por um
sermão, pago por ele, em honra de Nossa Senhora da Orada.
Hoje quase nada disto vemos
- porque tudo está mudado. Os moinhos foram-se; no monte dos Preguiçosos está
hoje a moradia de casas de um capitalista e nos campos das Serenadas erguem-se
os Paços do Concelho, um jardim público e o mercado da Vila. E a crença... a
crença também se alou, segundo parecerá a quantos assistam, recolhidos, aos
actuais desfiles em romagem à Orada a impetrar colectivamente bênçãos de Deus.
/ Seu pai, o bacharel João Manuel de Araújo, tinha desempenhado e desempenhava
ainda naquele ano os maiores cargos da terra. No tribunal a sua figura
impunha-se. Muitas vezes era ele quem presidia às audiências, por comissão dada
pelos Juizes de Fora. Os seus cabelos brancos eram garantia da sua seriedade.
Homem honesto, tinha bom nome.
E o filho, já pelo correcto
desempenho do alto cargo militar para que fora eleito por falecimento de Luís
Manuel de Sousa Gama, morgado da Serra, já pelo seu fino trato social; quer
pela influência, captada para a casa por seu pai nas lides do foro e nas
cadeiras da Câmara e pelos padres da família, que longos tempos paroquiaram
freguesias como Chaviães e Cristóval, quer ainda pela grande e sólida fortuna, constituída
por dinheiro e bens de raiz, disseminados pela Vila, Chaviães, Paços,
Cristóval, Rouças, Prado e Paderne, o capitão-mor era um grande influente no
meio.
O seu espírito liberal e
disciplinador atiçou-o para a revolta dos melgacenses e nela se lançou de alma
lavada e coração generoso, com a mente cheia de fumos da vitória. E sem o
horror das responsabilidades, calma e serenamente reuniu logo e comandou os restos
improvisados das destroçadas companhias de Ordenanças.
Seu velho pai, apoiando-o, mais o incitou a tomar a peito o exercício do seu
cargo e a dedicar-se, cada vez mais, ao constante aperfeiçoamento dos poderes
ofensivo e defensivo da força militar por si comandada.
// continua...
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